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    Intervenção de Paula Cardoso sobre fotos de acervo pessoal/Thais Bilenky

questões de história

Viagem à fronteira da memória

Em meio à guerra, neta de um judeu russo-ucraniano relembra raízes da família em cidades marcadas pelo antissemitismo de muitos séculos

Thais Bilenky | 22 mar 2022_11h51
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Foi no final da tarde do nosso último dia na Ucrânia, o país onde meu avô paterno nasceu, que descobrimos uma informação que não mudava nada, mas mudava tudo. Era um domingo quente e ensolarado, 4 de junho de 2017, em Lviv. Estávamos em uma praça onde acontecia o último dia de um festival de música judaica – foi coincidência estarmos lá na mesma data. Recebemos um e-mail do guia de turismo brasileiro que nos ajudou a fazer o roteiro. Ele informava que finalmente localizara o cartão de embarque de Moisés José Bilenky nos arquivos alfandegários brasileiros.

O passageiro 22 do navio SS Asturias, que aportou em Santos em 10 de julho de 1926, era identificado como “Moishe Bilenky, um lavrador russo, solteiro, de 19 anos”. Sabíamos que ele tinha deixado Shargorod, uma aldeia no interior do país, fugindo da pobreza e do antissemitismo, mas achávamos que ele tinha 15 anos, com base na data de nascimento registrada em seu túmulo. Com a nova informação, constatamos que ele era o mais velho dos cinco irmãos. Tuba, sua mãe, ficou viúva após o assassinato do marido provavelmente em um pogrom em 1919. Pogroms eram ataques vândalos contra judeus perpetrados por russos, com adesão de moradores dos vilarejos invadidos na região da Bessarábia (parte da atual Moldávia e Ucrânia, inclusive Shargorod). Se ele era mais velho e maior de idade, fazia sentido que Moishe, apelido de Moisés, tivesse sido o primeiro a emigrar, abrindo as portas das Américas para o irmão, as três irmãs e a mãe nos anos seguintes. 

Meu avô morreu em São Paulo, em 1956, depois de um derrame cerebral, quando o meu pai tinha quatro meses. A mãe dele perdeu contato com a família do marido, e nós crescemos praticamente sem nenhuma informação sobre a família Bilenky. Escutávamos generalidades e algumas lendas. Por exemplo, que meu avô e seu irmão, Isaac, vendiam caixinhas de fósforos em uma charrete pelos vilarejos para tentar ajudar a mãe a botar comida na mesa. A nacionalidade russa que Moisés declarou às autoridades, bom, essa é uma longa história.

A rigor poderíamos estar no sofá de casa para acessarmos seu cartão de embarque no navio Asturias, que está em um arquivo digitalizado do Estado brasileiro. Mas estávamos em Lviv, a 11 mil km de São Paulo. No palco do festival, uma cantora sabra (israelense), filha de um judeu ucraniano, apresentava-se no momento em que recebemos a informação. Emocionada, ela disse que celebrar a cultura ídiche em Lviv era um milagre. Eu me senti testemunhando esse milagre. 

A cidade é encantadora, patrimônio mundial da Unesco, e conhecida como a capital cultural da Ucrânia. Viajávamos em família. Não tínhamos vínculo de parentesco com ninguém em Lviv, mas paramos para conhecê-la antes de seguir para Cracóvia. Localizada a 80 km da fronteira, é a ponte entre a Ucrânia e a União Europeia. Circulamos por Lviv acompanhados de Diana, uma guia de turismo local. Ela era uma mulher de quase 40 anos, pele clara, cabelo escuro e voz aveludada, que havia descoberto dias antes que esperava o primeiro filho. Diana não era judia, mas tratou nossas dúvidas e indignações com a mesma sensibilidade com que falou da prisão de seu pai, deportado para a Sibéria pelos russos durante a Guerra Fria. 

Em três séculos, Lviv passou por seis domínios antes de ser integrada à Ucrânia. Foi controlada pelos poloneses, depois austríacos, poloneses de novo, soviéticos e então os nazistas. Os russos tomaram Lviv enquanto perdurou a União Soviética. Chamando o ditador Josef Stálin de “demônio”, Diana afirmou que 10 milhões de ucranianos do campo morreram de fome durante seus anos no poder, no morticínio conhecido como Holodomor. Dada a dificuldade de aferição, esse número não é consensual. A própria existência de um morticínio é negada até hoje pelos defensores da União Soviética.

O microcosmo judaico efervescente que havia na cidade terminou de acabar quando os russos chegaram. Até a Segunda Guerra Mundial, quase metade da população de Lviv era judaica, o equivalente a algo como 150 mil pessoas. Um dos mais importantes escritores ídiches de todos os tempos, Sholem Aleichem, autor de Um Violinista no Telhado, morou em Lviv antes de se radicar em Nova York. Havia mais de 40 sinagogas e outras 50 casas de estudos judaicos (chamadas beth midrash) – as edificações tinham andares subterrâneos, porque os judeus não podiam ter construções mais altas que as dos católicos. Pela cidade restaram letreiros em hebraico, ruínas de uma era distante: das 300 lojas de Lviv em algum momento do século XIX, 260 eram de judeus, contou a guia. Quando começou a expansão nazista, 50 mil judeus poloneses fugiram para Lviv na esperança de achar refúgio. Dos 160 mil judeus que estavam lá durante a Segunda Guerra Mundial, quase 140 mil foram confinados num gueto na entrada da cidade, amontoados em grupos de vinte pessoas por quarto. Nos anos 2000, o gueto foi reaberto na forma de um museu chamado Território do Terror, mas estava fechado quando visitamos a cidade. Só pudemos ver a réplica do portão de ferro que isolava os judeus do mundo.

Depois do nazismo e do stalinismo, sobraram aproximadamente mil judeus em Lviv. Um único rabino que sobreviveu ao Holocausto deixou o país em 1960. Restou uma sinagoga, próxima à estação de trem, mantida por americanos de Miami e da Califórnia descendentes de ucranianos. O cemitério judaico local, que data de 1414, foi até o século XVI o único de toda a região da Galícia polonesa. Em 1860, superlotado após severas epidemias, tornou-se inoperante. Os nazistas o bombardearam, destruindo a memória que jazia ali. Em 1946, sovietes mandaram abrir uma feira agrícola no lugar. Depois ruas, casas e até mesmo uma fábrica de cerveja ocuparam o terreno. Segundo Diana, houve tentativas de reabri-lo, frustradas pelo risco de exumar corpos atacados por vírus e bactérias. “Hoje só temos fotos. É uma vergonha”, criticou.

Na saída de Lviv, os nazistas montaram um campo de concentração chamado Janowska, que mais tarde foi transformado em prisão. Durante o Holocausto, Janowska foi comandado por um general que apreciava música. Ele ordenou que judeus instrumentistas fossem confinados ali e os obrigava a tocar de manhã, durante a contagem dos prisioneiros, à tarde, durante as execuções, e à noite, para seu entretenimento. Lá os músicos judeus compuseram The Tango of Death, o tango da morte. O histórico envergonha moradores como Diana, que reconhecem a reputação antissemita da cidade desde antes da Primeira Guerra, com os traumáticos pogroms, e dali em diante, com a destruição de uma das principais culturas locais. 

Mas a memória judaica de Lviv apareceu também em sabores agradáveis. Diversos restaurantes servem iguarias da tradição judaica. O mais badalado da cidade é o Batchewski, cujo cardápio traz estrelinhas de David ao descrever pratos típicos como gefilte fish, um bolinho de peixe que provamos de bom grado, apesar de o da minha mãe ser incomparavelmente melhor. 

O advogado franco-britânico Philippe Sands, no livro Estrada Leste Oeste, identificou em Lviv um resumo do século XX europeu. “Aprendi a amar os mapas desses anos, com ruas que mudaram regularmente de nome, embora o rumo que seguiam não mudasse. Um banco de jardim, uma bela relíquia do estilo art-nouveau do período austro-húngaro. Em 1914, o banco estava no Stadtpark, na província mais oriental do império austro-húngaro. Uma década depois, o banco não tinha se mexido, mas estava num país diferente, a Polônia, no parque Kosciuzki”, escreveu. 

 

No final de fevereiro de 2022, as ruas de Lviv voltaram a mudar de nome. No dia 24, às 6 horas da manhã, sirenes começaram a soar nas ruas, avisando a população do risco de ataques. A Rússia deu início à invasão da Ucrânia naquele dia, e horas depois moradores de Lviv saíram de casa com escadas para arrancar placas de ruas ou trocá-las de lugar. Queriam confundir os forasteiros. Mas os primeiros a chegar não eram inimigos. Embaixadores de dezenas de países deixaram Kiev, a capital, rumo a Lviv, pela proximidade com a União Europeia. Moradores das regiões atacadas fizeram o mesmo, tornando-se refugiados. Jornalistas do mundo todo foram cobrir a guerra a partir de Lviv. Os hotéis ficaram com ocupação máxima, os preços de aluguel por temporada subiram astronomicamente. O trânsito parou. Supermercados foram tomados por moradores em pânico, estocando o que pudessem em casa. Filas de dezenas de carros se formaram nos postos de combustíveis. 

Explosão na cidade de Lviv, depois de um ataque russo, em março de 2022 – Foto: Yuriy Dyachyshyn/AFP

 

Reportagem do jornal português Expresso registrou a rápida transformação do Museu das Artes, principal centro cultural de Lviv, num abrigo. “Está tudo cheio de caixotes com comida, pilhas de bolachas, enlatados de todo o tipo, roupa ainda por estrear, kispos [casacos] bons, de marca, de penas, botas de escalada, gorros, colchões, sacos-cama, até alguns micro-ondas e torradeiras que alguém doou”, anotou a publicação. Diante da anormalidade, o prefeito decretou que Lviv não era mais uma cidade turística, protegeu estátuas com panos, os vitrais das catedrais com compensado de madeira e vetou a venda de bebida alcoólica.

O marido da tradutora ucraniana Anastasiya Glotova, 33 anos, tinha viajado na véspera da invasão. Ele pousou em São Paulo e de lá seguiu para o Chile, última parada da expedição de um ano que fará na Antártida como biólogo. Glotova estava sozinha em casa com o filho de 10 anos quando as sirenes tocaram e se lembrou de 2014. Naquele ano, ela ainda morava em Lugansk, sua província natal e pivô, assim como Donetsk, do conflito com a Rússia. Grupos separatistas, oito anos atrás, comandaram uma insurgência contra o governo ucraniano reivindicando a independência dessa região, conhecida como Donbas, no extremo Leste do país, na fronteira com o vizinho. 

Como Glotova,120 mil pessoas deixaram suas casas e se mudaram para outras partes da Ucrânia naquele ano, e outras 730 mil saíram do país., segundo o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados). Ao chegar em Novoiavorivsk, cidade no subúrbio de Lviv onde mora até hoje, Glotova recomeçou tudo. Tradutora profissional, fluente em alemão, inglês e polonês, e nativa em ucraniano e russo, fez um curso técnico e se tornou guia de turismo. Mas foi a guerra começar – ou recomeçar, como ela diz – que outra vez se viu no front. Passou a organizar centros de acolhimento de refugiados, distribuir roupas e alimentos, recebeu em sua casa uma amiga de Kiev que estava doente com suspeita de Covid e não conseguia remédios por causa da guerra. 

A sua principal batalha, contudo, é a da informação. Glotova mobilizou um exército de ucranianos no país inteiro que falam inglês e faz o contato entre eles e jornalistas estrangeiros que procuram cidadãos locais para entrevistas. Seu objetivo é fazer a versão ucraniana rodar o mundo. Ela montou uma lista de correspondência para manter informados todos aqueles que manifestaram interesse e traduz informes oficiais e artigos de jornais para os idiomas que domina. Glotova começa seus e-mails com “greeting from fighting Ukraine” (saudações da Ucrânia em luta) e os encerra com “glory to Ukraine” (glória à Ucrânia), um grito usado pelos nacionalistas ucranianos na Guerra Fria que se disseminou e é usado hoje por toda parte. “O serviço secreto russo sabe tudo o que estou fazendo, onde estou e com quem. Se os russos chegarem aqui, vou para a Polônia”, ela comentou numa ligação de vídeo no dia 9 de março. 

Quatro dias depois, mais de trinta mísseis foram disparados nas proximidades de Lviv, deixando pelo menos 35 mortos e 134 feridos. O alvo era o Centro Internacional de Manutenção da Paz e Segurança, uma base militar de treinamento em cooperação com a Otan, a aliança militar liderada pelos Estados Unidos da qual a Ucrânia não faz parte. O alvo atacado fica a 15 km da casa de Glotova. “Ouvimos tudo”, ela relatou em uma nova conversa no dia 15. Dessa vez, sua voz parecia mais abalada e ela não quis ligar o vídeo. Uma sirene soou durante quatro horas ininterruptas no dia anterior ao ataque. Na manhã seguinte, vieram as explosões. A população ficou em pânico, muitos foram embora, inclusive refugiados como sua hóspede. “Fiquei em choque, porque imaginava que um lugar tão próximo da Polônia, a 30 km da fronteira, não seria tocado”, comentou. “Estou preocupada, não posso mais me sentir segura como antes.”

Por enquanto, Glotova vai ficando em casa com o filho. O mais difícil, ela disse, é explicar a ele por que os russos querem atacar os ucranianos já que seu pai, o avô do menino, é um deles. Russo, mora em Moscou desde que se separou de sua mãe e deixou Lugansk, anos atrás. A relação entre os três se manteve boa, e Glotova foi à Rússia há cinco anos visitar o pai e a avó, hoje com 92 anos. Depois disso não se viram, mas se falaram com frequência por telefone e chamadas de vídeo. Até 24 de fevereiro, quando começou a guerra. A partir de então perderam contato. O pai da tradutora disse à mãe dela que tinha medo de se expor ao serviço secreto russo se conversasse com a filha, conhecida ativista ucraniana. A filha entendeu que o pai temia expô-la. “Eu não acho perigoso, mas também não sei sobre o que falaríamos”, ela reagiu. “Há dois tipos de pessoas na Rússia: aquelas que veem tevê e as que não veem. Quem vê apoia o presidente Vladimir Putin, quem não vê é capaz de ter senso crítico. Meu pai vê tevê.”

Em 2014, a família impôs uma lei do silêncio sobre qualquer tema que envolva política. Até hoje, ou melhor, até o dia 24 de fevereiro, falavam da vida, sem tocar na discórdia para preservar a relação.

 

No final de maio de 2017, estávamos em Chisinau, capital da Moldávia, cidade onde nasceu minha avó paterna, Lina (até morrer, ela sempre se referiu à cidade na pronúncia russa, Kishinev). Uma guia turística local chamada Irina Shikhova se juntou a nós para mostrar a cidade. Ela era uma judia de uns 40 anos de idade e opiniões sólidas, ruiva com cabelos encaracolados volumosos, pele clara e lisa, mãe de uma pré-adolescente e uma bebê. Quando paramos para almoçar num restaurante de rua, perguntei se ela já tinha feito a viagem de trem de Chisinau para Kiev, que nós faríamos naquela noite. Ela respondeu que sim e quis saber o nosso itinerário. “Vocês vão no trem 66?”, indagou. A nossa era outra linha. “Vocês vão no 120?” Também não. Ela pegou o bilhete na mão e viu que era o trem 348. Irina não se conteve e caiu na gargalhada. “Me desculpem”, disse, tapando a boca, “mas é horrível esse trem!” Rimos juntos das 24 horas de viagem com paradas em todos os vilarejos do caminho em vagões dos anos 1970. 

O trem era decadente, com corredores estreitos e cortinas imundas que despencavam sozinhas, espalhando poeira pelo ar. Fomos instalados em duas cabines com dois beliches cada. A janela não fechava inteiramente e o cheiro no banheiro era intolerável. A luz era fraca, as paredes de madeira sintética eram escuras, e a companhia não era a mais usual para nós: gente do interior da Moldávia e da Ucrânia, com hábitos de higiene distintos dos nossos. Uma mulher com aparência cigana perambulou horas pelo corredor do nosso vagão, sempre com olhar fugidio e inquisitório. Em dado momento, a vimos na plataforma entre vagões de cócoras de frente para a porta parecendo que se aliviava. Depois dela cruzamos com monges ortodoxos no vagão-refeitório tomando sopa de manhã e ucranianos barrigudos se trocando no corredor. O capitão do vagão era um moldavo do interior, baixinho e maravilhado por sermos brasileiros com ascendência similar à sua. Ao nos despedirmos, ele fez questão de que posássemos juntos para uma foto. 

Às 6h30 da manhã do dia seguinte, atravessamos a fronteira da Moldávia com a Ucrânia, demarcada pelo magistral rio Dniester, e de lá chegamos a Kiev. A paisagem da capital é entrecortada por monumentos gigantes de guerra. Nas avenidas largas e impessoais há diversas paradas de tema bélico. Nosso guia local, Viktor, um homem grande, jovem, com memória enciclopédica, falou ininterruptamente sobre os privilégios das elites soviéticas nos tempos da URSS aos pés do Memorial da Pátria e da Guerra, uma escultura imponente com cenas da Segunda Guerra grafadas na pedra. Ele narrava com ódio relatos da própria família mesclados com a história do país e sugeriu que não usássemos qualquer palavra em russo em solo ucraniano para não despertar a ira dos seus compatriotas. Não há ucraniano que não entenda razoavelmente bem o russo, ambos idiomas eslavos, embora o segundo tenha mais estrangeirismos.

Apesar do sol e do céu azul, o paredão de estátuas formava uma corrente de ar gelada na avenida central. Viktor usava camiseta de mangas curtas, e nós estávamos encapotados. A principal estátua do complexo, o Monumento à Mãe Pátria, tem 102 metros de altura. Aos seus pés fica o Museu da Grande Guerra Patriótica (como a Segunda Guerra Mundial é chamada lá), em cujo pátio os ucranianos exibem veículos de guerra como tanques e aviões. Viktor queria que víssemos tudo em detalhes, apesar da nossa falta de interesse pelo arsenal bélico. Numa loja de souvenires ele nos apontou um dos produtos mais vendidos, um rolo de papel higiênico com o rosto impresso de Putin. Levamos.  

Os tanques, aviões e helicópteros de guerra que enfeitavam o pátio do museu agora estão nas ruas (não os próprios, mas similares). A área central onde fica o complexo turístico ficou isolada com a invasão da Rússia, em 2022. Postos de controle nas pontes entre os lados direito e esquerdo do rio Dnieper, que corta a cidade, barricadas e soldados impedem os moradores de transitar, contou o roteirista Alexander Dyomin, de 33 anos. Natural de Lugansk, ele se mudou para Kiev em 2014 com a tensão separatista e levou consigo seu gato. Sua mãe e seu pai ficaram na cidade natal, mas ela morreu no ano passado. Sua namorada fugiu para a Alemanha quando a guerra começou. Ele ficou emocionalmente imobilizado dentro de casa. “Não sei para onde ir nem quero deixar meu gato. Ele está comigo há dez anos, testemunhou toda a nossa luta desde Lugansk”, disse. Dyomin não consegue mais falar com o pai, porque a telefonia em Lugansk parou de funcionar. Eles tentavam ligações pela internet, mas esta também caiu. Agora só mensagens de texto vez ou outra. “Me resta tentar sobreviver. Tenho bicicleta, então alimento o gato dos amigos que fugiram, levo comida para quem precisa e só. Todo o tempo fico em casa”, ele relatou. 

Desde a invasão, o roteirista não conseguiu sair do seu bairro, do lado esquerdo do rio. As explosões e ataques se concentram do outro lado de Kiev, mas ele viu algumas casas destruídas e ouviu uma explosão ao seu redor. “Tenho medo e raiva, às vezes tristeza, mas não dá para sentir isso o dia inteiro, então não sinto nada.” Ele prosseguiu: “Todo mundo que ficou em Kiev sabe que está em perigo, mas é melhor morrer do que viver sob Putin.” Na opinião de Dyomin, em Lugansk, a população local se tornou fantoche russo desde o controle separatista. “Parece Orwell”, comparou, em referência ao escritor inglês George Orwell, conhecido pelo romance distópico 1984. “Você pode ir para a cadeira por pensar, pode ser torturado, não há lei. Nem meu pai percebe o que está acontecendo.” 

 

Vinnytsia é a capital do estado de mesmo nome onde fica Shargorod, a cidade onde meu avô Moisés nasceu. Vinnytsia é uma cidade de cerca de 400 mil habitantes sem uma identidade original, pelo menos nos trechos que percorremos. Passamos mais tempo nas redondezas do arquivo municipal, onde ficamos um dia inteiro atrás de documentos da família. Na hora do almoço, não encontramos restaurante local e tivemos que recorrer a um McDonald’s na esquina. Leona, a funcionária do arquivo, localizou as fichas de nascimento de dois dos cinco irmãos Bilenky. As certidões estão escritas em russo arcaico e às vezes em hebraico. Saímos de lá sem muita novidade, mas com o contato de Ina Averbuch, que nos disseram ser uma professora de inglês judia de Shargorod. 

Ao nos receber na cidade, Averbuch se apresentou como a líder da comunidade judaica de 23 pessoas. Pediu desculpas pelo inglês macarrônico, alegou falta de treino por não ter a quem ensinar. 

Fomos andando em direção à rua onde os judeus moravam antes da guerra. Algumas casas foram reformadas e outras mantidas intocadas. Eram barracos caindo aos pedaços, de madeira velha e gasta, quase se desfazendo. Uma das maiores e mais antigas estava abandonada e nos foi apontada como uma amostra da “arquitetura” de Shargorod no final do século XIX, a Shargorod do meu avô.

Casa abandonada em Shargorod e, abaixo, uma das ruas da cidade – Fotos: Acervo pessoal – Thais Bilenky

 

 

 

Naquela época, 80% dos 2500 habitantes eram judeus, segundo o Polin, Museu da História dos Judeus Poloneses (que retrata a comunidade no Leste Europeu). Meu avô era um deles e trabalhou nas cooperativas agrícolas que organizaram depois da implantação do regime comunista. A religião foi proibida, e pela primeira vez as meninas também foram aceitas nas escolas, antes voltadas exclusivamente aos estudos religiosos dos meninos. Esther, uma das irmãs do meu avô, ficou maravilhada com a inclusão. Até morrer se declarou comunista e carregava consigo um broche de Lênin e uma boina.

A rua de terra batida parecia parada no tempo. Às vezes passava um idoso ou uma criança silenciosos. Uma senhorinha parou a metros de distância de nós, olhou e soprou um beijo no ar quando soube que éramos brasileiros.

Caminhamos em direção à sinagoga, erguida em 1589. Depois de ter sido usada por judeus, turcos e comunistas, o que encontramos foram ruínas. No batente da porta azul, a marca branca diagonal da mezuzá soou como uma prova de que aquilo tudo era verdade. Conseguimos espiar o interior, escuro e abandonado, cheio de entulhos e bichos. Continuamos a caminhar. Averbuch nos fotografava mais do que nós fotografávamos o vilarejo. Ela nos levou para almoçar em um restaurante que foi aberto para nós. No banheiro, o vaso era um buraco no chão, as mesas eram cobertas com toalha de plástico e não havia talheres para todo mundo. A cozinheira, Olea, nos serviu salada de repolho com pepino e endro, varenikes (uma espécie de massa recheada) de batata e queijo e sopa com varenik de porco, além de pão. Tudo saboroso e bem feito. Achávamos que eram pratos judaicos, mas constatamos que eram e ainda são, na realidade, refeições típicas da região. 

Batente da porta da antiga sinagoga de Shargorod com a marca da mezuzá – Foto: arquivo pessoal/Thais Bilenky

Depois do almoço, atravessamos a rua e chegamos à sede do jornal local. Averbuch vinha colaborando com artigos para a publicação semanal, segundo ela, de tiragem de 3 mil exemplares. A chefe do jornal, uma mulher com dentes de ouro, se pôs a nos entrevistar e fotografar. As duas disseram que publicariam um artigo sobre nós, mas nunca enviaram um exemplar.

Na Segunda Guerra, Shargorod se tornou um gueto. Em 1940, abrigava 1.800 judeus, obrigados a identificar suas roupas e casas com a Estrela de David. Nos anos seguintes, as 337 casas de judeus e seus 842 cômodos passaram a abrigar 7 mil pessoas deportadas da Bessarábia, da Alemanha e da Romênia. Quando as tropas soviéticas libertaram Shargorod do nazismo, em março de 1944, mil judeus haviam sobrevivido. Mas os anos seguintes continuariam trágicos. Em 1987, ano em que eu nasci, uma criança ucraniana de Shargorod morreu ao comer um pedaço de bolo. Como entre os produtores de alimentos havia diversos judeus, eles foram responsabilizados pela fatalidade. Logo se descobriu que os ovos usados no bolo estavam infectados com salmonela. Mas ficou difícil conter rumores de que judeus queriam envenenar ucranianos – uma fake news daqueles tempos. Em 2007, a população judaica da cidade estava reduzida a 43 pessoas. Em 2017, a 23. Antes de irmos embora, paramos no supermercado e compramos caixas de fósforos de lembrança.

Pórtico na entrada de Shargorod – Foto: acervo pessoal/Thais Bilenky

 

Oque aconteceu em Lviv, Kiev e Shargorod é uma constante nacional. Na guerra, nazistas mataram cerca de 1,5 milhão de judeus ucranianos. Os sobreviventes foram, em sua maioria, embora. Hoje o país tem uma população judaica de cerca de 100 mil pessoas (as estatísticas variam em torno deste número). Segundo Diana, a guia de Lviv, outras 100 mil temem assumir a identidade. O presidente Volodymyr Zelensky, o líder do país na guerra com a Rússia, é um deles. Nascido em 1978, na cidade de Kryvyi Rih, filho de pai e mãe judeus, ele disse ao jornal The Times of Israel em 2020 que teve uma criação “judaico-soviética comum”, querendo dizer que nunca foram praticantes, porque “religião não existe num estado soviético”. O seu bisavô e três tios-avôs morreram no Holocausto, apenas seu avô sobreviveu. Zelensky considera o judaísmo uma parte irrelevante de sua identidade. “Ser judeu quase não conta na minha longa lista de defeitos”, respondeu, em uma entrevista em 2019.

Em sua carreira de comediante anterior à política, ele se apropriou da cultura judaica para fazer ucranianos rirem. Por exemplo, simulou tocar ao piano uma das músicas mais tradicionais da cultura judaica, Hava Nagila, sem as calças.

Quando Putin justificou a invasão como forma de “desnazificar” a Ucrânia, a origem judaica do presidente veio à tona. É verdade que movimentos nacionalistas radicais formam uma corrente política relevante na Ucrânia desde pelo menos a Segunda Guerra Mundial. O principal líder do nazismo ucraniano, Stepan Bandera, colaborou com Adolf Hitler e depois se tornou adversário dele, mas logrou fazer do seu país um território de extermínio. Ele morreu em Munique, onde morava, em 1959, mas continuou com um séquito de admiradores e, sobretudo, deixou uma corrente política com representatividade partidária estabelecida. Em 2007, a prefeitura de Lviv ergueu um monumento em sua homenagem nas agitadas ruas da cidade. No documentário Ucrânia em Chamas, o produtor Oliver Stone aponta membros do nacionalismo fanático ucraniano na origem da revolução da Praça Maidan, que visava a se descolar da Rússia de Putin. 

A escolha de um dos primeiros alvos russos na invasão da Ucrânia neste 2022 contribui para a mensagem propositadamente truncada de Putin quanto aos objetivos de sua “operação militar especial” no país vizinho. Na primeira semana de guerra, ele bombardeou uma antena de TV no centro de Kiev –numa região da capital conhecida como Babi Yar por ter nas redondezas um monumento em homenagem às vítimas do Holocausto. Em 1941, os alemães nazistas fizeram uma emboscada e fuzilaram 34 mil judeus no local que agora se tornou um memorial.

 

“Você quer saber como está a guerra em Shargorod? Um minuto”, me disse a jornalista Liubov Velychko, numa ligação de vídeo no último dia 12 de março. Perguntou em ucraniano ao irmão no quarto ao lado. “Está tudo bem lá, é um lugar calmo, não se preocupe”, respondeu, rindo. Mãe de gêmeos de 6 anos, Velychko, de 33 anos, está hospedada na casa do irmão a 70 km da aldeia do meu avô. Natural de Vinnytsia, mora desde os 17 nos arredores de Kiev. No dia 24 de fevereiro de 2022, estava em casa com os filhos e o marido, quando foi acordada às 4h30 da manhã com o barulho de um ataque de míssil. Eles moram a 700 metros de uma base militar que tinha sido destruída naquela madrugada. Ela correu para o Facebook e leu as notícias. Vestiu as crianças em cinco minutos e correu para o porão. Os meninos perguntaram o que estava acontecendo, e ela respondeu que os russos não queriam que eles existissem. Um deles respondeu calmamente: “Não se preocupe, mãe, a Ucrânia vai vencer.”

Esse tem sido seu mantra desde então. “A Ucrânia vai vencer.” Eles puseram o que puderam no carro, documentos, objetos de valor e roupas de inverno e de verão, já imaginando que a temporada longe de casa poderá ser longa. Quando entraram no carro ouviram outro míssil. Dirigiram até a casa de sua mãe, em Vinnytsia. Chegando à cidade natal de madrugada, pararam para abastecer o carro num pequeno posto de gasolina, e o céu se iluminou com a chama vermelha de uma nova explosão. “Jamais esquecerei aquele amanhecer”, ela lamentou. 

O aeroporto, a 7 km da casa de sua mãe, foi bombardeado e dezesseis pessoas morreram. As sirenes soam dia e noite. A escola onde estudou virou uma sede para voluntários se inscreverem na patrulha territorial. “Até eu queria me alistar. Sonhei que atirava num soldado russo e o matava. Pela primeira vez na vida sonhei que matava uma pessoa”, contou. A família decidiu se mudar outra vez. Foram para o subúrbio, na casa do irmão. A população da região está toda mobilizada, fazendo coquetéis molotov e patrulhando a área. “Na Segunda Guerra, o marido da minha avó morreu, a casa foi roubada e ela ficou sozinha aos 25 anos, com três filhos. Minha mãe, a mais nova, tinha quatro meses e agora está com 77 anos. Sim, os russos vão destruir muitos prédios, mas vamos reconstruí-los.”

Velychko é repórter freelancer, escreve reportagens investigativas. Uma delas, que mostrava a influência russa no Parlamento ucraniano, gerou ameaças anônimas, segundo a jornalista. “Se me pegarem, não vão me matar. Vão me pôr na prisão e me deixar lá, dizendo que sou terrorista. Mas quero que os meus filhos tenham os dois pais.” O seu ódio pelos russos não se restringe a Putin. “Odeio os russos, queria que todos estivessem mortos”, ela disse e emendou: “Entendo que isso soe terrível, mas eu estudei história na universidade. Sei perfeitamente que sempre quiseram destruir a Ucrânia em toda a sua história. Se Putin morrer, nada vai mudar.”

Em 2022, para muitos ucranianos, ser chamado de russo é um xingamento. Um século antes, como no caso do meu avô, ser identificado como russo, em meio à confusão territorial daquela parte do mundo, era um passaporte para o resto do mundo. Talvez por isso incomode tanto até hoje.

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