O lançamento de Memória Sufocada, de Gabriel Di Giacomo, ocorrido em 30 de março, véspera de o golpe de 1964 completar 59 anos, foi deliberado. Não creio, porém, ter sido previsto pelos produtores que a Comissão da Anistia, reformulada pela Presidência da República, faria na mesma data a sua primeira reunião. Além de novos integrantes do colegiado, o regimento da comissão também havia sido alterado, passando a prever a possibilidade de vítimas da ditadura solicitarem “coletivamente reparação e exigir pedido de desculpas por parte do Estado brasileiro, se tiverem o caso deferido”. De acordo com a notícia em O Globo de 31 de março, “um levantamento feito pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania mostrou que, sob os governos Temer e Bolsonaro, 95% dos pedidos de reparação foram negados pela comissão”.
Seria difícil imaginar momento mais oportuno, portanto, para oferecer Memória Sufocada no circuito exibidor. No documentário, Giacomo, roteirista, diretor e montador, propõe fazer “um exercício de reflexão sobre a nossa memória coletiva”. Para ele, “as relações da sociedade com seu passado são dinâmicas, fluidas e contraditórias, e Memória Sufocada traz uma análise do processo de construção da memória da ditadura brasileira que segue em disputa”.
O teor dessas declarações, publicadas no release do filme, indica, em princípio, a relevância do projeto, mas deixa transparecer, ao mesmo tempo, o germe da ambiguidade que está na raiz do documentário resultante – dizer que a memória da ditadura de 1964 a 1985 “segue em disputa” desqualifica o autor desse enunciado, por desconhecer a vasta historiografia já consolidada a respeito e sugerir que os crimes cometidos por militares e policiais, sob a responsabilidade do Estado, possam ser relevados.
Ao assistir a Memória Sufocada, com um mínimo de discernimento é possível constatar a grandeza da oportunidade perdida por Giacomo. O documentário pretende ampliar sua abrangência e perde o rumo desde o início, resumindo-se a uma coletânea de materiais de arquivo desconexos, a maioria de má qualidade fotográfica, sendo que os provenientes do Arquivo Nacional preservam (ao menos na cópia a que assisti) marca d’água identificando sua origem.
A esse conjunto de imagens e sons díspares falta, em primeiro lugar, um princípio ordenador, além de alguma reflexão sobre o sentido de cada cena incluída. Registros filmados ou gravados que até podem ser valiosos perdem seu poder heurístico quando apresentados e justapostos sem que se ponha em questão seu valor de face. Exemplar, nesse sentido, é a entrevista de Carlos Lacerda, dada em 1967 a William F. Buckley Jr. no programa de televisão Firing Line, que parece ter sido extraviada e incluída por engano no documentário. Investigar o significado do que está sendo mostrado é pré-requisito indispensável para documentários baseados em imagens de arquivo.
Entre os principais documentos preciosos incluídos em Memória Sufocada estão as gravações de depoimentos dados à Comissão Nacional da Verdade, entre 2013 e 2014, hoje incorporados ao acervo do Arquivo Nacional. Nesses registros, vítimas, testemunhas e torturadores, como o famigerado coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, dão seu testemunho ou são interrogados. Lamentável é Giacomo apresentar em pé de igualdade as declarações de homens e mulheres que foram torturados, de um lado, e de outro as respostas do algoz, como se fossem equivalentes.
O ex-escrivão da polícia Manoel Aurélio Lopes, conhecido pelo codinome de escrivão Pinheiro, admitiu em seu depoimento à Comissão “que sabia da existência de tortura no Doi-Codi de São Paulo, onde atuou, cedido pelo Deops, entre 1972 e 1978, e que “o máximo” que viu “foi usar a lata de leite Ninho, o cidadão nu subir com os dois pé [sic], um em cada lata de leite, encostado na parede, segurando duas folhas de papel com os braços abertos. O cara deixava cair a folha, o fulano reagia. Essa aí eu assisti e taí…”. Lopes diz ainda que “esse tipo de filme [sic] era exibido à noite, normalmente… Esse tipo de acontecimento, desculpe, era exibido à noite”. O lapso do escrivão, ao se referir a “esse tipo de filme”, dá o que pensar quanto a natureza do seu refúgio mental na fantasia, talvez para conseguir suportar a memória dos horrores que admite ter presenciado.
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Entre os 72 títulos de 34 países a serem exibidos no próximo Festival É Tudo Verdade, de 13 a 23 de abril, está Three Minutes – A Lengthening (2021), de Bianca Stigter. A coprodução holandesa e do Reino Unido faz um contraponto imprevisto a Memória Sufocada. Em Three Minutes, apenas 3 minutos de imagens filmadas são transformados em um documentário de 69 minutos de duração. Nesse caso, a minuciosa exegese da filmagem feita em Nasielsk, na Polônia, em junho de 1938, e encontrada em Palm Beach, na Flórida, em 2009, comprova, uma vez mais, o equívoco resultante da crença ingênua no valor de registros visuais e sonoros como evidência da verdade. Three Minutes permite também reconsiderar as frases publicitárias da Kodak, divulgadas na época em que a filmagem foi feita e citadas no final do documentário: “Você acha que sua memória vai guardar tudo, mas não. Ela se esvai, torna-se tênue. Só uma câmera de cinema pode trazê-la de volta para você com todo o seu frescor e emoção.”