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    Welington Fernando durante operação de combate ao fogo - Intervenção de Emily Almeida sobre foto de acervo pessoal Luciano Malanski

questões ambientais

Vento vira e fogo mata

Equipe de combate a queimadas é cercada pelas chamas em parque federal; servidor do ICMBio morre

Felippe Aníbal | 04 set 2020_17h58
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O entorno sudoeste do Parque Nacional das Emas – unidade de conservação de 132,6 mil hectares, localizada no Sudoeste de Goiás – amanheceu ardendo em chamas em 21 de agosto, uma sexta-feira. Em uma manhã fria, de céu encoberto e névoa, o fogo se alastrava por uma área de 175 hectares, ameaçando chegar à reserva. Os cerca de vinte brigadistas que estavam em atividade se dividiram. Uma das equipes permaneceu no lado anterior de um córrego, combatendo as chamas com mangueiras, enquanto um avião despejava água no ponto mais crítico. O analista ambiental Welington Fernando Peres Silva, de 41 anos, e três brigadistas foram além do veio d’água, tentando debelar o fogo com abafadores. Às 11 horas, o céu abriu, e a equipe se viu diante de uma das coisas mais perigosas que podem acontecer durante o combate a um incêndio: o vento mudou de direção bruscamente, atiçando o fogo contra os brigadistas, que se viram cercados. Silva foi atingido pelas chamas e teve 80% do corpo queimado. 

“Nós fomos em apoio, estávamos próximos de chegar a ele com as mangueiras de água, mas não deu tempo. Era uma área de difícil mobilidade. Ele tentou se deslocar, correr, mas ficou preso no brejo. Então teve essa mudança brusca do tempo e a questão do meio, que dificultava o combate”, disse o chefe do Parque das Emas, Marcos da Silva Cunha, que fazia parte da operação. Quando, enfim, chegaram ao colega, os brigadistas – civis, contratados temporariamente pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), muitos deles treinados pelo próprio Welington Fernando –  encontraram-no consciente, mas bastante ferido. As roupas dele haviam sido consumidas pelo fogo, e as queimaduras denotavam gravidade. Em meio à fumaça e com o fogo ainda se alastrando, os colegas improvisaram uma maca com blusas e galhos e o conduziram para o outro lado do córrego, onde havia uma caminhonete. Na caçamba, amparado por dois colegas, Welington Fernando foi levado pela estrada que margeia o parque, onde, às 11h40, encontrou a ambulância que havia sido acionada. À beira da estrada, ele recebeu os primeiros socorros.

O analista ambiental foi hospitalizado em Chapadão do Céu, município em que morava e que é vizinho ao parque. No fim da tarde, foi transferido de helicóptero para o Hospital Estadual de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol), em Goiânia, referência no tratamento de queimados. Com o pulmão e o coração preservados, deu mostras de que resistiria. Chegou a permanecer em condição de saúde estável, mas em 1º de setembro, onze dias depois do incidente, Welington Fernando morreu em decorrência das queimaduras. Deixou a mulher, Alba Valéria Oliveira Dantas, e duas filhas, uma de 13, outra de 7 anos. Entre os funcionários do ICMBio – que administra o parque e do qual Silva era servidor –, o clima é de consternação.

“Quando se está no combate ao fogo, passam mil coisas pela cabeça, mas a gente tem o compromisso de defender a vida. A gente sabe dos riscos que corre, sabe que é uma profissão de risco, mas nunca está preparado para passar por uma situação dessas, de perder um colega”, disse Cunha, emocionado.

Ainda em 1º de setembro, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, gravou e postou em suas redes sociais um vídeo de 37 segundos em que lamentou a morte de Welington Fernando. “Nossos sentimentos à família, sua esposa Valéria, e suas filhas. O reconhecimento ao trabalho dele, assim como dos brigadistas e daqueles que, juntos, trabalham no combate às queimadas”, disse.

Para ambientalistas e servidores de órgãos ambientais, no entanto, o lamento do ministro soou como ironia. Na quinta-feira (3), a organização não governamental WWF Brasil divulgou um levantamento feito com base em dados do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe), mostrando que agosto bateu o recorde em incêndios florestais este ano, com 29,3 mil focos de queimadas em todo o Brasil. Ao longo de 2020, o país já acumula mais de 44 mil focos, principalmente nos biomas Pantanal e Amazônia. Os dados estão bem próximos aos registrados no ano passado, quando houve um salto no índice de incêndios, atingindo os níveis mais altos da década. 

Presidente da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema Nacional), Denis Rivas atribuiu o aumento das queimadas à gestão de Salles. Na avaliação dele, o Brasil tem assistido a um “enfraquecimento” das instituições ligadas à defesa do meio ambiente. Como exemplo, menciona que o governo tem contratado brigadistas para atuar nos parques nacionais, mas que passam a acumular também a função de vigilantes – o que compromete a prevenção aos incêndios e o combate. Além disso, ele aponta o discurso e os exemplos de Salles como encorajadores a crimes ambientais.

“A gente percebe que os trabalhos de prevenção às queimadas foram extremamente prejudicados pelo discurso do governo de minimizar as questões ambientais. Os militares tomaram conta do ICMBio, e o instituto está querendo mostrar serviço ao ministro”, disse Rivas. “Quando vai a campo, o ministro se reúne com quem está na prática de crimes ambientais. Isso tem relação direta com os índices de desmatamento”, acrescentou. 

A morte de Welington Fernando abalou os servidores de órgãos ambientais. Em grupos e fóruns de discussão, o incidente que vitimou o analista ambiental do ICMBio já estava em evidência na última semana, mas ganhou destaque ainda maior após a confirmação da morte. Em meio a postagens de homenagens ao servidor, os colegas refletiam sobre os riscos que correm em campo, em um contexto em que o número de incêndios florestais se mantém em níveis altos. “É um caso que deve ser investigado exemplarmente. É difícil fazer uma perícia diante dessa quantidade de focos, mas a gente espera que se identifique a origem desse incêndio e que os responsáveis sejam punidos”, defendeu Rivas.

Após a morte do servidor, o Ministério do Meio Ambiente e o ICMBio emitiram notas de pesar em que classificavam Welington como um “herói”. “Com o sacrifício da própria vida, sua atitude e memória jamais serão esquecidas no ICMBIO, pois representam todo o esforço, coragem e ímpeto. Lutou o bom combate, guardou a fé e terminou a carreira”, consta da nota do ICMBio. “Nosso herói perdeu a vida ao proteger nosso meio ambiente — com todo ímpeto, coragem e profissionalismo — combatendo as queimadas que assolam o país todos os anos”, registrou o Ministério. Procurados pela piauí, os dois órgãos não se manifestaram.

 

Welington Fernando – reprodução de internet

 

Experiente no combate a incêndios florestais, Welington Fernando era instrutor de brigada, ou seja, responsável pela formação de civis contratados temporariamente para atuar como brigadistas. Os colegas o descrevem como um profissional destemido, mas cauteloso, que avaliava cada passo. Quando entrou por concurso no ICMBio, em 2009, foi designado para trabalhar na Floresta Nacional do Jamari, em Rondônia. Lá, já havia uma brigada bem estruturada, o que fez com que ele passasse a desempenhar outras funções, como fiscalização e ações ambientais preventivas. A distância dos incêndios, de certo modo, lhe veio a calhar.

“Um dia, a mulher dele contou que a irmã dele perdeu a vida queimada. Em Rondônia, até porque não precisava, ele não mexia com fogo. Mas nunca falou nada, não tocava no assunto. Em Goiás, pela necessidade, é que ele passou à brigada, que ele teve que controlar isso”, contou o analista ambiental André Gustavo Campos de Oliveira, que foi colega e vizinho de Welington Fernando, em Rondônia.

Somente os amigos mais chegados conheciam a trajetória do analista ambiental. Nascido em Piranhas – município goiano de 10 mil habitantes e reconhecido por suas várias cachoeiras –, Welington Fernando era um homem grandalhão, de olhos amendoados, tímido e bastante reservado, contido até ao sorrir. “Quando falava, mal dava pra ouvir a voz”, disse Oliveira. De família bastante humilde, mudou-se para Rio Verde – de mais de 240 mil moradores –, para tentar uma vida melhor. Enquanto trabalhava como segurança em uma universidade, concluiu o segundo grau no supletivo. Em seguida, ganhou uma bolsa para estudar agronomia. No curso, conheceu Alba Valéria e logo se casou.

Quando começou a carreira no ICMBio, Welington Fernando mal sabia ligar o computador, não sabia operar o GPS e não tinha muita prática em direção. Era, no entanto, do tipo que aprendia rapidamente. “Em menos de seis meses já estava nos ensinando e coordenando na proteção de quase 220 mil hectares de terra na Amazônia”, contou Oliveira. Segundo os colegas, apesar de ter dominado a tecnologia, o servidor preferia andar quilômetros sob sol escaldante para fazer vistorias, a ficar metido em serviços administrativos no escritório. “Era um cara simplão, quieto, focado no trabalho e que gostava demais de ir a campo, de estar no meio do mato”, disse o analista ambiental Carlos Renato de Azevedo.

Logo nos primeiros meses, ainda na Floresta Nacional do Jamari, Welington Fernando acabou ganhando um apelido, pelo qual passou a ser chamado pelos amigos mais próximos: Grandão. Ao ser designado para fiscalizações, o analista ambiental adotava um tom de voz mais seco e não dava abertura a conversas. Em uma das primeiras fiscalizações, pediu os documentos a um proprietário de terras, que se assustou com o modo sério do servidor. “O cara disse pra ele: ‘Calma, grandão!’. Aí pegou”, contou Oliveira. “De bravo ele não tinha nada. Nunca retrucou ninguém. Era tranquilo, bem de boa. Um dos melhores servidores com quem trabalhei. Não era só grandão. Ele era gigante”, acrescentou. 

Segundo os amigos, Welington Fernando se sentia realizado com o trabalho no ICMBio. Ainda em Rondônia, com o salário de analista ambiental – que hoje é de 7,5 mil reais para profissionais em início de carreira – ajudava financeiramente a mãe e a família de sua mulher. Queria voltar a Goiás para ficar mais perto dos parentes e, em 2014, conseguiu transferência para o Parque das Emas, passando a morar em Chapadão do Céu e mantendo a mesma rotina caseira de Rondônia, muito apegado à família e às filhas. “Ele era de casa para o trabalho. Quando a gente era vizinho, fazia uns almoços, conversava sobre o trabalho no instituto, sobre futebol. Era um cara simples”, contou Oliveira.

Com a morte de Welington Fernando, o quadro de funcionários do ICMBio no Parque das Emas passou a se restringir a dois funcionários de carreira e a três dezenas de civis, contratados temporariamente como brigadistas, com salário de cerca de 1,4 mil reais. O incêndio que vitimou Welington Fernando foi controlado em 22 de agosto. Deste então, não foram registrados novos focos no entorno do parque. Mas julho e agosto não foram meses fáceis para a equipe: o entorno da reserva somou mais de 26,7 mil hectares em focos de incêndio, principalmente a Norte, Sul e Sudoeste do parque.

“Agora que a vida dele estava começando a melhorar, que ele estava conseguindo ajudar mais a família, acontece isso…”, lamentou Marcos da Silva Cunha, chefe de Welington Fernando. “Todo mundo fala em reforma administrativa, atacando servidores públicos. Tem muita gente que não veste a camisa, mas tem muita gente dando a vida. O Welington deu a vida fazendo o que ele acreditava. Morreu defendendo o parque.”

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