O secretário especial de Previdência do governo federal, Rogério Simonetti Marinho, assumiu o cargo no início do ano com o desafio de propor e implementar uma reforma no sistema de aposentadorias brasileiras que leve a uma economia de 1 trilhão de reais aos cofres públicos no período de dez anos. Mas, nas duas últimas semanas, uma cifra infinitamente menor tem tirado o sono do ex-deputado federal potiguar: 41,2 mil reais depositados na conta de um parente e correligionário tucano. O caminho do dinheiro foi reconstituído em uma investigação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Uma emenda liberada por Marinho para o município de Touros foi usada pela prefeitura para contratar uma empresa. Depois de receber o dinheiro, a empresa depositou três cheques para Ruy Aranha Marinho Júnior, primo de Rogério Marinho. A investigação resultou na prisão de um empresário e na apreensão, no fim de março, de uma mala com 265 mil reais em espécie na casa de Marinho Júnior.
A emenda serviria para a compra de material médico-hospitalar, em 2016, para o município de Touros, cidade turística de 33 mil habitantes no litoral do Rio Grande do Norte.
O caso de Touros é apenas um exemplo da fragilidade das ferramentas do poder público para acompanhar o destino final das fatias do Orçamento remetidas pelos deputados às suas bases eleitorais. Pelo Portal da Transparência ou pelo Siafi, sistema de acompanhamento dos gastos do poder público federal, só é possível rastrear o dinheiro dessas emendas até os cofres do município. “Depois disso, infelizmente, é impossível saber por essas ferramentas”, diz o economista Gil Castello Branco, secretário-geral da ONG Contas Abertas, que fiscaliza o gasto público. O Orçamento da União deste ano prevê 13,7 bilhões de reais para emendas parlamentares. No início deste mês, o Senado aprovou uma proposta de emenda constitucional para implantar o Orçamento impositivo, que obriga o governo federal a pagar todas as emendas de deputados e senadores. Atualmente, a PEC tramita na Câmara.
Quando assumiu o comando da prefeitura de Touros, em janeiro de 2017, Francisco de Assis Pinheiro de Andrade, do PP, determinou uma auditoria na Secretaria de Saúde do município, foco de grave crise desde o fim do ano anterior. A falta de medicamentos e insumos, além de atraso no pagamento dos salários, desaguou em uma greve dos servidores do setor.
Iniciada para apurar outros desvios, a investigação acabou chegando à emenda de Marinho. Constatou que a prefeitura repassou 270 mil reais, dinheiro da emenda, à empresa Artmed Comercial em novembro e dezembro de 2016, na gestão do prefeito anterior, Ney Rocha Leite, do PSD, para a compra de luvas cirúrgicas, gaze, agulhas, seringas, filmes para raio x e outros equipamentos médico-hospitalares, em um total de 244 597 itens. Os produtos, porém, não estavam nas prateleiras do hospital municipal, administrado pela tia de Leite. Como o hospital ficou fechado por mais de sessenta dias no fim de 2016 devido à crise financeira, não havia demanda para o uso daqueles insumos. Além disso, não houve licitação para a contratação da Artmed, cujo dono, Gabriel Dellane Marinho (sem parentesco direto com o ex-deputado tucano) já fora condenado pela Justiça por fraude em licitação, em outro caso.
A Prefeitura de Touros repassou a informação para o Ministério Público Federal, que determinou abertura de inquérito pela Polícia Federal. A quebra do sigilo bancário da Artmed e do seu dono revelou que, entre os dias 9 e 16 de janeiro de 2017, duas semanas após receber da prefeitura a última parcela da emenda do então deputado federal Rogério Marinho, o dono da Artmed repassou três cheques, no valor total de 41,2 mil, para a conta de Ruy Aranha Marinho Júnior, primo do atual secretário de Previdência e, como esse último, filiado ao PSDB.
Marinho Júnior foi doador em duas campanhas do primo tucano: a primeira em 2006, quando foi eleito pela primeira vez deputado federal e em 2012, quando perdeu a disputa pela Prefeitura de Natal. Juntas, as doações somam 6,8 mil em valores corrigidos. No ano passado, após três mandatos consecutivos na Câmara dos Deputados, Rogério Marinho não foi reeleito.
No documento em que solicita ao Juízo da 15ª Vara Federal do Rio Grande do Norte a deflagração da operação, batizada de Tiro, o procurador Felipe Valente Siman escreve que a informação de Ruy Aranha Marinho ser filiado ao PSDB, mesmo partido do secretário de Previdência, e de ter doado recursos para duas campanhas eleitorais do ex-deputado e primo “é curiosa e robustece as suspeitas sobre as transações”. Procurado pela piauí, o procurador Siman não quis se manifestar.
Rogério Marinho não é formalmente investigado na operação. Apesar da coincidência temporal e do parentesco entre ele e Marinho Júnior, não é possível concluir sem sombra de dúvida que foi o mesmo dinheiro da emenda de um que apareceu na conta do outro. Entre 2016 e 2018, Rogério Marinho propôs 86 emendas parlamentares destinando recursos da União a municípios potiguares e ao estado do Rio Grande do Norte. Dessas emendas, 25 foram pagas, em um total de 19 milhões de reais. De acordo com a assessoria da Controladoria-Geral da União, CGU, que também participou das investigações, apenas a emenda para o hospital de Touros foi alvo da operação.
No dia 28 de março, a Polícia Federal cumpriu mandado de busca em endereços ligados ao ex-prefeito e ao primo de Rogério Marinho – em um deles, foi encontrada mala com 265 mil em dinheiro vivo – e prendeu preventivamente o dono da Artmed. Entretanto, na terça-feira, 9, Gabriel Marinho foi solto graças a um habeas corpus no Tribunal Regional Federal da 5ª Região. O advogado do empresário não quis se manifestar.
Em nota, a assessoria de Rogério Marinho disse desconhecer a investigação do MPF. “Nunca fui chamado a prestar nenhum esclarecimento, nem teria o que esclarecer, pois, depois da destinação da emenda (que ocorreu a pedido dos vereadores de Touros), cabe ao município a execução de seu objeto.” O atual secretário de Previdência negou manter relações com o primo. A defesa do ex-prefeito Ney Rocha Leite, que desistiu de disputar a reeleição em 2016, disse que a Prefeitura de Touros “pegou carona” numa licitação de outro município potiguar para contratar a Artmed e que a empresa entregou os insumos contratados. O advogado de Ruy Aranha Marinho disse à piauí que seu cliente “jamais esteve envolvido em qualquer organização criminosa”.
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Esta reportagem foi alterada às 14h de 13/04/2019.
A frase “é curiosa e robustece suspeitas”, do procurador Siman, se refere às doações de Marinho Júnior às campanhas eleitorais de Rogério Marinho — e não aos depósitos em sua conta, como dava a entender a versão anterior.
Apesar da coincidência temporal e do parentesco entre o então deputado e o beneficiário, não é possível concluir sem sombra de dúvida que foi o mesmo dinheiro da emenda de Rogério Marinho que apareceu na conta de Marinho Júnior. O que se pode afirmar é que, após receber o dinheiro da emenda de Rogério Marinho, a empresa Artmed depositou cheques na conta de Marinho Júnior, parente do secretário.
Às 20h39 do dia 13/04/2019, a assessoria de Rogério Marinho enviou a seguinte nota:
“A atuação de Rogério Marinho como parlamentar sempre se deu em defesa dos melhores interesses da população do Rio Grande do Norte: 65 municípios contemplados por emendas destinadas à saúde em três mandatos de deputado federal.
Sugerir o contrário, com base em denúncia que sequer o tem como parte, é uma ilação irresponsável. Portanto, faz-se necessário reforçar que o secretário não tem qualquer relação com os fatos narrados, que há tempos não mantém relação pessoal com o parente distante citado, que não tem conhecimento sobre a investigação da qual, como diz a própria reportagem, ele não é parte.
É importante pontuar que após liberação de emendas parlamentares, cabe, única e exclusivamente, ao Poder Executivo a execução das verbas e a fiscalização cabe aos órgãos competentes. Espera-se que todo eventual mau uso de emendas seja profundamente investigado e punido, caso comprovado.
Marinho lamenta não ter sido procurado antes da publicação da notícia e considera um ato de má fé tentar alavancar uma reportagem usando seu nome e imagem, que agora estão em evidência por causa da tramitação da PEC da Nova Previdência.”