O mais recente filme de Pedro Costa chegou ao Festival do Rio em dezembro, trazendo galardões conquistados nos festivais de Mar del Plata, Locarno, La Roche-sur-Yon, Gijón, Coimbra e Chicago, onde, além do Leopardo de Ouro, Astúrias, Grande Prêmio do Júri, Cidade de Coimbra e Hugo de Prata, recebeu ainda prêmios de Melhor Diretor, Melhor Ator, Melhor Atriz e Menção Especial do Júri Ecumênico.
Ao ser exibido três vezes no Festival do Rio, porém, mesmo com pelo menos duas dessas sessões lotadas, tais louros colhidos mundo afora não foram suficientes para Vitalina Varela causar o alarido com o qual os filmes de Pedro Costa merecem ser recebidos. Não tanto por essa estimulante e crescente balbúrdia que vêm provocando no circuito dos festivais, mas antes, e principalmente, por terem consolidado um modo original de fazer cinema, inaugurado há vinte anos com No Quarto da Vanda, que propiciou a criação de uma obra de grande valor, antagônica ao modelo de produção industrial dominante no mundo.
Os parâmetros definidos por Costa para a realização de seus filmes têm como fundamento interação pessoal intensa e, portanto, necessariamente prolongada, entre diretor e atriz ou ator principal. Interação afetiva da qual resulta, de comum acordo, o que será filmado. Outros fundamentos essenciais são equipe mínima – de quatro pessoas em Vitalina Varela –, orçamento reduzido, filmagem longa – durando alguns meses –, e repetição dezenas de vezes de cada plano filmado. Trata-se para Costa, em grande parte, de assegurar a liberdade necessária para não ser cerceado por prazos, cronogramas rígidos e fatores contingentes.
O resultado desse processo é, por vezes, mais extenuante do que deleitoso para o espectador afeiçoado à concepção do cinema como forma consolidada de entretenimento ligeiro. O que Costa tem a oferecer ao seu público é a rara oportunidade de testemunhar uma amostra da experiência intensa vivida por ele e sua atriz ou ator principal, experiência difícil que exige disciplina e convicção férreas, mas tem demonstrado ser gratificante para os envolvidos.
Não é à toa que após a projeção de Vitalina Varela no IMS Rio, durante o Festival do Rio, Costa respondeu com um surpreendente e enfático “não” à inocente pergunta feita pela celebrada editora Jordana Berg, que estava na plateia. “Você poderia falar sobre a montagem do filme”, ela perguntou. A recusa, Costa explicou, devia-se à montagem ser a etapa mais angustiante da feitura de um filme para ele. Por exigir a escolha de apenas uma entre as dezenas de opções filmadas de cada plano e definir qual a fração de segundo exata em que cada plano irá começar e terminar.
Para Costa, o prazer de realizar o filme está em descobrir pouco a pouco, sem roteiro prévio e em colaboração íntima com a atriz ou o ator principal, o que será filmado e, depois, ir tateando take a take até acreditar que o fragmento da história a ser narrada foi transposto de modo satisfatório para a linguagem visual e sonora do cinema. Foi essa forma de elaboração dramática, desenvolvida a partir da experiência de vida real da atriz ou do ator, que fez de Costa um diretor incomum a partir de No Quarto da Vanda.
A peculiaridade do procedimento criativo de Costa é realçada quando lemos a transcrição de um trecho, em especial, da mesa-redonda de diretores promovida pela revista Hollywood Reporter, da qual participaram Martin Scorsese, Greta Gerwig, Noah Baumbach, Todd Phillips, Fernando Meirelles e Lulu Wang, publicada com o título “A Revolution of Cinema”, em 23 de dezembro (disponível na íntegra aqui).
“Do que você mais gosta ao fazer um filme?”, pergunta o produtor executivo da mesa-redonda, Stephen Galloway:
“MEIRELLES: Adoro editar.
SCORSESE: Eu também.
PHILLIPS: Sempre dizemos: fazer um filme é o preço que se paga para chegar à sala de edição.
MEIRELLES: Eu vou ao set principalmente para colher coisas, para poder ir à sala de edição. Quieta. Escura. E então você pode alterar o script inteiro. Você muda a atuação. Você muda tudo.
SCORSESE: Tudo.
PHILLIPS: Diretores são, por natureza, obcecados por controle, e não há lugar onde você tenha mais controle do que na sala de edição. Estar no set é divertido. Escolher o elenco de um filme é divertido. Mas é meio fora de controle. Você chega à sala de edição e finalmente está em controle. […]
BAUMBACH: É a única forma de arte existente na qual você realmente precisa terminar o que está fazendo no prazo previsto. Seu limite é quando o sol se põe. Você nunca terá de novo a mesma locação com as centenas de pessoas que tem naquele momento. Mas você quer [esses] parâmetros.
MEIRELLES: Você está sempre lidando com o tempo e negociando consigo mesmo. Isso é muito difícil. Isso é doloroso.”
Não se trata aqui de valorizar Costa em detrimento do grupo de bem-sucedidos diretores que participaram da mesa-redonda da Hollywood Reporter. Mas apenas de indicar a diferença radical de perspectiva existente entre as duas posturas, ambas lidando, cada uma à sua maneira, com as tensões inerentes à realização de um filme. Costa criou condições próprias para trabalhar com independência à margem do sistema industrial, correndo os riscos da imprevisibilidade. Os outros cineastas procuram lidar com as restrições que lhes são impostas pelo modo de produção dominante.
Foi durante a filmagem de Cavalo Dinheiro, no outono de 2013, quando estava à procura de uma locação para filmar, que Costa recebeu a indicação de uma casa na Cova da Moura (bairro na Região Metropolitana de Lisboa ocupado por imigrantes vindos das ex-colônias portuguesas). Ao se aproximar, a porta abriu e lá estava Vitalina Varela, recém-chegada de Cabo Verde, onde esperara em Figueira das Naus, desde 1977, a volta de seu marido até receber há pouco a notícia de que ele morrera.
Na entrevista a Michael Glover Smith, publicada em outubro de 2019 no blog Cine-File, Costa explicou que “o filme começou a tomar forma quando comecei a visitar Vitalina no bairro da Cova da Moura e conversar com ela todos os dias. Tivemos longas conversas. Quando percebi a intensidade da dor e do sofrimento que Vitalina estava enfrentando, pensei que o filme seria impossível. Eu disse a ela que talvez não funcionasse. Ela continuou dizendo: ‘Se houver amor, as coisas vão dar certo!’ Eu ficava dizendo a ela: ‘Mas suas palavras estarão no filme, elas serão o filme!’ Ela continuou dizendo: ‘Você precisa!’ Conversávamos todos os dias. Ela me contou sobre ela mesma e sobre seu marido fugitivo Joaquim, sobre a vida de camponesa em Cabo Verde e a vida de imigrante em Lisboa… No começo era a palavra, e a palavra era Vitalina”.
Ao encerrar essa mesma entrevista, Costa disse ainda: “Todos sabemos que pessoas como Vitalina, Ventura [personagem principal de Juventude em Marcha (2006) e Cavalo Dinheiro (2014)] ou Vanda são condenadas. Quando o barco sai do porto, no minuto em que o avião decola, eles estão condenados. Desde o dia em que nascem. E talvez eles tenham sido condenados muito antes disso. Simplesmente culpados. Não posso dar muito aos meus amigos cabo-verdianos. Não posso dar-lhes muito dinheiro, não posso dar-lhes um futuro brilhante, não posso dar-lhes esperança. Mas talvez haja muito a ganhar com nosso trabalho no cinema. O cinema pode esclarecer tudo e, de alguma forma, aqueles que foram prejudicados serão vingados. Um doce milagre, de fato. Ventura cita a carta de São Paulo aos Filipenses: “Nosso país está no céu.” E ele acrescenta: “Mas o medo também pode entrar no céu.”
As inúmeras entrevistas de Pedro Costa publicadas sugerem que a presença dele no Brasil, durante o Festival do Rio, foi em parte desperdiçada. Nas duas vezes em que o ouvi falar no IMS Rio, nada disse remotamente comparável, por exemplo, ao interesse das declarações citadas acima e da que deu a Michael Guarneri, publicada em Débordements (11/11/19), da qual seguem abaixo dois trechos para finalizar.
“Se você é um cineasta sério, se está empenhado em trabalhar em certos lugares com certas pessoas, lidando com a história desses lugares e com a história dessas pessoas, e se você é um pouquinho devotado ao seu ofício, precisa quebrar a cabeça para que seu trabalho se transforme em algo que transcenda os clichês. Você [referindo-se à pergunta do entrevistador] disse ‘pobre’, mas para mim trata-se de pessoas desesperadas, trata-se da luta delas – uma luta interna na profundeza de si mesmas e uma luta externa contra o muro que foi construído ao seu redor, contra o silêncio que caiu sobre elas. Estou trabalhando em uma comunidade muito perturbada e desorientada: essas pessoas costumavam ser camponesas em Cabo Verde, depois migraram para Lisboa para trabalhar; em Portugal, foram explorados sem piedade, precisavam do dinheiro… não sei em que etapa de progresso ou derrota do capitalismo estamos agora… sei que só posso trabalhar com essa confusão. É muito arriscado e desafiador, mas não tenho interesse em cenários seguros.”
E para concluir: “É preciso certa coragem para dizer olá. Mas é preciso muito trabalho para dizer adeus. Não é fácil. No fundo, Vitalina Varela fala sobre Vitalina se despedir de muitas coisas. No final do filme, é a nossa vez de dizer adeus a Vitalina: todos os filmes devem se despedir de seus personagens, é inevitável. Dito isto, vamos pensar brevemente em António Reis e Mikio Naruse. [Pausa] Quanto a mim, depois de tudo o que Vitalina suportou, depois de toda a luta e dor de sua via-crúcis, eu não queria que o filme a trancasse dentro de sua casa na Cova da Moura. Teria sido uma condenação. Teria sido fácil, condescendente e estúpido. Então a pergunta era: como podemos dizer adeus a Vitalina e fazer justiça a ela? Bem, assim como em Cavalo Dinheiro, com o qual forma um par, Vitalina Varela me pareceu um esforço para voltar no tempo, não por razões nostálgicas ou melancólicas, mas para enfrentar um monte de velhos sonhos e pesadelos. Durante Vitalina Varela, Vitalina volta e volta, então eu pensei que, no final do filme, ela deveria voltar ao começo, e o começo é, é claro, o começo de sua história de amor com Joaquim [o marido cuja morte a fez viajar para Portugal], a primeira faísca de amor e felicidade.”
Está previsto, sem data confirmada, o lançamento este ano de Vitalina Varela, no Brasil.