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    Roberta Estrela D´Alva em torneio de slam: duelos de poemas conquistaram jovens e estão na programação da Flip - FOTOS: EGBERTO NOGUEIRA

tribuna do verso

Vozes do levante

As batalhas de poesia que têm transformado a vida de jovens das periferias chegam à Flip

Consuelo Dieguez | 10 jul 2019_14h37
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O slam – um torneio de poesia em que os participantes declamam seus poemas em voz alta e têm seus textos e performances julgados por um júri popular – se irradiou, nos últimos anos, pelas periferias brasileiras. Agora, em 2019, o movimento aporta no mais importante evento literário do país, a Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty. O torneio da Flip será comandado pela paulista Roberta Estrela D’Alva, do coletivo de teatro e hip-hop Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, responsável pela introdução do slam no Brasil. Seis poetas, cinco estrangeiros e uma brasileira, se revezarão no Auditório da Praça, na sexta-feira, dia 12 de julho, a partir das dez da noite.

Entre novembro e dezembro de 2017, a repórter Consuelo Dieguez acompanhou três rodas de slam na favela do Vidigal, na Zona Sul carioca, e a final do Slam BR, no Sesc Pinheiros, em São Paulo. A seguir, ela relata os cinco dias das vibrantes apresentações que presenciou.

***

Por volta de dez da noite, Weslley Jesus Costa Oliveira, o WJ, subiu ao palco do Nós do Morro – um centro de formação de atores na favela do Vidigal, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Morador de uma favela violenta em Coelho Neto, no subúrbio carioca, ele fora selecionado para participar do Slam bndes. A competição, patrocinada pelo banco estatal, foi uma das atrações da Festa Literária das Periferias, a Flup, que desde 2012 acontece todos os anos em uma área pobre do Rio.

WJ é um jovem negro com jeito de invocado, muito querido entre os frequentadores cariocas de slam, o torneio de poesia em que os participantes recitam seus versos como se estivessem num teatro, para uma plateia atenta e participativa que acompanha tudo com aplausos e gritos. Cinco jurados escolhidos aleatoriamente entre a audiência, na hora, elegem os vencedores. O slam, nativo dos Estados Unidos, se infiltrou discretamente em São Paulo há dez anos, mas de uns tempos para cá tomou conta das periferias brasileiras.

O Slam Grito Filmes, do qual WJ faz parte, é um coletivo que posta suas apresentações na internet. Os vídeos de WJ têm mais de 2 milhões de visualizações. Com bermudão azul-escuro, camiseta branca e chinelos, o poeta encarou a plateia e recitou os versos iniciais de “Brasil, século XXI”.

Eu preciso falar,
Século XXI, onde tudo é comum
Policial que confundiu nego com um traficante, matou,
foda-se, era só mais um.
Esse é o Brasil e esse aqui é o meu povo.
Eu aposto cem mil com você que amanhã ele confunde de novo
Amanhã, depois e novamente.

WJ parou no centro do palco. Seu rosto parece ainda mais raivoso. Da plateia chegam gritos de aprovação, assovios, aplausos. Sem perder o foco, ele vai em frente, agora apontando o polegar e o indicador para o público enquanto caminha pelo palco.

[…] É só dizer que é traficante e pronto,
Todo mundo acredita.
Até eu acredito, no que foi dito pelo supremo veredito
E ai de mim se não acreditar,
Talvez nem passe mais um dia vivo.
Mas eu sou traficante também, hem,
Representante de Coelho Neto
A minha droga é a leitura e o meu fuzil é o papo reto […]
Porque seu carro no fumê só serve pra quem tá vivo,
Mas o caráter e o saber, se eu morrer eu levo comigo
E é por isso que eu prefiro alface, azeite e vinagre
E depois de tanta verdade que eu falei,
Se eu viver vai ser milagre.

WJ tem 18 anos e mora numa casa de dois cômodos com a mãe e o irmão mais novo. A mãe levanta de madrugada para trabalhar numa empresa pública, onde é copeira. Ele não conheceu o pai. Estudou em escola pública e recentemente interrompeu as aulas por causa das greves dos professores. Ao falar sobre o slam, sua expressão se suaviza. Conta que começou a fazer poesia em 2013. Antes estava ligado a um grupo de rap, uma fala musicada que no Brasil se assemelha ao funk. Em 2015, leu um texto dele numa amostra de talentos na escola e fez sucesso. A partir daí passou a se dedicar à poesia e a frequentar rodas culturais. Estava feliz por ter sido selecionado para o evento: “Graças a Deus estou na Flup.”

Nos fins de semana, WJ costuma se apresentar em rodas de slam nas periferias cariocas. Hoje existem cerca de vinte desses coletivos no Rio, quase todos originários das favelas. WJ não ganha um tostão com as apresentações. Mas não liga: o mais importante é fazer poesia. “A poesia na minha vida é a minha vida toda”, disse. “Tudo é poesia. Minha mãe saindo pra trabalhar às três da manhã é poesia; tudo é vida, tudo é poesia, tudo de ruim, tudo de bom.” Depois admitiu que, não fosse seu interesse pelas palavras, talvez não estivesse ali, no festival literário. Escrever evitou que ele enveredasse pelo crime, destino comum de boa parte dos garotos de sua comunidade. Contou que o irmão, ao vê-lo tão empenhado, também se interessou pelo slam. Hoje em dia todos seus amigos estão envolvidos em grupos culturais. E seu maior prazer é participar das “batalhas de rimas”: “É o que eu gosto de fazer.”

 

Depois de WJ, quem subiu ao palco, foi Bruno Santos, ou Bruno Negrão, de Porto Alegre, onde vive num bairro de classe média. Tanto ele como o pai têm formação universitária, o que não alivia seu sentimento de exclusão: é um dos poucos negros matriculados em sua faculdade de comunicação, um dos poucos na empresa onde trabalha. Há cerca de um ano se engajou num coletivo de slam em sua cidade. Participar de um grupo de maioria negra e interessado em poesia lhe deu um sentido de pertencimento. E ele passou a traduzir em versos a angústia que sentia, mas que não sabia como expressar.

Negrão tomou o microfone e uma luz verde o iluminou. Respirou fundo, encarou o público e desafiou.

Quantas vezes tu viu um negro do outro lado
Quando chegou pra uma entrevista de emprego?
Quando nóis for o dono do Zaffari[1]   
Cês vão poder falar de mercado negro.

Ele recitava para uma plateia de maioria jovem e negra. As mulheres usavam faixas coloridas nos cabelos, amarrados em coques ou trançados em dreadlocks tingidos de azul, vermelho, rosa ou verde. Os rapazes também traziam os cabelos encaracolados ou trançados em dread. Bruno Negrão mirou a arquibancada.

Porque vencer sozinho é exclusão
Isto não me interessa
Não me contento em ser a exceção
Quero é mudar toda a regra
Ocupar todos os espaços
E na próxima vez que tu me ver na rua
E trocar de calçada
Mano, eu troco junto, e ainda aperto o passo.

Algumas pessoas se levantaram e esmurraram o ar. Outras gritavam – Pow, pow, pow, a onomatopeia nos quadrinhos para socos – ou dançavam embaladas por um ritmo cantarolado – “Tchá, tchá, tchum, tchum, tchá” –, tocando tambores imaginários.

Cinco poetas, quase todos negros, vindos de vários estados, se revezaram no palco. Às onze da noite entrou Cynthia Santos, que no slam se chama Kimani. Alta, de cabelo quase louro trançado em dread, ela é hoje uma das poetas de maior visibilidade nas batalhas de slams em São Paulo. Enquanto recitava, num ritmo acelerado, reproduzia o gestual das danças de umbanda, rodando em torno se si mesma.

Kimani em apresentação na final do Slam BR em 2017

 

A cada poesia escrita, menos um guri no farol
Sacou que tem mais opção do que jogador de futebol
Bolar umas rima, uns grafites
Papel, verbo e caneta tem mais poder que dinamite.
As mais de duzentas pessoas vibraram.

As regras do slam são rígidas: cada poeta declama três poemas com duração de no máximo três minutos, cada um. Sem música nem acompanhamento instrumental. É proibido usar roupa ou adereço que desvie a atenção da performance. A interpretação tem um peso grande na avaliação, já que a ideia é fisgar o público pela forma como o texto é apresentado. Embora não haja temas obrigatórios, as composições em geral têm a ver com a realidade dos poetas – tratam de racismo, violência, abandono, injustiça social.

Ao fim de cada uma das três apresentações, os jurados levantam cartolinas com as notas. Vence quem consegue a nota mais alta na soma das três récitas. Naquela noite, os selecionados para a final do torneio brasileiro, que aconteceria dali a dois dias, foram Kimani, Bruno Negrão e WJ.

 

Roberta Estrela D’Alva é o nome artístico de Roberta Marques do Nascimento – filha de pai negro e mãe branca, ela é alta, tem 39 anos, cabelos encaracolados, olhos vivos e sorriso aberto. Além do bacharelado em artes cênicas na usp, tem mestrado na puc em semiótica e comunicação. Sua fala rápida e articulada é pontuada por risadas curtas.

Ela é uma das fundadoras do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, de São Paulo, cujas apresentações incorporam elementos da cultura popular, como o cordel. O interesse pela poesia falada a estimulou a trazer o slam para o Brasil. Seu primeiro contato com o movimento foi em 2005, quando assistiu ao documentário SlamNation, e ao filme Slam, com o poeta americano Saul Williams. Ficou tão fascinada que, em 2008, junto com seu grupo, montou no bairro de Pinheiros, em São Paulo, a Zona Autônoma da Palavra, primeira roda de slam do Brasil. O movimento logo migraria para as regiões pobres da cidade, e depois para outras periferias brasileiras. Estrela D’Alva, que acabou se transformando na referência do slam no país, estima que hoje existam mais de oitenta coletivos espalhados por quinze estados.

Para a atriz, o slam penetrou nos bairros pobres porque a fala acompanhada da performance corporal lembra muito a estética do hip-hop, surgido em meados dos anos 70 nas franjas de Nova York, mais especificamente no degradado sul do Bronx. O movimento expressou as demandas sociais e culturais de grupos marginalizados por meio de várias linguagens, como a música, o grafite e a dança. Foi pouco a pouco absorvido pelas gravadoras, desenvolveu negócios milionários e hoje está incorporado ao mainstream cultural.

 

O slam também se vale da estética do hip-hop, mas seu foco é a poesia falada, sem qualquer acompanhamento musical. O movimento, que foi criado em Chicago, em 1984, pelo poeta Marc Smith, buscava despertar o interesse das pessoas pela poesia, uma arte considerada muitas vezes hermética e afastada da vida cotidiana. Smith ficava com a sensação de que ninguém se entusiasmava pelas leituras em livrarias ou bares de Chicago. Pior: os locais ficavam às moscas quando as leituras eram anunciadas. Então ele criou um evento em que as pessoas escreveriam e leriam seus poemas, deixando de lado os autores consagrados.

Smith distribuiu panfletos pela cidade, convidando o público a participar de uma roda de poesia. A primeira dessas filipetas dizia: “Saiam do caixão, peguem o microfone.” Os aspirantes a poetas aceitaram o desafio e encararam o pequeno palco nos fundos do Green Mill, bar instalado num bairro operário de Chicago. Para atrair a audiência e mantê-la atenta, Smith encontrou um formato que funcionou: um concurso cujo vencedor seria escolhido por um júri igualmente leigo, saído da plateia. A competição transformaria a apresentação de poesias num jogo animado, ainda que o prêmio fosse simbólico – algo em torno de 10 dólares.

Uma gente ávida por ouvir os novos poetas – e também se divertir – passou a lotar o Green Mills nas noites de domingo, como ocorre até hoje. O que mobiliza os ouvintes não é apenas o conteúdo das poesias, que tratam de situações e emoções com as quais o público se identifica, mas também o modo como são apresentadas. Além disso, ao se reconhecerem, as pessoas se sentiram mais encorajadas a escrever e a se expressar. O slam se espalhou pelos Estados Unidos – onde atualmente existem mais de noventa grupos, cada um com dezenas de poetas – e ganhou o mundo. Primeiro, aportou no Canadá. Depois, em países da Europa e, então, nos outros continentes.

A realização de torneios, como o do Vidigal, depende de patrocínio para pagar passagem, estadia e alimentação dos concorrentes que vêm dos outros estados. Todos os anos, junto com o Slam bndes também ocorre, dentro da Flup, o Rio Poetry Slam, do qual participam apenas poetas estrangeiros. O evento é apoiado por empresas e instituições públicas. Tanto o Slam bndes como o Rio Poetry Slam são organizados por Roberta Estrela D’Alva e seu grupo.

 

Naquele dia 12 de novembro de 2017, os estrangeiros selecionados para o Rio Poetry Slam iniciaram a apresentação por volta das quatro e meia da tarde. No galpão da ong Horizonte, a 1 quilômetro da entrada do Vidigal, uma construção de alvenaria pintada de amarelo servia de palco. O dj Eugênio Lima cuidava da música nos intervalos das apresentações, introduzidas por Roberta Estrela D’Alva, que exercia a função de mc, ou seja, a mestre de cerimônias, personagem também inspirado no hip-hop.

A americana Jennifer Falú, uma negra, alta, forte, com um vozeirão potente e dramático, já consagrada nesse universo, iniciou o espetáculo. Muitos dos que lotavam o auditório nunca tinham tido contato com poesia e foi com um silêncio reverente que ouviram os primeiros versos de “Black boy”.

É de você, menino negro, que eles têm medo,
as marcas tribais da escravidão,
marcas de Nat Turner[2] presas no fundo da tua garganta
Vê como eles tremem quando você fala, menino?
Como eles se apressam quando é você quem vem atrás, a coroa na cabeça,
quando se torna rei
e aponta teu caderno contra o templo deles
quando rouba o conhecimento deles
quando leva a mochila nas costas
e não uma bola de basquete nas mãos,
quando sobe a calça por cima da cueca,
quando tira as luvas e para de brigar.

Falu recita como uma pastora no púlpito: a voz, a princípio baixa, vai num crescendo até que explode. O foco de luz sobre seu corpo amplifica a dramaticidade da fala. A plateia, que acompanha o sentido dos versos por meio da tradução projetada ao fundo, logo passa a gritar e aplaudir. Falu prossegue sem se atrapalhar.

Endireita tua coluna,
E proclama: você ainda não está pronto para morrer!
Toma o teu lugar como o povo eleito
Moisés, você é um homem agora!

As pessoas se levantam para ovacioná-la. Quando a mc convoca os jurados, há uma nova comoção na plateia. A cada avaliação menor que 10, ouve-se um sonoro “Creeeeedo”, o bordão de desagravo. No palco, ao lado de Estrela D’Alva, a atriz Danieli Lima, a Xuxu, circula de patins e faz caras e bocas conforme as notas vão surgindo. A movimentação no palco e na plateia faz parte do ritual do slam, como se todos – poetas, mcs, jurados e público – tivessem um papel importante a desempenhar na apresentação. O rodízio de jurados, por exemplo, permite que mais gente participe. Para Estrela D’Alva, essa vocação comunitária livre de pré-requisitos é o que encoraja as pessoas.

Seguiram-se outros concorrentes. Às oito da noite foi a vez da angolana Bel Neto. Negra, rechonchuda, de cabelos cacheados, ela vestia jeans e camiseta vermelha – bem mais discreta que Falu, com seu exuberante vestido coral. Durante sua interpretação, porém, o público feminino foi se rendendo a seu carisma e levantou várias vezes para aplaudir o poema “Porrada não me seduz”.

Nada vai mudar minhas decisões,
Não nasci para ser agredida por crianças que se armam em machões.
Culpas-me de estragar o nosso amor,
Mas que amor é esse que causa tamanha dor?


Senão o quê? Sou espancada, torturada na madrugada,
E ainda assim tenho que aceitar tudo calada,
Tipo não aconteceu nada?

Gritos de aprovação e mais palmas. Algumas pessoas, mais entusiasmadas, berravam: “Isso, isso!”

Me desfaço de ti e de tudo que me reduz.
Queres usar com um beijo a mesma cara que bates.
Lamento ter que te dizer isso:
Se quiseres bater, bate na bola.
Pra ti, pode até ser fetiche, mas porrada não me seduz.

A angolana, que contou com a estrondosa aclamação do público, teve uma pontuação alta. Dançando entre as cadeiras com os braços erguidos, as pessoas ainda comemoravam quando Sabrina Benaim subiu ao palco. Uma das poucas brancas presentes no evento, a canadense é uma jovem miúda, de pele muito clara e cabelos aloirados. Seu poema “Explicando minha depressão para a minha mãe”, que ela declamaria a seguir, é um fenômeno cultural, com mais de 10 milhões de visualizações no YouTube. O público ficou em silêncio.

Mãe,
minha depressão é metamórfica:
um dia ela é do tamanho de um vagalume na palma de um urso;
no outro, ela é o urso.
nesses dias eu me finjo de morta até que o urso me deixe em paz.

Vinte versos depois, Benain caminhou lentamente até o fundo do palco e declamou a última estrofe.

Minha depressão sempre me arrasta de volta à cama
até meus ossos virarem os fósseis esquecidos do esqueleto de uma cidade submersa.
minha boca, um ossuário de dentes quebrados de tanto morderem a si mesmos.
O teatro oco do meu peito se enleva com os ecos de coração batendo,
mas aqui eu sou só uma turista desatenta,
nunca vou saber de verdade por onde andei.

A plateia aplaudiu, ainda que não com o mesmo entusiasmo que devotou à angolana. Um dos jurados deu nota 7, o que indignou parte da audiência. Um rapaz com cabelo enrolado num dread colorido reclamou com o responsável pela nota, sentado próximo a ele. “Você não entendeu nada”, berrou, aborrecido.

No palco, Estrela D’Alva defendia os jurados. “Pobres jurados que receberam a tarefa inglória de julgar poesia.” E os consolava. “Não se deixem pressionar.” Bel Neto e Falu, além de um poeta francês, saíram finalistas. Benaim ficou de fora.

 

A favela do Vidigal fica encravada no pé do morro Dois Irmãos, entre dois bairros onde vivem pessoas de alto poder aquisitivo – Leblon e São Conrado. Do alto de suas ladeiras se tem uma vista fora de série do mar e do contorno das montanhas. Há alguns anos, com a redução da violência na cidade, garantida pelas Unidades de Polícia Pacificadora, estrangeiros e cariocas de classe média passaram a se interessar pelo lugar – os terrenos eram baratos, a paisagem, fascinante. Barracos sem reboco foram substituídos por construções mais ajeitadas. Com a volta da violência nos últimos dois anos, o interesse arrefeceu.

Na semana da Flup, um sangrento confronto entre traficantes da Rocinha, vizinha ao Vidigal, levou as forças de segurança a invadir as duas comunidades. Parte do morro estava ocupada por carros blindados e policiais armados.

Apesar da ostensiva presença da polícia, havia descontração nas ruas, uma atmosfera de festa do interior misturada a festival hippie dos anos 70. Uma multidão caminhava pelas ladeiras desviando das mototáxis, pessoas tomavam cerveja nas calçadas ou ficavam de bobeira nas portas dos hostels e botecos. No ar, um leve cheiro de maconha.

Após a apresentação dos poetas estrangeiros, sentei com Estrela D’Alva numa barraca montada ao lado do galpão. Perguntei como ela justificava a exclusão de Benaim, com seus versos tão sofisticados. Ela sorriu e respondeu, com um carregado sotaque paulistano: “Meu, o poema dela é lindo, mas talvez não funcionasse ali tanto como funcionaram outras coisas.” E arriscou uma explicação: “A urgência de um jovem negro, numa favela, é se manter vivo. Ter depressão e lidar com ela é luxo.”

Dois dias depois, na terça-feira, dia 14 de novembro, nos encontramos no final da tarde, num pequeno restaurante ao lado da ong Horizonte. Estrela D’Alva estava eufórica. Ao lado, esperando pelos pratos, estava seu ídolo, o poeta americano Saul Williams, que viera especialmente para o evento e participara de uma mesa mediada por ela.

Comentei sobre a força da poesia dos brasileiros, cuja final aconteceria dali a pouco. “É uma coisa revolucionária”, ela respondeu com entusiasmo. Consertou-se em seguida. “Acho que revolução não é a melhor palavra. A gente sabe o que vem depois de toda revolução. Tomada de poder, autoritarismo, exploração dos mais fracos.” A palavra correta era “levante”. Tanto que Slam – Voz do Levante, é o título do documentário que ela dirigiu em 2017, vencedor do festival de cinema do Rio.

Estrela D’Alva se empolgou ao falar do impacto do slam nas periferias. “A energia da juventude é como planta que tem que sair da terra. A juventude tem o impulso de explodir. Isso pode ser canalizado para a violência real, onde tudo é feito para essa juventude morrer e se matar, para matar os pretos”, disse. “Mas pode ser canalizada também para coisas maravilhosas, como a poesia.”

Saul Williams entrou na conversa. Embora tenha morado um ano em Curitiba, na adolescência, ele mal arranha o português. Contou que o slam foi de grande importância para a campanha de Barack Obama, ajudando a elegê-lo. “Nas rodas do slam, os poetas faziam versos defendendo a candidatura dele.” O movimento ganhou tanta visibilidade que hoje algumas escolas americanas, tanto públicas como privadas, estão formando professores aptos a preparar os alunos para o slam.

A conversa enveredou para o racismo, tema da maior parte dos poemas dos brasileiros. Estrela D’Alva acha que é mais difícil enfrentar a segregação racial no país justamente por não haver um apartheid declarado. “É claro que na África do Sul o apartheid é escancarado. Por isso fica mais fácil lidar com o inimigo”, afirmou. “No Brasil existe o mito da democracia racial, e de repente vem o apelido ‘Macaco’.”

Ela se exaltou ao expor seus argumentos. “Pra resumir, aqui morre um jovem negro a cada 23 minutos”, disse. “É um país que está exterminando a juventude negra.” E me perguntou: “Meu, me diga com quantos pretos você trabalha na tua revista? Teu editor é negro? Cadê os pretos, meu? Estão na faxina, limpando o chão. É revoltante.” “Os brancos têm que entender que se a paz não for pra todos, não vai ser pra ninguém.”

Observei que eu via uma grande diferença entre o funk, que com linguagem chula costuma tratar a mulher como objeto, e a poesia do slam. Disse ainda estranhar que uma mulher como mc Carol, um dos expoentes do funk, falasse das mulheres como se fossem objetos sexuais. Estrela D’Alva soltou sua risada: “Eu acho que você vai entrar numa cilada”, disse. “mc Carol, Valeska Popozuda e outras mulheres do funk falam, ainda que numa linguagem chula, da liberação da mulher. O que elas estão dizendo é: ‘Meu corpo, minhas regras’, ‘Sou piranha e ninguém me segura.” E me deu um recado: “Se você for falar disso, vai parecer branca que não entende nada de preto, falando de cima para baixo.”

Não fiquei muito convencida. Insisti e perguntei se músicas que dizem coisas como “as novinhas querem transar” não poderiam estimular a violência masculina contra as mulheres. Dessa vez ela não riu: “Ao pensar assim você está criminalizando a mulher. Você está dizendo que ela é responsável pelo estupro, que é o que muitos dizem quando uma menina de saia curta é estuprada.”

Às oito da noite, Saul Williams, Estrela D’Alva e demais organizadores entraram para a final dos brasileiros. Kimani foi a vitoriosa. Ganhou um troféu – um boneco de madeira. O mesmo que receberam os outros dois vencedores, WJ e Bruno Negrão.

Na quarta à noite, feriado de 15 de novembro, na final do Rio Poetry Slam, a americana Falu foi proclamada vencedora. Estava feliz com o resultado, ela me disse à saída. E mais ainda por estar no Brasil – um dos seus sonhos era conhecer o país “com a maior presença africana fora da África”. Também ficou encantada com a atmosfera no Vidigal. “Todo mundo se conhece, se cumprimenta e se ajuda.” Lembrei-a do racismo, tão presente nos poemas dos brasileiros. Ela sorriu: “Bom, pelo menos aqui vocês têm leis que dizem que racismo é crime. Reconhecer essa situação já é um avanço.”

 

O maior acontecimento do slam no Brasil se chama Slam BR – Campeonato Brasileiro de Poesia Falada – e acontece todo ano em São Paulo, no Sesc Pinheiros. Dele participam os vencedores dos slams nos estados. Do Slam BR sai o representante brasileiro para disputar o slam mundial, realizado em Paris, o que provoca enorme ansiedade nos finalistas. Mais uma vez os responsáveis pelo evento são Roberta Estrela D’Alva e o Núcleo Bartolomeu. Encontrei-me com ela no dia da abertura, 15 de dezembro, quando, às voltas com os últimos preparativos, parecia ainda mais agitada que no Vidigal.

A abertura estava marcada para as quatro e meia da tarde. Treze estados mandaram poetas. São Paulo, com 45 rodas de slam, e o Rio, com vinte, tiveram direito a enviar mais de um concorrente. Entre os finalistas de 2017 estavam Cynthia Santos, a Kimani, que venceu um dos slams em São Paulo, e Bruno Negrão, vencedor em Porto Alegre – ambos haviam participado do slam no Vidigal, um mês antes.

Kimani foi sorteada para abrir o espetáculo na sexta-feira, dia 15. Por volta das três da tarde, fui encontrá-la em seu apartamento, no Grajaú, Zona Sul de São Paulo, onde vive com a mãe e duas cachorrinhas. Ela trabalha numa escola de adolescentes e acabara de chegar – tinha pouco tempo para ir até o Sesc Pinheiros. Vestiu correndo uma roupa que havia mandado fazer e se maquiou no espelho da sala. Kimani, 24 anos, nasceu e sempre viveu na periferia paulista. Quando tinha 14 anos, perdeu o pai, motorista de táxi, assassinado por um menor. Sozinha, a mãe, baiana, criou a garota e o irmão.

Ao contrário da família paterna, que nunca perdoou o assassino, Kimani sempre procurou entender o que levou o menino, à época um ano mais jovem que ela, a cometer o crime. “Ele reproduziu aquilo que aprendeu no dia a dia”, disse. “O cara estuda em escola defasada, tem uma educação de merda e mesmo assim a sociedade quer que ele dê certo.” Essa forma de encarar o assassinato do pai foi uma das razões que a fizeram se interessar pelo serviço social.

Kimani tem a pele clara, embora seus pais sejam negros. Antes de entrar para o slam, se dizia morena e alisava o cabelo. No início de 2016 se matriculou numa oficina de escrita para mulheres negras. Foi então que se assumiu como negra. “Nunca pensei que houvesse uma escrita própria para negros”, confessou, enquanto ajeitava o cabelo. “Mas foi lá que eu entendi que era negra, que devia ter orgulho de minhas origens. Isso mudou a minha vida. É como se eu tivesse encontrado meu lugar no mundo.”

Uma de suas orientadoras a levou a um slam, e foi com muito temor que ela leu o primeiro de seus poemas. Fez sucesso. Encorajada, passou a escrever freneticamente. Como seus poemas têm uma forte carga de crítica social, valendo-se de palavras cruas, ela procurou um nome de origem africana que camuflasse sua verdadeira identidade. “Como a Cynthia, tão docinha, tão educada, podia xingar?”, explicou. Descobriu o nome Kimani, que tem a ver com força e doçura.

Com sua persona, disse ter aprendido a protestar, a usar palavras duras para falar dos problemas a sua volta. “A Kimani me deu significação.” Ao frequentar várias rodas de slam, se deu conta do poder da poesia. “Nós, da periferia, estudamos em escolas públicas, onde o ensino costuma ser muito precário”, explicou. “Com a poesia, temos que descobrir novas palavras para fazer as rimas. Isso nos obriga a ler mais e, ao ler mais, aprendemos mais. Isso não tem fim.”

Já no táxi, a caminho do Sesc Pinheiros, a mais de uma hora de seu bairro, ela contou da alegria que é sentir a reação do público. “Muita gente vem me agradecer porque se identifica com meus poemas e se sente melhor depois de ouvi-los.” Perguntei se ela estava nervosa. Não estava: “A Kimani tirou toda a timidez da Cynthia.”

Chegamos minutos antes de o evento começar. Quando ela entrou no pátio praticamente lotado, foi recebida como uma pop star. Gente do público e muitos poetas vieram abraçá-la. Ela zarpou para o palco. O dj Eugênio Lima silenciou a música, e Roberta Estrela D’Alva a apresentou. A plateia vibrou.

Kimani respirou fundo. Ela, que no contato pessoal tem uma aparência doce e uma voz suave, pareceu incorporar outra pessoa. Sua voz ganhou uma entonação forte, quase rouca. Na plateia, de maioria negra como no Rio, os jovens mantinham os punhos cerrados e gritavam Pow, pow, pow, enquanto ela declamava girando e mexendo os braços como se brandisse uma espada.

É quente
Esquenta
Senta e aguenta
Ei mulheres
Viramos recalcadas e inimigas
Reduzidas a um bumbum granada e silicone em cada batida
Vejo panicat preta no RedTube, em volta a promiscuidade
E nos apresentam a Globeleza como símbolo de representatividade
Negra exportação
Curvas de Globeleza
Tá no cio?
Então controle o seu membro antes que ele enrijeça.

Kimani saiu consagrada: ganhou cinco notas 10 e passou para a final, que aconteceria no domingo, dia18. Celebrou com Bruno Negrão, também finalista.

Um pouco antes das seis da tarde, durante um dos intervalos, Sabrina Martina, com tranças vermelhas e a voz forte, levantou da plateia e começou a declamar um poema. Negra do morro do Alemão, local de muita violência do Rio de Janeiro, ela é uma das fundadoras do coletivo Poetas Favelados, que congrega autores de várias comunidades da periferia do Rio. É também organizadora do Slam Laje, que acontece duas vezes por ano na laje de uma casa no alto do Alemão. Junto com alguns poetas cariocas, ela havia viajado a São Paulo para assistir à final.

Sabrina Martina em apresentação na final do Slam BR em 2017

 

Sem ter onde ficar, o grupo se hospedou na casa de Roberta Estrela D’Alva, na Vila Madalena, que está desocupada: o barulho dos bares a empurrou para um apartamento não muito longe dali. Antes do almoço, os cariocas celebraram a chegada de um botijão de gás que eles compraram para preparar a refeição. Deu errado. O gás vazou e quase provocou uma explosão. Quando Estrela d’Alva chegou, deparou-se com os jovens em pânico, no meio da rua. “Gente, saímos do Rio para botar fogo em São Paulo”, um deles disse. Todos soltaram um riso nervoso.

Martina abriu os braços num gesto dramático e iniciou seu número.

São os pretos que mais morrem.
Principais vítimas de bala perdida, por estarmos descalço e sem camisa.
Pow, pow, reagiu a plateia. Ela prosseguiu.
Antes de terminar vou deixar uma provocação no ar.
Quantos pretos já te deram aula?
(Quantos?, a plateia perguntou em coro.)
De quantos você se escondeu achando que iam te assaltar?
(Quantos?, repetiu o coro.)
Quantos você viu passar no vestibular?
(Quantos?, perguntou novamente a plateia.)

No domingo à noite saiu o resultado. A vaga para o festival em Paris coube a Isabella Puente de Andrade, ou, Bell Puã, no slam, uma poeta do único coletivo de Pernambuco. Perguntei à Kimani como ela se sentia. “Ela será a voz de todos nós.”

 

Em 14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco, do PSOL do Rio de Janeiro, foi executada a tiros no bairro do Estácio, no Centro. O motorista Anderson Pedro Gomes também morreu. O coletivo Slam Laje havia marcado a primeira edição do ano para o domingo, dia 18. Quando a organizadora Sabrina Martina soube das mortes, pensou em cancelar o evento. Sobretudo porque outras três pessoas tinham sido assassinadas em um confronto no Alemão, entre elas, um bebê. “Achei que não haveria clima para fazer um slam, que tem a animação como característica”, disse. Ela e mais dois amigos que também organizam o torneio decidiram, por fim, levar o evento adiante e dedicá-lo aos cinco mortos. “Achamos que seria um respiro para todo mundo”, ela disse. A laje lotou. Antes do início, o público fez um minuto de silêncio.

Foi um slam diferente. “O slam é isso: resistência. Nosso objetivo é mostrar que ainda há esperança para as novas gerações”, Martina disse. “O momento é difícil, principalmente pra pobre, preto e favelado. Somos criminalizados por existir.” E concluiu: “Apesar disso estamos mostrando pro Brasil que estamos produzindo, que estamos fazendo poesia, que estamos resistindo, que estamos vivos.”


[1] Rede de supermercados gaúcha.

[2] Escravo americano que liderou uma rebelião em 1831, na Virgínia.

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