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    "Essa minha amiga ficava na sala dos dinossauros. Posicionava-se ao lado do fóssil do Dinoprata e orgulhosamente entoava o nome científico do animal. Nunca esqueci: Maxakalisaurus topai" FOTO_DIVULGAÇÃO_SAE_MUSEU NACIONAL/UFRJ

história pessoal

À vista de todos, o museu esquecido

Repórter reconstitui seus dias de educadora no Museu Nacional, que despertava a curiosidade pelo rico acervo e pela estrutura precária

Yasmin Santos | 03 set 2018_19h26
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Chegavam aos pulos. O ônibus escolar estacionava em uma das entradas da Quinta da Boa Vista e dali saíam algumas dezenas de crianças, ansiosas, geralmente pela promessa de se deparar com um dinossauro. As origens eram das mais variadas – escolas públicas e privadas, de bairros vizinhos, zonas nobres ou cidades distantes. O Museu Nacional era onde todas essas tribos escolares se encontravam.

Toda visita educativa era um potencial reencontro do mediador com o seu “eu” infantil. Não que isso fosse tão difícil. A equipe de mediadores era formada por jovens entre 15 e 20 e poucos anos de idade, todos estudantes do Colégio Pedro II ou da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estavam ali fazendo iniciação científica em alguma das áreas oferecidas pelo museu.

Uma dupla de educadores, vestidos com uma camisa amarelo-ovo ou um colete acinzentado, surgia no hall principal pelo corredor direito. A fala da dupla disputava a atenção dos visitantes com o meteorito Bendegó. Experientes, os mediadores sabiam como virar o jogo: desafiavam o público a levantar o meteoroide. As crianças não mediam esforços, e muitos adolescentes se sentiam pessoalmente afrontados, como se o meteorito fosse uma espécie de espada Excalibur. Durante os cinco meses em que lá trabalhei, não vi a peça de mais de cinco toneladas ser levantada por nenhuma mão humana. E nem poderia.

Difícil era lidar com alguns visitantes adultos. Quando chegavam à sala do mobiliário real, decepcionavam-se, descontavam no mediador e batiam em retirada. A imensa maioria dos itens expostos exclusivamente no Museu Nacional, o maior de história natural da América Latina, para eles era irrelevante.

 

O Museu Nacional foi a casa da família real no século XIX e seu acervo inicial foi constituído a partir de acordos diplomáticos, com compras, trocas e contrabandos realizados por D. João VI, Pedro I e a imperatriz Leopoldina. Apesar da pompa, o prédio está localizado no subúrbio carioca, em São Cristóvão, na Zona Norte da cidade. Nele, todo mundo podia ser rei e ter o seu próprio dinossauro por um dia.

Fui bolsista de comunicação no setor educativo do museu entre outubro de 2016 e fevereiro do ano seguinte. Antes disso, havia visitado o lugar apenas pelos olhos de uma amiga minha. O Museu Nacional era um lar para ela. Falava sobre o acervo com um certo brilho no olhar. Quando comecei a trabalhar lá, vi o mesmo brilho se repetir nos olhos daquela turma de educadores. Cada um tinha uma exposição para chamar de sua.

Essa minha amiga ficava na sala dos dinossauros. Posicionava-se ao lado do fóssil do Dinoprata e orgulhosamente entoava o nome científico do animal. Nunca esqueci: Maxakalisaurus topai. Uma outra preferia Kumbukumbu, sala sobre etnologia africana. Há quem se viu sem chão desde que o fóssil da baleia jubarte gigante parou de ser exposto, durante pelo menos dez anos. Dentre todas as salas, a mais disputada, tanto pelos visitantes como pelos mediadores, era a do Egito.

Fui muito mais espectadora do que educadora. Aos domingos, preferia receber os visitantes na sala sobre a tribo tikuna. Ela havia sido projetada como um espaço de transição entre a etnologia e a arqueologia indígena. Desde a interdição da escada principal do prédio, tornou-se uma sala de passagem. Os visitantes subiam até o segundo andar por uma escada lateral. O corrimão, de madeira maciça, há muito parecia frouxo, como se prestes a ceder. Os degraus rangiam, e o chão também. Havia uma placa que impedia o acesso para o terceiro andar pela continuação daquela escada.

O Museu Nacional não mascarava sua precariedade. Muitas vezes, seu roteiro de visitação parecia um labirinto. Sem ajuda de um mediador, muitos visitantes se perdiam e davam de cara com salas fechadas. Em dias quentes, o calor era insuportável. Não havia ar-condicionado ou ventiladores no espaço expositivo. Um olhar mais atento seria ainda capaz de observar paredes descascadas e fios elétricos expostos.

Apesar dos cortes de verba expressivos, o setor educativo se esforçava para se reinventar. Em 2017, a Seção de Assistência ao Ensino se uniu ao Departamento de Geologia e Paleontologia do museu para criar o curso “Meninas com Ciência”, que recebeu menção honrosa no Prêmio Ibero-americano de Educação e Museus. As aulas, ministradas por biólogas, astrônomas, geólogas e educadoras, eram voltadas para meninas cursando o ensino fundamental e abordavam a importância das mulheres nessas áreas. No mesmo ano, o setor também havia retomado o projeto “Tem criança no Museu: de férias com a ciência”, voltado para crianças entre 5 e 7 anos. Ambos gratuitos.

Durante um evento de gastronomia que aconteceu na Quinta da Boa Vista, a seção de ensino também mobilizou seus mediadores e pôs sua coleção nas ruas. Numa tenda cedida pela organização do evento ficaram expostos besouros, borboletas, cobras, estrelas-do-mar, além de animais taxidermizados como uma arara-azul, um tucano e um bicho-preguiça. Esse foi um dos muitos momentos em que ouvi pessoas surpresas ao descobrir que o museu era aberto à visitação. A falta de repasses fez o Museu Nacional abrir e fechar as portas tantas vezes que até os próprios moradores do bairro achavam que ele já era uma instituição decorativa.

 

Por volta das oito horas da noite, uma sequência de carros de bombeiros passou a toda velocidade pela avenida Maracanã, em frente ao apartamento que divido com duas amigas. Chequei meu celular. Fui noite adentro acompanhando a cobertura com elas. Na sala, sentamos ao chão com dois notebooks, uma tevê ligada e quatro celulares a postos. Era como se estivéssemos tentando fazer fact-checking e tentando provar que esse não teria sido o sexto incêndio sofrido pela UFRJ desde 2011.

Enquanto o museu era consumido pelas chamas, eu tentava reconhecer, pela tevê, alguma obra do acervo, qualquer que fosse. Tracei alguns raciocínios ilógicos na esperança de que minhas amigas me dessem razão. Lembrei da pequena reforma que aconteceu na exposição sobre o Egito e repeti, em voz alta, que a esquife da Sha-amun-en-su, a cantora favorita do imperador, poderia ter resistido ao fogo. Infelizmente não é verdade.

No dia seguinte, quando vi a fachada do museu, oco, foi como se meu coração gritasse. Só esse vazio me fez ver o fim; algo em que ainda reluto em acreditar.

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