No fim do ano passado, um sujeito filho de pai branco e mãe indígena entrou na sede da Funai (Fundação Nacional do Índio) em Eirunepé (AM) falando alto, sem respeitar a fila de atendimento nem obedecer a nenhum critério de educação. Invadiu a sala de um servidor e começou a ofendê-lo. Sem seguranças a quem pudesse recorrer, o servidor tocou o invasor para fora do prédio. O sujeito, que fala a língua indígena local, Kulina Madija, é conhecido na cidade por dar golpes nos indígenas beneficiários de programas sociais como BPC (Benefício de Prestação Continuada) e Auxílio Brasil, o que motivou sua detenção mais de uma vez. Enquanto era expulso do prédio, o invasor também tirou satisfação com o servidor da Funai pelos comentários recorrentes em todo o município de Eirunepé a respeito dos golpes aplicados.
Já na rua, o colaborador da Funai retrucou. “Eu não falo que você é ladrão. Eu escuto que você é ladrão. A cidade toda fala.” O homem foi embora, e o servidor saiu de férias. No dia seguinte, novamente, foram à sede da Funai. Naquele horário, de acordo com o protocolo adotado durante a pandemia, a porta estava trancada para controlar o fluxo de pessoas. Lá dentro só havia uma empregada terceirizada, responsável por tarefas administrativas do escritório. Bateram pesadamente. Ela se assustou e não abriu. Quando não ouviu mais barulho, aproximou-se da entrada e encontrou uma folha de papel sulfite branca rasgada no meio. Nela se lia: “Vocês da Funai toma cuidado fica perceguindo [sic] nos. Cuida desses índios de vocês.”
Dias depois, um homem entrou na sede se passando por alguém necessitado de cesta básica – durante a pandemia, a Funai distribuiu alimentos para as aldeias que não conseguiam garantir a subsistência. O homem passou algum tempo lá dentro e, já de saída, perguntou pelo servidor que havia sido ameaçado meses antes. Perguntou se o colaborador que o atendera era ele. Era outro.
Meses se passaram, e as atividades da Funai em Eirunepé seguiram como de costume – com insuficiência de pessoal, de material, de logística e principalmente de segurança. O chefe do escritório foi ao mercado municipal da cidade fazer compras vestindo o uniforme da Funai. Dois homens se aproximaram dele e avisaram: “Tem que tomar cuidado.” Queriam que cessasse o monitoramento de invasões das terras indígenas Cacau do Tarauacá, Mawetek, Kanamari do Rio Juruá e Kulina do Médio Juruá. O chefe registrou boletim de ocorrência e avisou sua supervisora hierárquica, Mislene Metchacuna Martins Mendes.
Responsável também por Atalaia do Norte (AM), a pouco mais de 250 km de avião em linha reta ou mais de mil km por rio de Eirunepé, Mendes se via às voltas com outros muitos problemas de segurança dos servidores que protegem a terra indígena Vale do Javari. Havia menos de um ano respondendo como coordenadora regional substituta, Mendes não tinha sido e ainda não foi nomeada como titular para o cargo. O diálogo de Brasília com os servidores nas pontas é truncado na gestão Bolsonaro.
Em Atalaia do Norte, em particular, depois do assassinato do servidor Maxciel Pereira, em 2019, os colegas que reclamaram da insegurança no trabalho sofreram assédio moral e até punições administrativas. Uma demanda permanente é a presença ostensiva das forças de segurança pública para coibir ameaças e ataques de pescadores e caçadores clandestinos, garimpeiros, extrativistas e membros de facções criminosas com interesses nas áreas demarcadas.
Até 2021, a Funai em Atalaia funcionava em um imóvel na beira do rio, condenado pelas autoridades pelo risco iminente de desbarrancamento. Parte da rua já foi tragada pelo rio e o desabamento da sede da autarquia pode acontecer a qualquer momento. Segundo relatos dos servidores, as janelas estão apodrecidas, tem infestação de cupim, rato, formiga, barata, o forro do teto está por despencar, os banheiros não funcionam nem há serviço de faxina contratado. No estacionamento passa um esgoto que escoa para a beira do rio onde os indígenas aportam suas canoas quando vão à cidade em busca de auxílio, documento ou qualquer outra coisa. Muitos não voltam, mortos por doenças contraídas na parada.
O imóvel, em suma, era um chiqueiro, define um servidor local. Mas lá, pelo menos, havia quatro seguranças privados que se revezavam em turnos de 12 horas para proteção predial. Quando finalmente o novo escritório foi alugado, os seguranças ficaram no prédio antigo, que hoje ainda serve de depósito de materiais e primeira parada dos indígenas na cidade. E a nova sede só tem câmeras de segurança como medida de proteção.
Mislene Mendes solicitou a Brasília a contratação de segurança privada para a Funai em Eirunepé e em Atalaia do Norte. A direção do órgão não foi receptiva, então ela decidiu centrar esforços na primeira cidade, para proteger os servidores ameaçados. Num despacho obtido em 13 de maio de 2022 pela agência de dados Fiquem Sabendo, por meio da Lei de Acesso à Informação, a coordenadora pede aos superiores a contratação de serviços de vigilância patrimonial ostensiva.
Não que não houvesse problema em Atalaia do Norte, muito pelo contrário. Menos de um mês depois seriam brutalmente assassinados o indigenista Bruno Pereira, licenciado da Funai, e o jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari, na jurisdição de Atalaia. Segurança predial dá alguma proteção a servidores da porta para dentro e olhe lá. Mas diante da resistência das forças de segurança pública de colocar efetivos na região, Mendes fez o que pôde.
Outra planilha obtida pela Fiquem Sabendo mostra que, em todo o país, a mobilização da Força Nacional regrediu no governo Bolsonaro. Composta por policiais militares e civis e bombeiros, a Força Nacional gastou com diárias e passagens 157 milhões de reais em 2018, valor reduzido anualmente até chegar a 73 milhões em 2021. O Estadão revelou que apenas seis agentes da Força Nacional atuam na terra indígena Vale do Javari, cuja área é de 8,5 milhões de hectares, apesar dos pedidos reiterados por proteção feitos pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, a Univaja.
No despacho de maio último, Mislene Mendes “aproveitou para solicitar orçamento para construção de muro para delimitação do terreno da coordenação, conforme orientado pela Dages através de conversa telefônica”. Dages é a diretoria administrativa da Funai em Brasília que deu a ideia da construção do muro. Em Atalaia do Norte, segundo apurou a piauí, a ideia foi considerada risível – a Funai fica de portas abertas para receber indígenas durante todo o expediente. Murar o prédio seria, sobretudo, inócuo.
Mislene Mendes mandou o documento numa sexta-feira. O presidente da Funai, Marcelo Xavier, estava em São Paulo, mas na segunda já estava de volta a Brasília. O ofício não era dirigido a ele diretamente, mas o Vale do Javari é a segunda maior terra indígena do país e onde está localizada a maior concentração de povos indígenas isolados do mundo. Merece atenção redobrada das autoridades competentes. Xavier não se ocupou dela.
Naquela semana, ele declarou em sua agenda pública compromissos internos, uma audiência com o advogado-geral da União e somente duas atividades externas. Na terça foi à feira AgroBrasília e voltou a ela na sexta-feira. A feira expõe estandes de novos produtos e tecnologias do agronegócio. Xavier deu uma rara e longa entrevista ao canal oficial do evento. Na verdade foi uma conversa amigável com um interlocutor que desconhecia até mesmo as atribuições da Funai, confundindo-se com questões quilombolas. Nessa conversa, Xavier desenvolveu sua proposta para acabar com a invasão de terra indígena: deixar a terra indígena ocupada ilegalmente com o invasor e remover a população originária para outro terreno.
“Chega dessa antropologia de cunho marxista trotskista que via na invasão uma forma de pressionar o Estado a fazer demarcação das áreas”, disse. “Isso é errado, porque você expulsa pessoas que estão nas áreas tituladas há muito tempo, cria um conflito social envolvendo o indígena e o não indigena e isso tudo é incitado, fomentado por algumas entidades”, prosseguiu Xavier. “Eu tenho a solução: compra de áreas. É perfeitamente possível a desapropriação, a doação de áreas”, sugeriu para então explicar-se melhor: “Temos um caso em São Paulo em razão da compensação do rodoanel. Investimos 1,5 milhão de reais e compramos uma área de 350 hectares e colocamos lá sessenta famílias.”
Delegado da Polícia Federal e técnico agropecuário, Xavier é próximo de Nabhan Garcia, o secretário de assuntos fundiários de Bolsonaro, descrito por ambientalistas como um aliado de grileiros. Bruno Pereira e Dom Phillips desapareceram no domingo, 5 de junho, e dias depois Xavier declarou que eles tinham entrado na terra indígena do Vale do Javari sem autorização. A dupla desapareceu fora da terra indígena e avisou Mislene Mendes sobre a jornada. Os servidores da Funai exigiram sua retratação, mas agora farão greve para pressionar pela demissão de Xavier. A Funai vive um desmonte progressivo, com perda de pessoal, falta de estrutura e sem nenhum comando da direção para cumprir suas missões constitucionais.
Após o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, não houve orientação da presidência da Funai aos servidores no Vale do Javari. Os diretores do órgão não se manifestaram, simplesmente se omitiram, conta um servidor de Atalaia do Norte – que como os demais ouvidos pela reportagem pede para não ser identificado por temer represálias da gestão da Funai e dos criminosos que atuam na região onde trabalham. Só agora, no final de junho, autorizaram a contratação de segurança patrimonial para os escritórios da Funai em Eirunepé e também em Atalaia do Norte.
Os indigenistas têm ciência de que esta é uma medida paliativa e pontual. Dizem que o que impede criminosos da região de invadirem o prédio da Funai e “metralhar todo mundo” é o receio de a atenção que despertariam prejudicar os seus negócios. O convívio dos indigenistas com criminosos se estende do mercado municipal à rua de casa. Em Atalaia do Norte, por exemplo, uma antiga coordenadora foi à delegacia de polícia registrar boletim de ocorrência após a prisão de pescadores ilegais. Enquanto fazia a queixa, ela foi acomodada no mesmo banco onde estava sentado o infrator. Dias depois, ela foi à padaria e deu de cara com a figura.
Questionada pela reportagem sobre a contratação de segurança privada e medidas extraordinárias para proteger os servidores na Amazônia, a Funai não se manifestou.
Poucos dias depois do crime contra Pereira e Phillips, de repercussão internacional, a Polícia Federal (PF) afirmou que não há indícios de haver mandantes ou organizações criminosas envolvidas. “As investigações apontam que os executores agiram sozinhos”, segundo a corporação. Não há quem acredite nessa versão na Funai no Vale do Javari. A ligação dos pescadores ilegais com narcotraficantes na região, que faz fronteira com o Peru, é cada vez mais flagrante. Os casos de ameaças e intimidações não são isolados. Acontecem sistematicamente em diversos pontos há muito tempo e cada vez mais acintosamente. O governo Bolsonaro os empoderou, disse um servidor, lamentando a anestesia que parece ter tomado conta de Atalaia outra vez.
A maior parte dos jornalistas já foi embora. A PF e o Exército retiraram seus efetivos. Só um barco da Marinha continua atracado no rio, mas sem policiamento ostensivo. A vida na cidade retomou a rotina. Os indigenistas estão abarrotados de trabalho, voltaram às suas funções, continuam deixando a porta aberta. Mas há um torpor no ar pesado da Amazônia. Todo mundo sabe que é questão de tempo até o próximo episódio.