Há um idoso centenário cujo futuro é incerto. Salvo se, tendo sido desenganado, na verdade sejamos nós a não admitir o desenlace previsto. Portador de comorbidades seculares, ao ser infectado pelo Sars-Cov-2, ele – o cinema brasileiro – entrou para o rol de vítimas da sindemia, uma ação devastadora conjunta resultante de dois ou mais vetores, conforme aprendi com o grupo de médicos e cientistas com o qual tive o recente privilégio de conversar. A própria Covid-19 seria não uma pandemia, mas uma sindemia, situação em que “duas ou mais doenças interagem de tal forma que causam danos maiores do que a mera soma dessas enfermidades”, conforme definição do médico e antropólogo americano Merrill Singer, inventor do termo na década de 1990 – “o impacto dessa interação também é facilitado pelas condições sociais e ambientais que, de alguma forma, aproximam essas duas doenças ou tornam a população mais vulnerável ao seu impacto.” (https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54493785)
Em A nossa desimportância, o manuscrito, de 1964, comentado aqui na semana passada, Paulo Emílio Sales Gomes afirma que continuamos “na mesma trilha de probleminhas irresolutos e irresolvidos que, em última análise, só a nós apoquenta”. Enunciado mordaz, porém válido até hoje. Nosso cinema vem percorrendo esse caminho de obstáculos recorrentes há um século e continua seguindo o mesmo trajeto. Devemos admitir, portanto, sermos corresponsáveis por nunca terem sido sanadas as aflições estruturais que impedem nossa atividade de se tornar autossustentável.
Seduzidos quando há disponibilidade de recursos subsidiados em conjunturas favoráveis, nos dedicamos mais a fazer filmes do que a criar instituições e meios de produção permanentes, postura que acentuou nossa dependência dos humores voláteis da política. Para não ser injusto, no entanto, é preciso reconhecer que alguns de nós se empenharam em aprovar leis protecionistas, definir normas e criar órgãos estatais que atuassem a favor do cinema brasileiro, corrigindo distorções de mercado e assegurando condições necessárias para que a produção nacional pudesse existir. Paulo Emílio foi um desses batalhadores. Ele deu seu depoimento e acompanhou o trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que “até os fins de março de 1964 […] já havia alguns meses investigava pacientemente as modalidades de fabricação e de importação de filmes”, conforme escreveu no manuscrito mencionado acima. “Em matéria de cinema” era “o que sucedia de importante”, mas na virada de março para abril daquele ano, após o golpe civil-militar, essa acabou sendo mais uma entre tantas tentativas frustradas de propor medidas efetivas para resolver as disfunções do nosso cinema. Ao longo dos anos, esforços reiterados levaram a medidas paliativas e resultados efêmeros, culminando, em 2001, com a criação de órgão público que tem a missão de “promover a cultura nacional e a língua portuguesa, mediante o desenvolvimento da indústria cinematográfica e videofonográfica nacional”. Instituição que acabou se tornando uma estrutura inerte, sem autonomia do governo federal, acumulando funções incompatíveis, tendo sido contaminada com o vírus da hipertrofia burocrática e do gigantismo.
Uma vez superados os malefícios causados pela sindemia, resultante da interação entre desgoverno federal e Covid-19, o que poderá ocorrer a partir de 2023, ainda restará sanar as deficiências crônicas que afligem o cinema brasileiro – inexistência no mercado interno de termos justos de competição entre produção nacional e importada somada à falta de meios de financiamento adequados para assegurar a atividade de produtores independentes empenhados em realizar filmes de mérito artístico e cultural.
Antes que criaturas malévolas perguntem quem decidirá quais projetos têm ou não “valor artístico e cultural”, vale esclarecer: mesmo sem haver resposta cem por cento satisfatória para essa questão, se quisermos sair do pântano em que afundamos é imperioso assumir o risco da incerteza própria da produção cinematográfica, uma indústria de protótipos, na definição precisa de René Bonnell. Sem meios para concorrer em termos comerciais com o produto estrangeiro, a busca de excelência artística e cultural é o único critério, por mais subjetivo e imperfeito que seja, para avaliar projetos e resolver quais investimentos fazer. Quem decide precisa deixar de ser anônimo e responder por suas escolhas, e o ridículo sistema escolar de pontuação, atualmente em vigor, precisa ser abolido.
A crise crônica do cinema brasileiro independe das trágicas circunstâncias conjunturais, sanitárias e políticas, destes tempos. Ainda assim, tenho impressão de que, além dos transtornos causados pela Covid-19 relacionados ao lançamento de produções nacionais, há outro fator a considerar – produções concebidas e realizadas antes de 2020 revelam, muitas vezes, ter sofrido envelhecimento precoce ao finalmente chegarem à tela grande e ao streaming. As exceções são filmes que mostram capacidade de articular uso criativo da linguagem com temas de valor intemporal, desvinculados de situações e personagens paroquiais de interesse passageiro. Qual seria a origem dessa perda de sintonia com a atualidade?
Em conversa com Jean-Claude Bernardet, da qual Rubens Rewald participou, em janeiro, no programa #DomingoAoVivo do canal 3 em Cena, Bernardet discordou da hipótese de atribuir à pandemia influência por “uma geração inteira de filmes brasileiros ter envelhecido” antes da hora, conforme observei na ocasião. Para ele, “os filmes já estavam atrasados e não queríamos ver. Desse ponto de vista, não mudou nada… A pandemia talvez tenha ajudado a perceber o que já existia”.
Divergência à parte, quero crer que estamos de acordo no essencial – nosso cinema vai mal, e não é de hoje. Acredito que permanecerá assim enquanto, em última análise, só a nós apoquenta, retomando os termos ácidos de Paulo Emílio.
Sem projeto cultural e político, além de inexistir vínculo firme com o público, é difícil imaginar que poderemos superar o impasse que restringe o cinema brasileiro a filmes eventuais, de mérito reconhecido em festivais mundo afora, mas com pouca ou nenhuma repercussão em âmbito interno e deficitários como os demais.
Sintoma adicional da nossa falta de importância, assinalada também por Paulo Emílio, é o eloquente silêncio geral a respeito da semiparalisia da produção cinematográfica desde 2019, no Brasil, desconsiderada também por grande parte da mídia. Enquanto isso, lágrimas são derramadas pelo fechamento definitivo do cinema Roxy, em Copacabana, e duas páginas no Segundo Caderno de O Globo são dedicadas, em 7 de junho, à queda de frequência nos cinema da ordem de 90% (comparando maio de 2021 com o mesmo mês de 2019), às sessões canceladas e a 50% das salas estarem fechadas, segundo pesquisa do portal Filme B. Não se trata de menosprezar o desaparecimento de uma sala que marcou época no Rio, muito menos ignorar a grave crise do circuito exibidor, consequência direta das indispensáveis medidas sanitárias decorrentes da pandemia. O que vale assinalar é o contraste entre o destaque dado aos problemas dos exibidores e a ausência sequer de menção às dificuldades vividas por produtores, diretores, técnicos, atores, prestadores de serviço etc.
Tive a ideia de incluir uma foto do Etna nesta coluna por ser um vulcão cinematográfico. É o mais alto e ativo da Europa, e oferece espetáculos periódicos desde 475 a.C. O mais recente jato de rochas e lava ocorreu domingo passado, 27 de junho, tendo iniciado a erupção em fevereiro deste ano.
Pier Paolo Pasolini (1922-75) filmou alguns de seus filmes no Etna, inclusive O Evangelho Segundo São Mateus (1964), mas o primeiro a filmar o vulcão em atividade pode ter sido Jean Epstein (1897-1953). Ele foi à Sicília, em 1923, para fazer A Montanha Infiel, reportagem que não sobreviveu ao tempo, e publicou O Cinematógrafo visto do Etna, em 1926, ensaio teórico e relato sobre a filmagem. Seguem as linhas iniciais em tradução de Íris Araújo e Mateus Araújo, publicada no catálogo do forumdoc.bh de 2011:
“Sicília! A noite era um olho cheio de olhar. Todos os perfumes gritavam ao mesmo tempo. Uma mola desmontada parou nosso carro cercado de lua como de um mosquiteiro. Fazia calor. Impacientes, os motoristas interromperam a mais bela novela para bater na carroceria a grandes golpes de chave inglesa, injuriando o Cristo e sua mãe com uma fé cega. Diante de nós: o Etna, grande ator que faz brilhar seu espetáculo duas ou três vezes no século e cuja fantasia trágica eu chegava para cinematografar. Toda uma vertente da montanha era somente uma gala de fogo…”
De tempos em tempos, o Etna oferece espetáculo fascinante que atrai e encanta quem o observa – são qualidades às quais todo filme almeja.