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    Mousinho, Bianchini e Martins com o processo – INTERVENÇÃO DE PAULA CARDOSO SOBRE FOTO DOS ADVOGADOS

questões jurídicas

Vítimas de Mariana cobram R$ 25 bi de mineradora BHP na Inglaterra

Juiz deve decidir em junho se vai julgar o processo, o maior em número de vítimas da história do Reino Unido

Consuelo Dieguez | 13 set 2019_18h04
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Uma ação movida por vítimas do maior desastre ambiental brasileiro – o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, em 2015 – tem chance de se transformar no maior processo da história do Reino Unido em número de vítimas e o segundo maior em valor. A barragem é da empresa Samarco, pertencente a duas gigantes da mineração mundial – a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton. O escritório inglês SPG Law, que atua em parceria com um grupo de advogados americanos, está processando a BHP Billiton na corte britânica por sua responsabilidade no maior desastre ambiental brasileiro e o único dessa natureza no mundo. Pela devastação que provocou, a BHP pode ser obrigada a pagar indenização no valor estimado de 5 bilhões de libras, algo em torno de R$ 25 bilhões, a 200 mil vítimas do vazamento, incluindo 700 empresas, 25 municípios, 3 comunidades indígenas e 1 diocese, a de Mariana, em Minas Gerais.

Nesta sexta-feira, 13 de setembro, o juiz Stephen Eyre se reuniu em uma sala no tribunal de Justiça de Manchester com os advogados que representam as vítimas e os da BHP.  Marcou nova audiência para o dia 9 de junho, quando vai ouvir formalmente as partes. Depois disso, num prazo de seis a oito semanas, decidirá se aceita ou não julgar o caso (se tem jurisdição sobre o processo). Se entender que sim, o processo segue adiante, e o juiz britânico passa a despachar temporariamente no Brasil para dar curso ao julgamento. A expectativa é de que, nesse caso, o julgamento aconteça num hotel em Belo Horizonte. Ao fixar o prazo de 9 de junho, o juiz afirmou tratar-se de um tempo razoável para que as partes possam apresentar seus argumentos sobre a conveniência ou não da Corte britânica ser o foro adequado para o julgamento da ação, já que se trata de uma ação “muito complexa”.

Ao mesmo tempo, o juiz considerou que este também é um prazo que faz justiça aos requerentes, ou seja, as vítimas do rompimento da barragem, que, segundo ele, não podem ficar esperando indefinidamente por uma decisão judicial. Embora esta primeira audiência  – que começou às 11 da manhã e foi até às 5h30 da tarde (horário britânico) – tenha ocorrido em Manchester por questões logísticas, o caso continua sob a jurisdição da Justiça de Liverpool, onde fica a sede do escritório de advocacia que defende as vítimas.  

Os advogados da BHP Billiton, segundo assessoria de imprensa da empresa em Belo Horizonte, argumentam que não há sentido a causa ser julgada pela Corte britânica, já que o desastre aconteceu no Brasil. Em nota liberada durante a tarde desta sexta, a BHP afirma que “os pedidos feitos no Reino Unido duplicam questões que são ou foram objeto de procedimentos legais pré-existentes no Brasil e que estão também sendo atendidas através do trabalho que é conduzido pela Fundação Renova”, que representa as três empresas responsáveis pela tragédia: a BHP, a Vale e a Samarco. Para a BHP, o Judiciário brasileiro e a Fundação Renova “devem tratar de questões resultantes de um evento que ocorreu no Brasil e deve ser julgado de acordo com as leis brasileiras, como vem acontecendo nos últimos quatro anos.” A BHP alega ainda que, até primeiro de setembro, a Fundação Renova pagou R$ 1,76 bilhão em indenização e auxílio-financeiro aos atingidos.

O descontentamento com a Renova, entre as vítimas, porém, é grande. Segundo advogados que as representam, a população afetada não considera que as compensações foram feitas de forma adequada. Além disso, ainda de acordo com os advogados, a grande maioria de seus clientes não recebeu qualquer indenização. Tanto que 200 mil pessoas de 25 municípios foram buscar ajuda de um escritório estrangeiro.

Ao romper, no dia 5 de novembro de 2015, a barragem vazou 55 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério, um volume que matou dezenove pessoas, arrasou rios e nascentes, dizimou parte da flora e fauna, destruiu casas, empresas, hotéis, patrimônios públicos e históricos e arruinou a economia da região, ao longo dos 680 quilômetros que percorreu de Bento Rodrigues, em Minas Gerais, até chegar ao mar de Regência, no litoral capixaba. Ali, a lama se espalhou, acabando com toda a vida marinha numa área de 40 quilômetros quadrados. 

O processo – que inclui 200 mil questionários feito com as vítimas – foi acondicionado em três grandes caixas de papelão e protocolado no dia 5 de novembro do ano passado, na Corte de Liverpool, na Inglaterra, onde fica a sede do escritório, por três jovens advogados brasileiros. Os três chegaram ao escritório, comandado pelo advogado britânico Thomas Goodhead, por meio de grupos de WhatsApp de estudantes que informavam que o escritório estava em busca de advogados brasileiros para ajudar a tocar a causa, dada a dificuldade para atuar no Brasil sem a presença de advogados locais. Ao tomar conhecimento da oferta, o trio, que fazia mestrado no país – a paulistana Gabriella Ottoboni Bianchini, de 27 anos, o carioca Pedro Henrique Carvalho de Assis Martins, de 30 e o mineiro Tomás Mousinho, de 30 – se apresentou. Entrevistados por Goodhead, foram imediatamente contratados e viajaram para Belo Horizonte para começar os trabalhos.

A contratação do trio foi um achado para Goodhead. Ele já estivera no Brasil em 2017 para tentar iniciar o processo, mas encontrou algumas barreiras. A primeira delas era o fato de ser necessária uma autorização da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para que advogados estrangeiros trabalhassem na causa. Afora isso, percebeu que seria muito difícil para um advogado inglês entrar em contato com as vítimas que, além de muito traumatizadas, tinham muita dificuldade de entender o porquê de um escritório estrangeiro estar tratando de um assunto que, em tese, dizia respeito apenas ao Brasil. Por último, ele não tinha contato com advogados brasileiros que pudessem ajudá-lo na tarefa. A entrada dos três jovens brasileiros em cena não poderia ter sido mais adequada para ele. Além da excelente formação – Bianchini é formada pela PUC de São Paulo, Assis Martins, pela Fundação Getulio Vargas paulista, e, Mousinho, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – os três tinham uma importante rede de contatos no Brasil, conhecimento do caso e mestrado em resolução de conflitos internacionais.

Mousinho, integrante de uma tradicional família de advogados mineiros, por exemplo, foi fundamental para fazer a conexão do SPG Law com os advogados brasileiros que representavam as vítimas, assim como com a OAB, que exigia a partição dos compatriotas no processo. Afora isso, sua família era próxima a grupos ligados a direitos humanos, que estavam acompanhando a situação das vítimas da barragem. Já Pedro Martins trabalhou como mediador entre a Fundação Renova, criada pela Vale, pela BHP e pela Samarco, em 2016, e as vítimas, para tratar das indenizações, da reparação e da adoção de programas de compensação por todos os estragos causados às pessoas e ao meio ambiente.

A Fundação Renova foi criada após muita resistência das três empresas que, à época do acidente, se recusaram a pagar as multas ambientais impostas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, das quais recorrem até hoje. Nenhum executivo das empresas foi punido. No termo de ajustamento de conduta feito pela Fundação Renova com órgãos ambientais federais e estaduais de Minas e Espírito Santo e com a Fundação Nacional do Índio, a Funai, a Renova adicionou uma cláusula na qual afirma que o acordo judicial visa pôr fim ao litígio por ato voluntário das partes, ressaltando, contudo, que isso não implica “assunção de responsabilidade pelo Evento”. Ou seja, as empresas, embora reconheçam o estrago que fizeram, não se sentem responsáveis por ele.

O comportamento das empresas, que postergam o pagamento das indenizações e são pouco ágeis na reparação e compensação dos estragos provocados, aliado à lentidão da Justiça brasileira para dar uma solução para as vítimas, alimentou a iniciativa de levar o processo para a Justiça britânica. Os advogados avaliam ainda que, se a decisão da Justiça britânica for favorável às vítimas, pode se transformar em um marco para a solução de conflitos no Brasil a partir de decisões em outros países. A hipótese de que casos ocorridos no Brasil sejam julgados por cortes estrangeiras pode causar efeitos opostos: tanto pode causar uma reação a fim de impedir essa responsabilização no exterior como pode forçar as empresas multinacionais a adotar, nas  subsidiárias no Brasil, as práticas de seus países de origem. “Elas vão entender que não podem ter um tratamento negligente apenas por estarem instaladas em países latino-americanos”, disse Martins.

Outra razão que deve sensibilizar a Justiça britânica é a demora das três empresas, por meio da Fundação Renova, em indenizar as vítimas. A nova Bento Rodrigues, que seria reconstruída para abrigar os moradores do lugarejo original, arrasado pela lama, já deveria estar pronta desde 2017, mas até agora só foi feito o trabalho de terraplanagem. Os moradores continuam morando em casas alugadas pela fundação, em Mariana. Muitos sofrem de depressão, e as crianças vindas do lugarejo têm sido vítima de bullying da garotada de Mariana. As propostas de indenização são consideradas muito pequenas e as vítimas que não aceitam o valor proposto pela fundação têm como única opção entrar na Justiça. Como sabem da lentidão do Judiciário brasileiro, acabam aceitando ofertas desvantajosas para garantir pelo menos uma parte da indenização a que têm direito.

Caso o juiz Eyre aceite a causa do SPG Law, é possível que as conversas entre as duas partes sejam facilitadas. Ao contrário da Justiça brasileira, que permite recursos infindáveis capazes de retardar por décadas as sentenças, a Justiça britânica determina a imediata indenização das vítimas, principalmente em se tratando de situações de urgência, como o das vítimas do estouro da barragem, que além de terem sido expostas a riscos, perderam familiares e patrimônio. A lei britânica, segundo informaram Gabriella Bianchini e Pedro Henrique Martins, determina ainda duras penalidades às empresas que protelam os processos na tentativa de atrasar o ressarcimento das vítimas.

No Brasil, a primeira tarefa do trio de advogados brasileiros foi contatar colegas para ajudar no processo para terem uma dimensão do universo de vítimas. Pelo levantamento do MP de Minas Gerais, a estimativa era de que 450 mil pessoas teriam direito a indenização. O trio concluiu que seria necessária uma parceria com um exército de advogados para fazer o levantamento desses moradores. Montaram, então, uma força-tarefa com quinhentos advogados que se dividiram pelas comunidades atingidas para conversar com as vítimas. Afora os brasileiros, outros sessenta advogados britânicos foram deslocados para o Brasil para acompanhar os depoimentos. Fazem parte do processo contra a BHP 200 mil vítimas de 25 localidades, afora a comunidade dos índios Krenak no Espírito Santo, que, por causa da contaminação do Rio Doce, perderam seu meio de subsistência.

A presença dos advogados nas localidades atingidas virou um acontecimento. Em todos os locais, as vítimas foram ouvidas uma por uma. O trabalho consistia em avaliar não apenas os danos patrimoniais, como perda de casas, empresas, fazendas, animais e outros bens – mas também danos morais, que incluem até quanto tempo o morador ficou sem água potável por causa da contaminação do Rio Doce e seus afluentes. Nos danos morais também estão incluídas as perdas intangíveis. Em Bento Rodrigues, distrito de Mariana, a primeira localidade atingida pela lama e que foi varrida do mapa, foi incluído como dano moral o caso dos donos de um sofá que desapareceu com a casa levada pela lama, que estava há várias gerações na família. No sofá, a avó e a mãe dos moradores tinham dado a luz às crianças agora adultas. “Como recuperar essa perda? Como calcular o valor de um patrimônio afetivo, que fazia parte da história emocional da família?”, disse Gabriella Bianchini.

Em Governador Valadares, Minas Gerais, com aproximadamente 278 mil habitantes, a maior cidade afetada pela lama e com maior número de vítimas, foi necessário alugar um imenso galpão, onde foram colocadas filas de cadeiras de plástico para que os interessados em buscar a indenização pudessem conversar com os advogados. Em Valadares o Rio Doce era a única fonte de abastecimento de água do município. Quando a lama atingiu a cidade, o abastecimento foi cortado. À época, a Vale e a Samarco se recusaram a enviar água para os moradores, alegando falta de logística. Somente após uma ação judicial, a Vale passou a fazer o abastecimento, despachando galões de água pelos seus trens de minério que atravessam a cidade. Até que isto fosse feito, contudo, houve saques e confusões e a Força Nacional precisou intervir. Empresários perderam seus negócios, pescadores, sua fonte de renda e, no âmbito dos danos morais, a comunidade toda foi atingida porque o rio era fonte de lazer dos moradores. Um grupo de cem remadores de caiaque, à véspera da chegada da lama, fez uma emocionante cerimônia de despedida do rio. Entraram nas suas águas com seus caiaques, mergulharam e disseram adeus ao Doce.

Todos esses dramas pessoais e coletivos foram relatados aos advogados encarregados de recolher as informações. Essas perdas, patrimoniais e afetivas serão levadas em consideração no momento do pagamento das indenizações. A estimativa, caso saiam vencedores, segundo Martins, é de que 30% do valor da causa fique com os escritórios de advocacia brasileiros e estrangeiros e ajude a financiar a ação. Os outros 3,5 bilhões de libras (cerca de R$ 17,5 bilhões), serão repartidos entre as vítimas, proporcionalmente às perdas de cada um. Se a causa for perdida, as vítimas nada pagam ao SPG Law. A prática do escritório nesses casos, segundo Martins, é “No win, no fee”, ou seja, se não houver nenhuma vitória, o escritório assume todos os investimentos feitos na causa e não cobra nada dos clientes.

Os três advogados também precisaram traduzir parte do Código Civil e do Código de Processo Civil brasileiro e várias outras leis para que os advogados britânicos entendessem a legislação penal brasileira. Agora a expectativa dos três advogados é com a audiência marcada para junho de 2020. Eles estão seguros de que, se a causa for aceita, enfim se fará justiça para as vítimas da barragem da Samarco.

 

 

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