Em depoimento a Elane Oliveira
Tenho 21 anos e nasci em Boa Vista, capital de Roraima. Na infância, morei na comunidade indígena Nova Esperança, em Pacaraima, a 216 km de Boa Vista. Como diz o meu nome, sou do povo makuxi. Minha família tem diversos professores indígenas, que cresceram entre esses dois ambientes: comunidade e cidade.
Nas escolas da capital, minhas experiências como uma garota indígena foram muitas vezes horríveis, pelo racismo que eu passava com colegas e até mesmo professores. Certa vez eu me lembro de chegar na escola e passar pelo corredor, quando escutei “lá vem a caboquinha”. Quando eu passei pelo grupo que disse isso, eles fizeram sons com a boca e bateram na boca com a mão. Um deles gritou: “Volta pra tua maloca, caboquinha.” Durante todo o período escolar, fundamental e ensino médio, eu ouvia muito expressões como “lá vem a caboquinha”, “volta pra tua maloca”, “deram um espelho pra ela” e “indiazinha feia”.
Mais ou menos em novembro de 2021, resolvi usar meu instagram para interpretar justamente alguns casos de racismo que enfrentei na escola. Eu queria mostrar para a sociedade o que dói em muitas garotas indígenas que vêm estudar na capital. Mas também queria mostrar para essas mesmas meninas que nós estamos em casa e, sem medo, podemos ser quem somos. Também em 2021 eu havia entrado no curso de Comunicação Social – Jornalismo na Universidade Federal de Roraima (UFRR). Hoje estou no quinto semestre. Espero me tornar uma profissional que possa ajudar o meu povo através da representatividade nas mídias.
Desde pequena eu adorava atuar. Nada tão profissional, mas pra mim sempre foi simplesmente incrível. Lembro de muitas vezes entrar no banheiro e demorar horas falando comigo mesma e com uma possível personagem, que eu criava no meu mundo imaginário de novelas e filmes. Também sempre tive muito interesse nas peças de teatro da minha escola, cheguei a participar de três delas. Sempre tive o sonho de atuar e treinava bastante.
Esse sonho de criança foi se tornando mais real quando comecei a produzir vídeos para o Instagram durante a pandemia. Com a ajuda da minha irmã Glycya Ribeiro, que me apoia em tudo que vou fazer, eu produzia os roteiros, cenários e estratégias de postagem para a minha rede social. Então eu produzia vídeos de dublagens interpretando personagens de filmes, séries e novelas, coisas que a gente gostava muito de assistir. Aí o pessoal de pesquisa de elenco da Rede Globo viu e me convidou para fazer um teste de elenco online.
Fui escalada para o segundo episódio da série Histórias (im)possíveis, Pintadas. Interpreto Laura, uma jovem indígena que deixou a sua comunidade por não aguentar as violências sofridas lá e se calou por muito tempo. Tudo era novo para mim. Pude sair pela primeira vez do estado e conhecer o Projac, além de ver como funciona um set de gravação. O processo foi muito acolhedor e de muitas primeiras vezes pra muita gente. A equipe foi incrível, e a preparação de elenco durou dez dias. Pude aprender muita coisa que levarei comigo.
Meus familiares me apoiaram desde o início com os vídeos do Instagram, um trabalho que sigo fazendo [hoje ela tem 21 mil seguidores]. Isso importa muito porque a opção de desistir sempre passa pela nossa cabeça, e não ter alguém pra acreditar em você torna tudo mais difícil, mas não impossível.
Como uma jovem indígena aprendi que as escolhas da nossa vida são mais do que pessoais ou individuais. É muito comum que muitos indígenas optem por lutar juntamente com o seu povo, e todas as decisões tomadas a partir disso, na vida individual, influenciam o futuro das nossas próximas gerações. A preocupação com os nossos territórios é o que garante saúde e educação para o nosso povo, e até a nossa própria vida. Então essa relação com o meu povo é uma escolha de viver, lutar e vencer todos juntos.
Por isso é importante ter diversidade nas telas. É uma representatividade que o Brasil não está habituado a assistir. Parece incrível, mas é raro ver uma atriz indígena vivendo uma personagem indígena. É importante que a juventude indígena possa olhar e se sentir representada. Nossas lideranças lutaram para que chegássemos a diferentes lugares e posições que na sua maioria estão repletos de não indígenas. Eu me sinto honrada em estar nas telinhas podendo representar meu povo Makuxi. Ter participado desse início tão novo e tão necessário da inclusão de indígenas assumindo personagens indígenas me deixa muito realizada.
O que mais me representa na Luara, minha personagem na série, é essa força que ela tem. Ela carrega toda uma coletividade, nossa cultura, crença, e o principal, luta e resistência para defender o seu povo. Eu me sinto muito feliz de ser uma atriz indígena que está interpretando um papel indígena. Minhas expectativas são de que as pessoas possam ver a diversidade que existe no Brasil e que muitas vezes não estamos acostumados a assistir. Esse episódio fala sobre a violência contra a mulher indígena – além do silêncio que envolve tudo isso e traz muita dor. Essa violência é uma realidade para mulheres indígenas no Brasil.