A primeira-dama Michelle Bolsonaro marcou seu lugar na história na posse de Jair Bolsonaro na tarde desta terça-feira. Foi a única primeira-dama da história da República brasileira a fazer um discurso durante a cerimônia. E foi além, falou antes do marido, o 38º presidente do Brasil. Em outros sistemas democráticos presidencialistas como o americano e o francês, não há registros de casos como o dela. Nem mesmo a mais famosa primeira-dama latino-americana, Evita Perón, conhecida por seus discursos inspirados, se pronunciou na posse do presidente Juan Domingo Perón.
Conhecida pela discrição e temperamento dócil, Michelle Bolsonaro é uma brasiliense de 38 anos. Subiu ao parlatório acompanhada do marido e, usando um sóbrio vestido rosa-claro, se aproximou do púlpito. Mas não se dirigiu ao microfone. Falou com as mãos no sistema de Libras, a Língua Brasileira de Sinais. Ao lado dela, uma mulher traduzia os gestos da primeira-dama ao microfone. O quarto parágrafo do texto dizia: “Eu gostaria de modo muito especial de dirigir-me à comunidade surda, pessoas com deficiência e a todos aqueles que se sentem esquecidos. Vocês serão valorizados e terão seus direitos respeitados. Tenho esse chamado no meu coração e desejo contribuir na promoção do ser humano. Agradeço aos intérpretes de Libras do Brasil, que têm feito um trabalho de inclusão tão importante.”
Foi o único aceno às minorias naquele parlatório, pois, em seguida, na sua vez de discursar, Bolsonaro não disse palavras muito conciliadoras: “Me coloco diante de toda a nação, neste dia, como o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto.”
A primeira-dama está casada com Bolsonaro há onze anos. Era secretária parlamentar e há anos atua no Ministério de Surdos e Mudos da Igreja Batista Atitude, na Barra da Tijuca. Não foi apenas em seu discurso que Michelle Bolsonaro pôs em prática seu ativismo. Foi ideia dela ter um tradutor de Libras enquanto o hino nacional era tocado. É a primeira vez também que uma primeira-dama abraça a causa de deficientes físicos com o empenho da companheira de Bolsonaro. Não é a primeira vez, porém, que uma primeira-dama sobe a rampa com uma agenda pública definida. A antropóloga Ruth Cardoso, casada com Fernando Henrique Cardoso – e que rechaçava o título, por sinal – era empenhada em políticas de educação básica e o combate à pobreza. Ruth Cardoso é uma das idealizadoras do Bolsa Escola, mais tarde, no governo Lula, transformado no Bolsa Família.
Manoela Miklos, doutora em Relações Internacionais e uma das idealizadoras da campanha #AgoraÉQueSãoElas considera importante que Michelle Bolsonaro tenha uma agenda inclusiva para um grupo tradicionalmente sem muita representação, mas ressalta diferenças entre Michelle Bolsonaro e Ruth Cardoso. “A Michelle tem uma militância, um interesse real e há muito tempo com a população surda. E ela sabe de seu papel público para ajudar a causa. A Ruth Cardoso se envolveu no desenho de políticas públicas para a educação. Já a Michelle parece estar mais próxima de uma ideia de assistencialismo do que de políticas efetivas. Ela sempre fala de um lugar de cuidar das pessoas com deficiência. E o importante é que transforme seu ativismo em políticas de inclusão.”
Apesar de quebrar todos os protocolos cerimoniais e ganhar voz e visibilidade na posse de um governo com baixa representação feminina, Michelle Bolsonaro, porém, não falou a palavra “mulher” em seu discurso, ressaltou Miklos. “Mesmo com o fato inédito, e essa quebra de protocolo interessante que a colocou em destaque, ela em nenhum momento falou de representatividade feminina. E isso não me causa espanto. O marido dela sempre demonstra hostilidade com movimentos feministas. Apesar da ruptura de seu discurso, ela ainda representa o papel da mulher frágil, devota ao marido, à família. E isto esteve presente na sua fala.”
Michelle Bolsonaro se referiu ao marido e à família em dois trechos do discurso: “Muita gratidão a Deus, à minha família e aos meus amigos. Em especial, quero agradecer ao meu enteado, Carlos, por toda a ajuda e parceria durante os 23 dias que passamos dentro do hospital em São Paulo.”
Neste trecho, a primeira-dama, com verve mais conciliadora que a fala do marido, disse: “Em especial agradeço ao meu amado esposo, o nosso presidente, para quem peço o apoio de todos vocês. Estamos todos de um lado só. Juntos alcançaremos o Brasil próspero, com amor, ordem, progresso, paz, educação e liberdade para todos.” Coube também à primeira-dama ser a única a dizer a palavra “paz” no parlatório depois de uma campanha eleitoral bélica.
Foi justamente no trecho em que ela fala do marido que se ouviu do público presente o coro de “beija, beija”. São atos de afeto que a família Bolsonaro vêm repetindo em eventos públicos. Há três semanas, Eduardo Bolsonaro pediu a noiva em casamento durante a Cúpula Conservadora das Américas, quando a imprensa esperava da família Bolsonaro respostas sobre o caso Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro que foi alvo de relatório do Conselho de Controle das Atividades Financeiras, o Coaf, em que foram identificadas movimentações suspeitas de mais de 1 milhão de reais. “Tem uma coisa personalista nos gestos públicos da família. A construção de uma imagem pública como se fossem celebridades. E eles sabem que isso gera interesse do público como a relação do príncipe Harry e a Meghan Markle, por exemplo. Uma coisa de família real, de cultura de celebridades”, disse Manoela Miklos.
A primeira-dama de fato dividiu as atenções com o marido recém-empossado. Teve destaque nas redes sociais, telejornais e sites que repercutiram a posse. No fim da noite, Michelle Bolsonaro ocupava o primeiro lugar nos trending topics do Twitter. Seu vestido, penteado e, principalmente, seu discurso inclusivo foram comentados. “Esse personalismo da família Bolsonaro tem uma pegada populista, potencializada pela atual onda conservadora, na qual o papel da família ocupa um lugar central, de culto”, afirmou Miklos. “Isso pode ser desconfortável, uma vez que a devoção pode prejudicar no controle social que é esperado do eleitorado com os representantes eleitos.”
A repercussão do discurso de Michelle Bolsonaro mostra seu magnetismo junto ao público e que a imprensa está disposta a explorar. Sua presença ao lado do marido demonstra que ela pode não ter papel figurativo no governo. Mas a mais nova ocupante do Palácio do Alvorada também aparece no centro de um escândalo. Foi na conta dela, afinal, que Fabrício Queiroz depositou 24 mil reais, em uma movimentação até agora não esclarecida ao Ministério Público.