Ainda durante o Festival do Rio, encerrado domingo, foi possível assistir a três documentários que, mesmo sendo diferentes entre si e tendo qualidade também variada, guardam inesperado ponto em comum. Dois são, cada um à sua maneira, narrativas de viagem. E no terceiro, viagens ocupam desde a infância lugar central na vida do protagonista.
Raymond Depardon cruza a França por iniciativa própria, de norte a sul e leste a oeste, na primavera de 2015, para gravar pares de pessoas conversando no seu trailer-estúdio, diante da janela através da qual é possível ver trechos de praças ou ruas das cidades aonde as gravações são feitas. Na montagem final, dois a dois, 52 habitantes de 15 cidades médias do País são incluídos. É deles que o filme se ocupa, como deixa claro o título original, Les habitants (Os habitantes), e não da França em seu conjunto, conforme sugere o infeliz título adotado no Brasil – França. Depardon foi claro a esse respeito, em uma entrevista: “faço um filme, não uma sondagem do INSEE [Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos]. Sou fiel ao que eu vi.”
No caso de Tempestade, de Tatiana Huezo, documentário que estreou no Festival de Berlim, em fevereiro, e antes de chegar ao Festival do Rio teve bem sucedida carreira durante o ano em diversos outros festivais, as imagens da viagem de ônibus através do México, também de norte a sul, não pretendem ilustrar nem recriar os relatos feitos em voz off das violências por ação do Estado e do crime organizado de que duas mulheres foram vítimas – Miriam Carbajal, acusada injustamente de tráfico de pessoas, libertada a 2000 quilômetros da sua casa, depois de um ano de prisão, e Adela Alvarado, cuja filha desapareceu há dez anos, sequestrada por filhos de policiais.
Não há, naturalmente, registro visual dos eventos que Carbajal e Alvarado contam. Só o que Huezo pode documentar é o contraste entre a narrativa oral da brutalidade que as atingiu, a aparente placidez visual de viajantes anônimos e, ao longo das estradas filmadas, a impressão de um país em estado de guerra com frequentes comboios militares e barreiras policiais. Assim como ocorreu à personagem Carbajal, a viagem percorrendo o golfo do México se impôs à diretora Huezo, ao contrário do deslocamento voluntário de Depardon no qual por decisão própria ele foi gravando alegremente pelo caminho.
Viagens se multiplicam em Dancer, documentário de Steven Cantor. A formação do dançarino Sergei Polunin é marcada desde cedo pela diáspora da sua família, provocada pela necessidade de obter recursos para custear seus estudos de dança fora da Ucrânia. O pai vai trabalhar em Portugal e a mãe acompanha o jovem Sergei, primeiro a Moscou, depois a Londres, onde a partir dos 13 anos estudou no Royal Ballet. Recém saído da adolescência, Polunin chegou em 2010 a principal solista da companhia, tornando-se uma estrela internacional. No caso dele, viajar, inicialmente uma tática financeira, depois uma imposição materna, acabou adquirindo feição corriqueira, levando-o a transitar entre Ucrânia, Rússia, Inglaterra e Estados Unidos.
Enquanto Depardon e Huezo voltam seu olhares para pessoas comuns, Cantor privilegia uma celebridade, como fizera, antes de Polunin, com Evander Holyfield em Chasing Tyson, de 2015 – personalidades marcantes, reconhecidas em áreas de atuação como dança e boxe que são um grande atrativo por si só. Para Depardon e Huezo, as viagens são uma questão de linguagem que dá forma a seus documentários. Integrado ao mundo do espetáculo, para Cantor, a linguagem da televisão é uma questão dada, neutra, a serviço do carisma dos seus personagens.
Coerente com vários de seus documentários anteriores, Depardon evita interagir com as duplas que aceitam serem filmadas conversando, de perfil para a câmera. Separados da equipe por um tapume de modo a acentuar a sensação de estarem sozinhos, os participantes, salvo em um caso, não fazem qualquer referência ao fato de estarem sendo filmados. Desse modo, Depardon incorpora convenção própria da ficção, mas sem impor sua própria pauta – não há perguntas, nem comentários em off, salvo breve narração no início. As duplas falam do que querem, contrariando quaisquer expectativas e revelando o que mais lhes interessa no momento da filmagem.
Em uma entrevista, Depardon reconhece que a escuta exigida pelo filme é cansativa. De fato é, e essa dificuldade não chega a ser atenuada com os intervalos musicais – imagens da caravana seguindo viagem pelas estradas da França, imaginadas por ele para descansar o espectador. Outro obstáculo, ainda maior para quem não tenha pleno domínio de francês, é a necessidade de leitura contínua das legendas. Há filmes que viajam mal. E França, de Raymond Depardon, é prova disso.
Lançado em abril, na França, o filme não esclarece que as filmagens foram realizadas depois do atentado à redação do jornal Charlie Hebdo, em janeiro de 2015. Essa informação talvez fosse dispensável para o espectador francês. Mas no exterior, não seria relevante poder situar o momento em que as conversas foram gravadas? Em princípio, parece que sim, já que a motivação para fazer o filme surgiu a partir do atentado, conforme Depardon declarou: “era preciso ir ver o que se passa na França”. E para sua surpresa, “descobriu que as pessoas não lêem os editoriais dos grandes jornais de economia. Elas pouco estão ligando. Elas contam coisas das suas vidas e suas preocupações: a ligação familiar, a solidão…”.
No caso de Huezo, a motivação para fazer Tempestade é de outra natureza, conforme ela declarou: “Fiz o filme a partir da tristeza e da impotência que sentimos agora mesmo muitos mexicanos. A mim doeu muito ver como algo dentro de Miriam [Carbajal] estava quebrado. […] Quando ela me contou o que aconteceu com ela foi como me ver no espelho, me fez confrontar-me com uma realidade que pode ocorrer a qualquer um a qualquer momento. […] No México, sabe-se o que está acontecendo, fora do México, não. Surpreendeu-me muito a reação de parte do público por que não se sabe praticamente nada do que está acontecendo no México.”
“O mais forte desse filme para mim”, declarou Huezo referindo-se a Tempestade, “é que me obrigou a confrontar meu próprio medo. O medo no filme representa um mecanismo através do qual submetem Miriam [Carbajal]. Isso acontece em todo o México: é um mecanismo de relojoaria perfeito para que nada estoure neste país. Tempestade é romper o silêncio apesar dos nossos próprios medos. Frente à situação crítica do país, não podemos deixar de fazê-lo.”