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questões cinematográficas

“Vincere” e “San Clemente” – Belocchio e Depardon

Quem assistiu “Vincere”, um dos melhores filmes de 2010, sabe que Ida Dalser, primeira mulher de Benito Mussolini e personagem principal do roteiro escrito e dirigido por Marco Bellocchio, foi internada no hospital psiquiátrico San Clemente, numa pequena ilha, ao largo da praça São Marcos, em Veneza.

| 04 mar 2011_13h03
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Quem assistiu “Vincere” , um dos melhores filmes de 2010, sabe que Ida Dalser, primeira mulher de Benito Mussolini e personagem principal do roteiro escrito e dirigido por Marco Bellocchio, foi internada no hospital psiquiátrico San Clemente, numa pequena ilha, ao largo da praça São Marcos, em Veneza.

O que nem todos sabem, e não vi comentado, é que o fotógrafo e documentarista Raymond Depardon fez, em 1980, um documentário sobre esse mesmo hospital, na ocasião ameaçado de fechamento – “San Clemente”, co-dirigido por Sophie Ristelhuerber, também técnica de som do filme.

Depardon fizera reportagens fotográficas em San Clemente, a partir de 1977, ano em que foi votada uma lei de reforma do sistema psiquiátrico italiano. Sancionada em 1978, determinava o fechamento dos asilos, além de prioridade à assistência extra-hospitalar e comunitária. Apesar de ter ficado conhecida como “Lei Basaglia”, o próprio psiquiatra Franco Basaglia (1924-1980), defensor da anti-psiquiatria, renegava o nome por considerar que não correspondia às suas ideias.

Basaglia teria dito a Depardon que “Veneza é um grande hospital psiquiátrico”, o que recebe confirmação de um interno,  no filme, quando diz não gostar da cidade por que ela “é uma confusão”.

Sem saber italiano, Depardon segue os internos de maneira ostensiva e insistente. Depois de ser expulso no primeiro plano do filme e de só ter consigo continuar a filmagem graças à intervenção de Basaglia, a câmera de Depardon se impõem aos homens e mulheres internados, apesar de ser rejeitada e atacada por eles mais de uma vez.

Ao contrário do hospital para criminosos insanos de Bridgewater, em Massachusetts, nos Estados Unidos, onde Frederick Weiseman filmou “Titicut Follies”, em 1967, os internos de “San Clemente” têm certa margem de autonomia e de liberdade para se manifestar. Enquanto a câmera de “Titicut Follies” enfrentou no máximo olhares enfurecidos, a de Depardon, assim como seu microfone, foram atacados diretamente.

A presença da pequena equipe, formada por duas pessoas, é mal acolhida pelos pacientes. Uma senhora diz à técnica de som e co-diretora que ela “deve procurar um trabalho honesto”. Outra, dirigindo-se a Depardon, manda ele “cuidar das cebolas dele” e diz que “está enchendo o saco”. Uma terceira ataca a câmera com uma vassoura aos gritos de “vá embora!”,  “pare com isso!”. Outra ameaça bater na câmera com uma sacola. Um interno faz cabo-de-guerra com a técnica de som, segurando o microfone com força. Outro interno põe o microfone na boca. Nada do quê parece abalar Depardon, que não para de filmar.

Quando o médico pergunta a um interno se ele sabe o que a equipe de filmagem está fazendo, a resposta revela percepção lúcida do que pode estar acontecendo: “Sim, eles são ‘parapazzi.’ [sic]”. O médico sorri e corrige: “‘Paparazzi’, você quer dizer?”. “Sim, sim”, o interno responde, sorrindo também.

A vida dos internos em San Clemente, conforme filmada por Depardon, não é nenhum paraíso. Há casos de agreesão e desesperança, acentuada pela fotografia em preto e branco. Mas também existe um espírito anárquico, certo grau de tolerância, alguma liberdade, que tornam possível, inclusive, que internos circulem fantasiados pelas ruas de Veneza durante o Carnaval e posem para fotografias ao lado de turistas.

Nada disso seria concebível no sistema carcerário mostrado em “Titicut Follies”, onde os internos são mantidos nús, trancados em celas individuais, alimentados à força quando se julga necessário, submetidos a abusos verbais dos guardas e ao escrutínio impiedoso da câmera de Weiseman, operada por John Marshall.

Weiseman sugere no filme que só se sai morto de Bridgewater. Em 1987, vinte anos depois da filmagem de “Titicut Follies”, cinco internos morreram no hospital, sendo três por suicídio, o que indica que a sugestão de Weiseman continuava válida.

É verdade, por outro lado, que no registro documental de “San Clemente” não há lugar para projeções ao ar livre de “O Garoto”, como visto na encenação colorida de “Vincere”, feita por Belocchio. A câmera de Depardon mostra apenas desoladora sala com uma televisão, no alto da parede, transmitindo a missa.

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