Quando o editor me convidou para escrever esta reportagem sobre o nosso vício em telas e as medidas para se livrar dele, anotou algumas práticas testadas informalmente na redação:
Usar os “filtros de cor” para deixar a tela do celular em preto e branco (uma estratégia que será descrita na reportagem abaixo) é um Ozempic para o vício em tela: tudo fica mais sem graça e você perde a vontade de ficar “beliscando” o dia todo, vendo tanta besteira. Passa, então, a usar o celular de forma mais utilitária e menos recreativa, por menos tempo
Mover os aplicativos mais supérfluos para dentro de pastinhas na tela exige dois cliques – e, assim, faz você pensar duas vezes antes de abrir as portas para abrir o TikTok do nada, como quem, entediado, abre a geladeira para ver o que tem de bom
Deletar o app da tela inicial ajuda ainda mais: você precisa fazer uma busca para encontrar o que quer. É um micro trabalho, claro, mas que dá um empurrãozinho para desautomatizar o clique
Melhor ainda é dificultar um pouquinho mais: apagar o aplicativo de rede social e acessar do browser do celular, logando e deslogando a rede a cada vez que usar. Se você tiver autenticação em dois fatores, vai bater uma preguiça de digitar o código
- Melhor ainda é se esforçar para manter a navegação no laptop, como faziam os povos da Mesopotâmia, sempre que possível. A experiência é bem menos viciante e você se afasta do risco de abrir a tela para checar a previsão do tempo e cair, sabe-se lá como, em duas horas entretido nas tretas do X.
Parar para ler um texto menos ligeiro ajuda a exercitar algo que os smartphones vem nos roubando: a concentração. A reportagem abaixo, que pode ser lida no tempo dos stories da Silvia Braz, traça um panorama científico sobre o tempo inútil de tela e ideias para ter uma relação mais saudável com o aparelho.
O brasileiro passa em média cinco horas por dia grudado na tela do celular, segundo o estudo “State of Mobile 2024”, divulgado em dezembro. Como essas cinco horas não são contínuas, e sim picotadas ao longo do dia, vivemos distraídos e muitas vezes nem vemos o tempo passar. Daí muita gente ter colocado como meta de Ano-Novo passar menos tempo online.
“A sensação de passagem do tempo é muito vulnerável a distorções”, disse à piauí a pesquisadora Ruth Ogden, professora de psicologia do tempo na Universidade John Moores de Liverpool, no Reino Unido. Sua equipe ouviu trezentas pessoas em países europeus sobre seus hábitos digitais. Quanto mais horas passavam conectadas, pior era a percepção delas sobre o tempo livre. Embora estivessem muito mais horas ocupadas, parecia que tinham produzido muito menos. Ogden não culpa propriamente a tecnologia por isso, mas recomenda prestar atenção em como se usa e se percebe o resultado dela.
Tempos atrás, quem torcia para um time, ou era fã de uma banda, vivia cercado de pessoas que raramente partilhavam do mesmo entusiasmo. Nos últimos quinze anos, o uso do smartphone permite que alguém possa passar o dia todo falando do seu assunto favorito com amigos, ídolos e desconhecidos – e, nisso, até as horas de sono são prejudicadas.
Os algoritmos que direcionam informação, lazer e interação são os principais atores nessa situação. Um algoritmo é um modelo matemático, implementado por meio de códigos de programação, que se alimenta de dados sobre o comportamento passado do usuário para tentar prever e incentivar o que ele fará em seguida. As empresas de redes sociais coletam toneladas de dados sobre características e preferências de cada usuário visando prever melhor quais conteúdos mostrar para mantê-lo colado na tela por mais tempo, mostrando assim mais anúncios e aumentando suas receitas. Daí, o sucesso das plataformas depende da captura permanente da atenção das pessoas. “Os usuários estão, ao mesmo tempo, sendo usados”, escreve Justin E.H.Smith, autor de The Internet is Not What You Think it Is: A History, a Philosophy, a Warning (A internet não é o que você pensa que é: uma história, uma filosofia, um alerta, em tradução livre).
Na pandemia, quando até as atividades mais básicas migraram para o celular, a apelação para caçar cliques dominou as redes, com variações em torno de temas altamente polarizantes, de política a comportamento. Nas plataformas de streaming, a mesmice tomou conta. Além de todas as continuações de franquias de super-heróis, há filmes feitos para o que o algoritmo calculou ser o gosto médio do público, baseado no histórico de consumo de cada usuário. Na Netflix, eles muitas vezes são estrelados por Adam Sandler e sempre parece que você já viu o longa antes, de tanto que os roteiros se alimentam do que já deu certo antes.
O jornalista norte-americano Kyle Chayka, autor de Filterworld – how algorithms flattened culture (Mundo com filtro – como os algoritmos achataram a cultura, em tradução livre), lançado em 16 de janeiro nos Estados Unidos, avalia que esse avanço dos algoritmos sobre o reino da criatividade deixou tudo mais chato – e achatado. Ele empurra a cultura em duas direções só aparentemente diferentes – com uma mão estimula a mesmice, com a outra, as bolhas; as duas atraem engajamento, tempo gasto e compras online.
No X, o antigo Twitter, o bilionário mimado Elon Musk adotou uma série de critérios de visibilidade, especialmente paga, que aprofundam a cada dia a percepção de que o que vale lá é a gritaria. Esse processo de deterioração da utilidade das plataformas em busca de lucro é chamado de “enshittification”, ou “bostificação”, pelo jornalista e escritor canadense Cory Doctorow.
Se você colocou entre suas resoluções para 2024 a redução do tempo que passa no celular e nas redes sociais, pode ter tido problemas para imaginar por onde começar. Sua ideia tem mais chance de dar certo agora no início do ano, quando noves fora alguma operação policial em Angra dos Reis (RJ), o noticiário político está um pouco morno, os assuntos das redes sociais giram em torno de tretas entre celebridades e, em alguns casos, você talvez possa pensar em passar uns dias fora de casa antes que a quarta-feira de cinzas traga a correria de volta.
Para ajudar quem deseja não estar mais tão alerta ao telefone, a piauí reuniu dicas elaboradas em diversos livros publicados nos últimos anos sobre como enfrentar os vícios comportamentais associados à tecnologia. Boa parte delas é dada por engenheiros e designers que já trabalharam nas próprias plataformas que nos viciam.
É difícil fugir do smartphone porque ele de fato é útil. Já passou o tempo em que era mais fácil concordar com Umberto Eco, que via o celular como útil apenas para bombeiros, médicos, líderes mundiais com acesso à bomba atômica e adúlteros. Hoje, da divisão do trabalho ao joguinho para passar o tempo, tudo está na tela. E, com o crescimento do comércio eletrônico, ele também permite gastar dinheiro até nos horários em que ninguém sairia à rua atrás de uma nova geladeira.
O jornalista e escritor escocês Johann Hari identificou a redução da capacidade coletiva de concentração como um dos grandes problemas da atualidade. Segundo os especialistas que ele entrevistou no livro Foco Roubado: os Ladrões de Atenção da Vida Moderna, o uso do smartphone e das redes sociais fragmentou e acelerou a circulação de informações que se processa a cada dia. E grande parte disso é de baixa relevância ou de interesse perecível. Isso facilita um ambiente de confusão.
Se as cinco horas diárias no celular fossem ininterruptas, ele distrairia menos do que nas dezenas de pequenos momentos que desviam a atenção de qualquer um. Essas interrupções são estimuladas pelos alertas disparados por qualquer aplicativo, seja de trabalho, conversa, comércio ou jogo. Voltar a prestar atenção no que se estava fazendo antes de ser interrompido é o que mais toma tempo todo dia, diz Cal Newport, autor de Trabalho Focado: Como ter Sucesso em um Mundo Distraído. Fora do escritório, ele sugere deixar o aparelho para carregar à noite longe dos olhos e das mãos, especialmente na hora de dormir.
Para recobrar ao menos parte dessas horas e dar melhor uso a elas, seria preciso antes de mais nada ter uma ideia do quanto se usa o aparelho e os aplicativos.
Em alguns ambientes de trabalho, é impossível ter uma conversa de cinco minutos ininterruptos sem que ela seja quebrada algumas vezes por um alerta de celular. Às vezes essas notificações até são pertinentes, mas dificilmente urgentes a ponto de precisar interromper alguém.
Elas são componentes das técnicas de “nudge” (cutucada), conceito proposto em 2009 pelos economistas Cass Sunstein e Richard Thaler. No design de produtos e serviços, embute-se elementos que direcionam os usuários às ações desejadas. Os autores citavam objetivos nobres como estimular crianças a comer merendas saudáveis ao colocar frutas mais à vista do que chocolates nas cantinas. Mas isso rapidamente foi adaptado para maximizar a atenção dedicada pelos usuários a sites de conteúdo.
Jake Knapp e John Zeratsky, autores de Faça Tempo: 4 Passos para Definir suas Prioridades e Não Adiar Mais Nada, conhecem bem esse ambiente. Já foram designers no Google, projetando aspectos do Gmail e do YouTube. Segundo eles, reagir imediatamente a qualquer demanda pela sua atenção é subordinar as suas próprias prioridades às alheias.
Só que o cérebro humano não foi feito para dar conta de tudo o que se tenta processar hoje em dia. O pesquisador dinamarquês Sune Lehmann demonstrou que a cada ano tem se aumentado a sobrecarga cognitiva das pessoas. “Parece que a atenção alocada em nossas mentes tem um certo tamanho, mas os itens culturais que disputam essa atenção se tornaram mais densamente agrupados”, escreveu. Segundo ele, estaríamos chegando rapidamente ao limite da capacidade de cada um dar conta de processar tantas informações. As principais hashtags do Twitter, segundo o estudo, perderam mais de cinco horas de permanência nos trending topics, em média, entre 2013 e 2016.
Para David Strayer, professor de psicologia da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, ouvido por Hari, o telefone distrai motoristas tanto quanto a bebida alcoólica, e ser interrompido por notificações no trabalho atrapalha a concentração o dobro do que ocorreria se a pessoa tivesse acabado de fumar maconha.
Uma pequena maneira de reduzir as demandas pela sua atenção, portanto, é ser mais seletivo com as notificações que você aceita em seu aparelho.
O ator, escritor e apresentador Gregorio Duvivier anunciou em sua conta do Instagram, em novembro de 2023, que abandonaria o X.
“Percebi (mais tarde do que deveria) que aquela rede não estava trazendo nada de bom pra ninguém (a não ser, talvez, pros acionistas)”, escreveu. “Não interessa ao algoritmo nada que te tire da rede, ou seja: livro, filme, peça. Aquilo é um ringue para se bater e apanhar, e nessa porradaria gerar lucro para poucos e perder seu precioso tempo. Sua energia vital. Sua atenção.”
Se antes era possível pensar em termos de “a notícia me encontra se for importante”, hoje não dá mais. Ela só o encontrará nas redes sociais se for escandalosa, polarizante, porque o algoritmo valoriza o que mais engaja. Novos assuntos e personagens ganham altíssima importância muito mais rápido – e perdem no mesmo ritmo. Já tentou lembrar todo mundo com quem você manifestou indignação na semana passada?
Uma dieta de informação balanceada depende de mais atenção à procedência do que se lê ou assiste. Nas redes sociais, tudo tem a mesma aparência – seja uma reportagem apurada por meses ou uma notinha que repercute uma treta; seja uma publicação profissional, ou um site que vive de plagiar conteúdo alheio. No último trimestre de 2023, para piorar, Elon Musk alterou o X para mostrar apenas a imagem de links postados, piorando a identificação das fontes.
Por enquanto, a maioria da mesmice ainda é produzida ou chupinhada por seres humanos, que têm restrições de capacidade de escoar textos e imagens. Mas não falta praticamente nada para que aplicações de IA (inteligência artificial) gerativa passem a despejar uma quantidade ainda mais insana de textos, imagens e vídeos de baixa qualidade nos feeds de redes sociais, visando apenas o clique fácil e engajado. Em dezembro, a Amazon já precisou limitar a quantidade de livros digitais que uma mesma pessoa poderia subir para o Kindle por dia, pois já existem malandros criando obras inteiras de baixa qualidade via ChatGPT para vender baratinho em edição digital. Por isso, vale a pena pensar em filtrar melhor de onde vem a informação que se consome.
“O jogo não é propriamente um vício: é o hábito que a gente adquire de perder”, escreveu o cronista Leon Eliachar (1922-1987). Segundo o estudo “State of Mobile”, alguns dos aplicativos de celular que mais cresceram no Brasil nos últimos dois anos são os de apostas, que mesmo antes de terem sua regulamentação aprovada no Congresso figuravam entre os maiores anunciantes da mídia brasileira.
Esses apps não tinham nem de longe a receita daqueles coloridos e cheios de sons viciantes especialmente para crianças e adolescentes. Você pode até argumentar que é algo para relaxar, para desligar a cabeça depois de um dia cansativo. Mas a psicóloga norte-americana Gloria Mark, autora do livro Attention Span: a Groundbreaking Way to Restore Balance, Happiness and Productivity (Limiar de Atenção: um jeito revolucionário de resgatar equilíbrio, felicidade e produtividade, em tradução livre), discorda: atividades com tela consomem uma fatia considerável da capacidade de atenção que você recarrega todo dia ao dormir.
Tristan Harris, que já trabalhou como eticista no Google, afirma que as redes sociais utilizam técnicas semelhantes às dos caça-níqueis para capturar a atenção dos usuários. Uma delas é arquitetar o mecanismo para facilitar que o jogo não acabe nunca. Nas redes, o mecanismo que faz isso é a rolagem de tela infinita, criada há cerca de dezoito anos por Aza Raskin, sócio de Harris no Centre for Humane Technology (Centro para Tecnologia Humana), entidade sem fins lucrativos que procura educar os usuários de tecnologia sobre seus efeitos adversos.
O problema é que a lógica “gamificada” já se espalhou por todas as áreas da internet – e, assim como nos cassinos tradicionais, quem ganha sempre é a casa. Já reparou como até pra comprar remédio em farmácia você ganha pontos e recebe a proposta de “cumprir missões”, sempre em aplicativos coloridos?
Redes sociais têm todos os ingredientes de uma experiência viciante, segundo o psicólogo australiano Adam Alter, autor de Irresistível: Por que você é viciado em tecnologia e como lidar com ela. Elas oferecem metas que os seus usuários podem seguir (chegar a um número alto de curtidas, por exemplo), dão feedback a quem se mantém ligado, por meio de recompensas variáveis (postagens mais ou menos engajantes, você nunca sabe o que vem a seguir) e alimentam a ilusão de progresso, quando se obtém números crescentes de seguidores. Existem “cliffhangers” como em séries, os famosos “ganchos”, porque dependendo do assunto há um suspense sobre como ele vai se desenvolver. E, obviamente, elas promovem uma certa interação social de baixa intensidade mas alta frequência.
Entre os aplicativos que mais enviam notificações que interrompem o usuário estão os de mensagens instantâneas e de redes sociais. Por isso, vale pensar em desativar no próprio telefone todos os avisos que eles possam querer enviar.
Nas redes sociais, você pode selecionar quais alertas você aceita receber. Nos filtros avançados do X, antigo Twitter, dá para silenciar notificações de pessoas que você provavelmente não conhece. Assim, se algum perfil apócrifo surgir para te xingar, isso não aparecerá como algo que você precisa observar naquele instante.
No Facebook, você pode desativar notificações de alguns tipos de mensagens, como das publicações em que você já comentou, ou de menções em lote, ou de grupos dos quais participa. Avalie caso a caso o que faz mais sentido – ou experimente cancelar tudo de uma só vez, reativando só o que fizer falta.
Dá para acionar o mesmo recurso no Instagram e no LinkedIn.
No Whatsapp, você pode desativar as notificações para novas mensagens, especialmente os sons. Se a sua conta for convertida para Whatsapp Business, em que você pode na prática atuar como uma empresa, você pode definir “horários de funcionamento”, fora dos quais quem tentar lhe enviar uma mensagem recebe a informação de que deveria voltar a te procurar no dia seguinte.
O smartphone concentrou em si tarefas que demandavam inúmeros aparelhos, como ouvir música e guardar os contatos das pessoas. Com as redes sociais, tornou-se a segunda tela na sala de estar e no trabalho; hoje, pode-se considerar até que é a primeira.
Duas décadas atrás, quem quisesse falar ao telefone e também ouvir música precisava carregar dois aparelhos – o celular e um walkman, ou discman, ou talvez um iPod ou outro tocador de MP3. Para consultar mapas, taxistas carregavam sob o banco um volumoso guia da cidade e precisavam estacionar sempre que tivessem de consultá-lo. Para quem precisasse acessar sua agenda ou atualizar planilhas pela estrada, também havia assistentes digitais, os “PDAs”. Fotografar e fazer vídeos dependia de carregar câmeras específicas; algumas cabiam no bolso. Há 23 anos, a Levi’s chegou a lançar uma calça cheia de bolsos discretos para carregar todos os aparelhos.
Quem tem mais de 40 anos, como Johann Hari, cresceu nesse mundo. Quando foi pesquisar para seu livro, ele se desconectou completamente e foi passar um tempo numa cidade pequena. Sentiu um pouco de ansiedade no começo, mas fez as pazes com os minutos de tédio. Descobriu que era justamente nesses momentos que surgiam ótimas ideias. Quando se vive praticamente todas as horas que se passa acordado apenas para trabalhar e consumir conteúdo, ouve-se pouco as próprias ideias, percebeu. Só que, ao retomar a rotina, os hábitos digitais começaram a voltar também.
Hari ouviu diversos especialistas e concluiu que mudanças de atitude individuais ajudam, mas são insuficientes. Não resolvem o problema maior: o foco da humanidade foi roubado por um modelo de negócio. Esse modelo é o padrão atual, projetado pelos mais capazes engenheiros do planeta para se tornar irresistível – e com a adoção massiva da inteligência artificial pode se tornar ainda mais irresistível. Isso é ruim, diz ele, porque apenas estando plenamente conscientes dos problemas que nos cercam é que chegamos a soluções para eles. Distraídos, não sobra tempo sequer para enxergá-los.
A piauí tentou contato com Hari, mas recebeu resposta automática informando que ele está até março de 2024 na região rural da Jamaica, longe do celular e do laptop, checando seus e-mails apenas uma vez por semana. Sua assistente até sabe como achá-lo no telefone fixo em caso de emergência, só que logo depois de informar o e-mail dela, ele avisa: “mas vou te xingar por interromper minha paz! 🥰”