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questões de mídia & política

Voto impresso, a roupa nova da desinformação

Impulsionada pelo discurso do presidente, rede bolsonarista investe na disseminação de boatos sobre 2022

Letícia Simionato | 06 ago 2021_15h02
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Entre colegas e parentes, a consultora financeira Luciene Barbosa, 47 anos, é conhecida como “fiscal de fake news”: não tolera notícias falsas e checa tudo pela Internet. Acaba consumindo, porém, a desinformação que circula no grupo do WhatsApp da empresa em que trabalha, onde todos são pró-Bolsonaro. “Tem muita mensagem. Algumas eu nem abro para preservar minha saúde mental.” No último mês, a campineira percebeu um aumento na circulação de boatos sobre as eleições no grupo. “Colocam como se o Bolsonaro fosse a cura para 2022”, afirma. Uma das mensagens que a marcaram foi a que dizia que 87,5% da população vai votar no atual presidente em 2022. “Tem coisa que a gente recebe e automaticamente já sabe. Como assim? A eleição é daqui a mais de um ano, não tem como prever, nem sabemos quem serão os candidatos ainda. Fui checar e, em dois minutos na Internet, vi que era fake news.

O boato citado por Barbosa surgiu a partir de um vídeo do youtuber Gustavo Gayer, do canal Papo Conservador, que tem mais de 452 mil inscritos e traz a descrição: “uma forma de propagar a verdade e impedir que mais jovens caiam no calabouço ideológico da esquerda.” Com o título INCRÍVEL! TV faz enquete ao vivo e Bolsonaro ganha de lavada com 87,5%, o vídeo, de pouco mais de três minutos, mostra um trecho do programa Balanço Geral, da TV Sucesso, do interior de Goiás, com o resultado parcial de uma enquete feita com telespectadores. Diz: “se nós não conseguirmos o voto auditável com contagem pública, Lula vai ser colocado na presidência, por mais que 87,5% da população rejeitem Lula e aprove Bolsonaro.”

Nas redes sociais, Gayer acumula posts a favor do presidente. Ele foi candidato a prefeito de Goiânia em 2020 pelo Democracia Cristã (DC), mas teve só 7,6% dos votos. O youtuber também apareceu em segundo lugar – com arrecadação de cerca de 40 mil reais – na lista da CPI da Pandemia dos canais que mais ganharam dinheiro com fake news sobre a Covid-19. Ele teve 56 vídeos removidos da plataforma e só está atrás do jornalista Alexandre Garcia, que ganhou 70 mil reais em remuneração pela audiência e publicidade.

O Comprova – coalizão que reúne 33 veículos de comunicação (incluindo a piauí) para verificação de boatos – mostrou que o vídeo de Gayer, que foi visto ao menos 286,6 mil vezes no YouTube e Facebook, é enganoso, pois não é possível usar enquetes como pesquisas eleitorais nem como prévias confiáveis, já que elas são feitas sem o uso de metodologias estatísticas. Dessa forma, o resultado final da enquete – omitido por Gayer – pode demonstrar, no máximo, a preferência de parte da audiência do programa, o que não prova fraude nas eleições de 2022 caso Bolsonaro não seja reeleito. Além disso, o sistema de votação eletrônico atual já é auditável, diferentemente do que ele diz. 

Durante o mês de julho, a um ano e três meses do pleito de 2022, o Comprova teve um pico de checagens sobre eleições disseminadas por bolsonaristas. No total, foram nove boatos desmentidos – inclusive o citado acima – que juntos somaram mais de 1 milhão de visualizações e mais de 390 mil interações nas redes sociais. O último boato checado pela equipe do projeto sobre o assunto tinha sido em maio, sobre um vídeo enganoso usado para desacreditar o Datafolha. No Google Trends, expressões como “voto impresso”; “voto auditável”; “fraude nas urnas eletrônicas”, “voto impresso 2022” e “fraude eleitoral” também apresentaram aumentos nas buscas durante o mês de julho.

Esse pico de checagens coincide com as declarações do presidente no período. Reportagem da Veja mostra que, em julho, Bolsonaro repetiu pelo menos sete vezes a ameaça de não termos eleições em 2022 caso a PEC do voto impresso não seja aprovada. A contagem inclui a declaração de domingo (1º de agosto), nas manifestações pró-voto impresso, em que ele disse “sem eleições limpas e democráticas, não haverá eleição” e as falas da live semanal, na quinta (29), na qual, após três anos falando em “fraudes eleitorais”, ele apresentou mentiras e admitiu não ter provas das acusações.

Um dos vídeos mentirosos mostrados na live “bomba” foi verificado pelo Comprova no dia 15 de julho e desmentido. Nele, um suposto especialista analisa a apuração dos votos das eleições de 2014 e conclui que houve fraude no segundo turno e que a vitória deveria ter sido de Aécio Neves (PSDB). O vídeo – que já foi visto mais de 151 mil vezes no Facebook e 1,5 mil vezes no YouTube – é de 2018 e foi gravado por Naomi Yamaguchi, irmã da médica Nise Yamaguchi, aliada do presidente Jair Bolsonaro e defensora do tratamento precoce, comprovadamente ineficaz contra a Covid-19. Naomi mantém no Facebook uma página onde publica conteúdos em apoio ao presidente. 

Em outro vídeo investigado pelo Comprova em julho, o youtuber Felipe Lintz, do canal O Jacaré de Tanga, usa trechos de um programa da GloboNews, em que eram discutidos os resultados de uma conferência hacker sobre segurança das urnas eletrônicas dos Estados Unidos, para dizer que os equipamentos usados nas eleições brasileiras não são seguros. Ele tira de contexto o trecho do programa para afirmar que “Bolsonaro tem razão” e desconsidera que os equipamentos testados não são os mesmos usados no processo eleitoral brasileiro. Lintz foi candidato a prefeito de Mogi das Cruzes, em São Paulo, pelo PRTB (Partido Renovador Trabalhista Brasileiro). Terminou a eleição em quarto lugar, com 16.971 votos. No Instagram, ele se descreve como “defensor de Deus, pátria e família e mogiano” e recheia a rede social com postagens pró-bolsonaro e fotos como as em que aparece ao lado de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Carla Zambelli (PSL-SP). Após a equipe do Comprova entrar em contato a partir de um e-mail disponível na página de Lintz, o vídeo – que alcançou 513 mil visualizações no Facebook e foi assistido 147 mil vezes no YouTube – foi retirado do ar. 

A técnica de distorcer e descontextualizar declarações de personalidades para espalhar desinformação também é usada por redes bolsonaristas. Posts de diversas páginas de apoio ao presidente – que atingiram mais de 8 mil interações – enganam ao trazer um trecho revogado da Lei 10.408, de 10 de janeiro de 2002, que dispõe sobre um mecanismo da urna que permite a impressão do voto, acompanhado de uma foto da deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP) e uma frase, atribuída a ela, defendendo que o voto impresso já é lei e deveria ser implementado. Em outra, uma montagem com mais 13,5 mil interações e publicada no grupo público Bolsonaro 2022 no Facebook engana ao trazer parte de uma frase dita pela ministra do STF Cármen Lúcia, em 2018, sobre a Lei da Ficha Limpa, e descontextualiza ao indicar que o ex-presidente Lula (PT) não poderia ser candidato em 2022.

Luana Piovani também não escapou: posts virais no Facebook e no TikTok trazem um áudio em que a atriz supostamente estaria dizendo que acreditaria em urnas fraudadas caso Jair Bolsonaro não fosse eleito em primeiro turno. Só de ouvir com atenção, é possível perceber que não é a atriz falando. Além disso, a mulher diz que tem “duas filhas”, o que não é o caso da atriz. Piovani negou a autoria da gravação – que teve mais de 62,2 mil interações no Facebook – por meio de stories no Instagram.

Dois sites também entraram na estatística do Comprova este mês: News Atual, que já foi checado outras vezes, omitiu que pesquisa apontando vantagem para Bolsonaro foi feita apenas em Santa Catarina. O título do artigo compartilhado em grupos bolsonaristas não mostra que a pesquisa que apresentou vantagem para o atual presidente foi feita apenas em Santa Catarina, sendo que o estado representa apenas 3,5% do eleitorado brasileiro. Já o blog Imprensa Brasil enganou ao afirmar que resultado de enquete sobre voto impresso reflete a opinião da população. Após contato do Comprova, o site – que tem várias publicações com títulos enviesados (exemplo 1, exemplo 2, exemplo 3), com termos como “CPI do Circo” e “esquerdopatas” – corrigiu partes do texto.

Na tarde de quarta-feira (4), o ministro do STF Alexandre de Moraes incluiu Bolsonaro como investigado no inquérito das fake news em tramitação na corte. Dois dias antes, o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, enviou uma notícia-crime ao Supremo contra o chefe do Executivo para que a conduta dele fosse investigada devido à realização da live com disseminação de fake news sobre o sistema eleitoral vigente.

No grupo de WhatsApp do trabalho de Barbosa, a desinformação segue a toda. Ela recebeu uma mensagem dos colegas de trabalho sobre uma outra enquete, realizada por meio de um site chamado Eleições ao Vivo, que supostamente mostraria uma vitória de Bolsonaro em 2022. O Comprova fez a verificação a partir do vídeo de um perfil bolsonarista no TikTok, denominado Avante Bolsonaro. Concluiu que “a enquete não tem controle sobre a amostra da população que a responde e, por isso, não é capaz de indicar uma estimativa das intenções de voto da sociedade”. Além disso, o conteúdo tem circulado mais entre redes bolsonaristas, indício de que o número de eleitores do atual presidente aparece de forma inflada. No próprio site, eles incentivam as pessoas a compartilharem em suas bolhas: “faça o seu candidato subir! Envie para os seus amigos!” O conteúdo teve mais de 1 mil interações no TikTok e outras 262 mil em páginas do Facebook, como o grupo público Bolsonaro 2022 e a página Movimento Avança Brasil. A enquete foi respondida por mais de 3,9 milhões de pessoas até a publicação desta reportagem. 

Com o uso das ferramentas Who.Is e Website Informer, foi possível chegar ao nome de Rafael Gustavo Neves como possível dono do site que realiza a enquete. Ele já apareceu como criador do G17 – conhecido por publicar mentiras em tom de humor – em reportagem de 2012 do jornal O Globo. Segundo a reportagem, Neves é de Palo Alto, no Agreste do Rio Grande do Norte, de uma cidadezinha de 35 mil habitantes chamada Nova Cruz. 

Enquanto a desinformação rola solta, Luciene Barbosa, que diz nem gostar muito de política, segue de olho nos grupos de WhatsApp. “Não discuto, mas procuro a verdade e me atenho ao que é legítimo.” Está preparada, porém, para ver em 2022 o que chama de “universo de fake news”. Temerosa, prepara outras precauções: vai conversar com a mãe, de 73 anos, que adora redes sociais e sempre recebe e repassa conteúdos falsos. “Como muitos que são enganados, ela é muito inocente, pessoa simples e de muita fé. Mostro que nem tudo que está na internet é real.” 

A reportagem entrou em contato com as pessoas citadas – Gustavo Gayer, Rafael Gustavo Neves, Naomi Yamaguchi e Felipe Lintz –, mas não obteve retorno até a publicação. 

As verificações citadas no texto foram feitas pela equipe do Comprova, com participação de jornalistas dos seguintes veículos: Estadão; Correio Braziliense; Correio de Carajás; Jornal do Commercio; Jornal Correio; Rádio BandNews FM; Folha de S.Paulo; A Gazeta ES e revista piauí. Você pode acessar todas elas no site do Projeto Comprova: https://projetocomprova.com.br/

 

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