Um dos mais bem preservados entre os onze mantos tupinambás remanescentes do século XVII voltará definitivamente da Europa para o Brasil. Até o fim de 2023, o tesouro confeccionado com as penas vermelhas do guará deixará para trás a coleção etnográfica do Nationalmuseet, o museu nacional da Dinamarca, e integrará o acervo do Museu Nacional no Rio de Janeiro. A instituição dinamarquesa anunciou a doação nesta terça-feira. A peça, que os indígenas consideram sagrada, está em Copenhague desde 1689, segundo registros oficiais.
“É uma grande honra para nós receber um dos principais artefatos etnográficos do Brasil, que se encontra no exterior há tanto tempo. A devolução mostra a confiança do Nationalmuseet no nosso trabalho, depois de tudo o que aconteceu”, disse ontem à piauí Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional. Na noite de 2 de setembro de 2018, um curto-circuito desencadeado pelo superaquecimento de um ar-condicionado provocou um incêndio que destruiu boa parte da instituição brasileira.
Kellner se reuniu com a direção do Nationalmuseet em abril, na capital dinamarquesa, e viu o manto pela primeira vez. “A relíquia desperta em nós um enorme senso de responsabilidade. Vamos falar a verdade: se o manto estivesse conosco antes, teria queimado. O Brasil precisa entender a importância de cuidar do próprio patrimônio cultural. Ainda estamos aguardando ações do governo federal que possibilitem o repasse de 180 milhões de reais por empresas privadas e estatais para concluirmos a reconstrução do museu até 2026.”
Em nota oficial, o Nationalmuseet destacou que a doação do manto é uma “contribuição única e significativa” para a recuperação do acervo brasileiro. “As heranças culturais têm um papel decisivo nas narrativas das nações sobre si mesmas. É assim no mundo inteiro. Por isso, é importante para nós ajudar a reconstruir o Museu Nacional do Brasil depois do incêndio devastador de alguns anos atrás”, afirmou na nota o antropólogo Rane Willerslev, diretor do Nationalmuseet.
O manto em questão mede 1,2 metro de altura por 60 cm de largura. Possui um gorro e uma capa, que constituem um único traje. As penas de guará se encaixam sobre uma base de fibra natural, parecida com uma rede de pesca. Os tupinambás usavam vestimentas do gênero em ocasiões formais, como as assembleias, os enterros de pessoas queridas e os rituais antropofágicos, a celebração mais imponente promovida por eles no período colonial. O museu de Copenhague não sabe informar quem trouxe a peça sagrada para a Dinamarca nem por quê.
A instituição do Rio pretende exibir o manto a partir de 6 de junho de 2024, quando o museu completará 206 anos. Na ocasião, será reaberta apenas uma pequena sala, e nela estará a relíquia. A cenografia deve ser planejada pela equipe da entidade em parceria com os indígenas. “O Museu Nacional e os tupinambás mantêm uma relação próxima há mais de duas décadas”, lembra João Pacheco de Oliveira, antropólogo e curador das coleções etnográficas da instituição. Ele explica que a devolução de objetos ritualísticos é complexa e implica o envolvimento de intelectuais indígenas e dos conhecedores da tradição, inclusive daqueles que sabem trabalhar com arte, sonhos e xamanismo. “Estamos preparando os profissionais do museu para receber de maneira adequada uma peça tão rara.”
Ao longo dos últimos dois anos, o embaixador do Brasil na Dinamarca, Rodrigo de Azeredo Santos, costurou discretamente o processo de doação. Ele assumiu o posto durante a pandemia, em dezembro de 2020, depois de servir no Irã. Quando os dinamarqueses encerraram a quarentena, na primavera de 2021, Santos visitou o Nationalmuseet com a família, se encantou pelo manto e teve a sensação de que a relíquia estava no lugar errado. Meses depois, em novembro de 2021, leu a reportagem Longe de Casa, na piauí_182, que discorria sobre a peça. O embaixador soube, então, que o Brasil nunca havia reivindicado oficialmente a devolução do artefato. A partir daí, Santos tratou de reunir as cartas necessárias para formalizar o pedido.
“Os sonhos dos nossos ancestrais, que são também os nossos, seguem vivos. Amotara preservou em sua memória a lembrança da existência de um Manto Sagrado para o nosso povo. Nossos Mantos são ícones da nossa espiritualidade e, por isso, acreditamos que devem estar de pé e vivos, próximos ao seu povo de origem”, escreveu a cacica Maria Valdelice Amaral de Jesus em correspondência endereçada à direção do Nationalmuseet, no dia 29 de julho de 2022. Ela é uma das líderes das 23 aldeias que compõem a Terra Indígena Tupinambá de Olivença, localizada nos municípios baianos de Ilhéus, Buerarema e Una.
Na carta, a cacica se refere à própria mãe, Nivalda Amaral de Jesus, a Amotara, que travou o primeiro contato com a relíquia em maio de 2000, quando o Nationalmuseet a emprestou para a Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento, em São Paulo. Depois de visitar a exposição na companhia de um repórter da Folha, Amotara declarou ao jornal: “Somos tupinambás. Queremos o manto de volta.”
Além da cacica, enviaram cartas o cacique Rosivaldo Ferreira da Silva, o Babau, outro líder dos tupinambás de Olivença, e a direção do Museu Nacional do Rio. Os três documentos foram entregues pelo embaixador a Willerslev. O diretor do Nationalmuseet se sensibilizou com as correspondências e preparou um parecer favorável à devolução da peça. Em seguida, levou a reivindicação dos brasileiros aos seis membros do conselho do museu dinamarquês. Os conselheiros, por sua vez, recomendaram que a relíquia fosse doada ao ministério da Cultura da Dinamarca. No último dia 31 de maio, o ministro Jakob Engel-Schmidt finalmente autorizou a volta definitiva do manto.
A Embaixada do Brasil trabalhou o tempo todo para que a negociação acontecesse exclusivamente entre os museus e a comunidade tupinambá. “Nosso objetivo era que a sociedade dinamarquesa encarasse a devolução como uma cooperação cultural dos dois países para ajudar a reconstruir a instituição brasileira. Queríamos evitar debates sensíveis na Europa sobre a repatriação de artigos que pertencem aos povos originários de outros continentes. Por isso, todo o processo transcorreu em sigilo”, conta Santos. “Para mim, é uma honra participar da devolução. Sou carioca. Me lembro de visitar o Museu Nacional com meu pai e meu avô. Mais tarde, eu mesmo levei minha filha até lá. Quando o museu pegou fogo, eu ainda estava em Teerã e fiquei muito tocado. Ao chegar a Copenhague, vi que poderia contribuir para recuperar o acervo da instituição.”
Mal recebeu a notícia de que a peça regressará ao Brasil, a cacica se emocionou. “Minha avó dizia que a perda do manto enfraqueceu o povo tupinambá. Espero que a relíquia volte logo para nos revigorar. Não importa se chegará à Bahia ou ao Rio. O fundamental é que retorne. Até hoje, não saiu nenhuma portaria reconhecendo o nosso território. O governo federal já identificou a terra como sendo dos tupinambás, mas ainda não a homologou. Enquanto isso, o território é invadido por grandes hotéis e mineradoras de areia. Sem a portaria, a gente não consegue fazer nada. Que o manto traga força aos tupinambás de Olivença! Nós precisamos que nossa terra seja demarcada.”
Enquanto os trâmites se desembaraçavam nos gabinetes da Dinamarca, o Nationalmuseet convidou a artista Glicéria Tupinambá, irmã do cacique Babau, para visitar o país em setembro do ano passado. Ela adota em suas criações os mesmos métodos que seus antepassados utilizavam para confeccionar as vestimentas sagradas.
Glicéria ficou uma semana em Copenhague e passeou pelo Nationalmuseet, no Centro da cidade. Lá conheceu a relíquia que voltará para o Brasil. Depois, fez três visitas à reserva técnica da instituição, no Norte da capital dinamarquesa, onde foi apresentada a outras quatro peças identificadas pelo museu como mantos tupinambás. Os artefatos estão trancados há décadas nas caixas metalizadas do acervo.
A artista também participou do seminário Different Pasts – Sustainable Futures (Passados diferentes, futuros sustentáveis). O evento integrava o projeto Taking Care, concebido por museus nacionais europeus para discutir periodicamente o futuro de suas coleções etnográficas. Glicéria falou na mesa Histórias de Revitalização, em 16 de setembro, uma sexta-feira. Dividiu as atenções com os antropólogos Mille Gabriel e Matthew Walsh (do Nationalmuseet) e Renata Curcio Valente (do Museu Nacional do Rio), além de Shgendootan George, artesã do povo Tlingit, de origem canadense, e Te Arikirangi, coordenador de repatriação do museu Te Papa Tongarewa, na Nova Zelândia.
Antes de a mesa começar, Glicéria descreveu o sonho que tivera na noite anterior. “Uma mão carregava algodão e uma pena num tom entre o amarelo e o vermelho.” No domingo, dia 18 de setembro, por volta das 14 horas, enquanto o então presidente Jair Bolsonaro discursava para apoiadores em Londres, onde iria assistir ao funeral da rainha Elizabeth II, a artista cantava em Copenhague. Ela marcava o ritmo batendo o pé direito no chão: He! He!/Tupinambá desceu a serra todo coberto de penas/Ele foi, mas ele é/É o rei da Jurema. A indígena estava iniciando a oficina Manto Fora da Caixa, aberta aos frequentadores do Nationalmuseet. Ali seria exibida pela primeira vez ao público uma das quatro capas guardadas na reserva técnica. Com luvas de borracha, um funcionário retirou o artefato cuidadosamente da caixa de metal e o mostrou por alguns minutos para cerca de trinta pessoas que se aglomeravam na sala dedicada ao Brasil.
Glicéria usava um cocar de penas azuis de arara e um vestido amarelo. Ela falava em português, com tradução simultânea para o inglês e o dinamarquês. À sua esquerda, o manto que será devolvido repousava em pé, dentro de uma vitrine de vidro. “No ano 2000, a peça que está nesta sala nos visitou no Brasil e foi reconhecida pela mãe de Valdelice Tupinambá, a dona Nivalda. Esse encontro ajudou nossa luta, ajudou as pessoas a saberem que a gente nunca saiu do nosso território. Vivemos lá tradicionalmente até agora. Hoje, me encontro aqui pelo chamado do manto. A ligação do passado com o presente não se quebra. Os fios do manto me trouxeram à Dinamarca e nos possibilitaram estar juntos neste momento.”
Os participantes da oficina aprenderam a fazer vestes sagradas com a técnica tupinambá. Para tanto, cada um deles pagou 100 coroas (70 reais) ao Nationalmuseet. Glicéria lhes forneceu cera de abelha, barbante e uma agulha artesanal de madeira. No fim da atividade, um dos presentes perguntou à indígena: “Como você se sente ao ver o manto num museu da Dinamarca?” A artista respondeu com diplomacia: “Eu agradeço às pessoas daqui por terem cuidado do patrimônio de meu povo.”
A doação acontece num momento em que diversas instituições europeias têm de lidar com pedidos de devolução de artefatos culturais e arqueológicos pelas nações de origem. Este mês, por exemplo, a Alemanha enviou o fóssil do dinossauro Ubirajara jubatus ao Brasil. Retirada em 1995 do sítio paleontológico do Cariri, no Ceará, por pesquisadores alemães, a peça ficará exposta num museu da região.