Ouvi pela primeira vez Meu mundo é hoje, composição de Wilson Batista, no LP de Paulinho da Viola A dança da Solidão (1972):
Wilson Batista e José Batista
Neste samba, o poeta, numa linguagem simples e direta, põe a nu um dos mecanismos da alienação presente neste nosso tão malformado mundo: agradar para ser aceito, “parecer” e não “ser” – mecanismo tão acionado na máquina do mundo moderno, reino da aparência, onde o ser humano muitas vezes se reduz ao triste papel de um mero bajulador para conseguir um emprego, um afeto, reconhecimento, para, enfim, sobreviver. É tão forte a pressão deste “querer ser aceito” que chega a parecer natural que a aparência impere a ponto de a pessoa se identificar com aquilo que esperam dela. E a sua interioridade, onde é mesmo que fica? E ela, onde estará? Encolhida debaixo das camadas impermeáveis de seu disfarce? Descolado da trama da farsa do mundo, ancorado na verdade de seu íntimo e na máxima da brevidade da vida, o sambista declara: Eu sou assim/ Quem quiser gostar de mim eu sou, assim. Simples assim. E com isso subverte a ordem deste mundo no momento em que não almeja fazer parte do coro dos contentes, em que desdenha o prêmio de consolação, dinheiro ou posição, que é dado, mas nem sempre a quem vender sua alma, como Fausto, de Goethe. Ele segue livre, cantando e tocando, sem se importar com que os demais pensam dele. Eu sou assim, quem quiser gostar de mim, eu sou assim. Quanto aos títeres do teatro do mundo, deles sente pena: humilham-se, degradam-se para serem reconhecidos, anulam-se e assim morrem, antes mesmo de morrer. De que serve dinheiro e posição se para isso é preciso morrer, deixar de ser?
Em 1992, no CD Canção Brasileira – a nossa bela alma, que é uma pequena antologia do lirismo na canção popular, cujo arco vai de Chiquinha Gonzaga (Lua Branca) a Arrigo Barnabé (Cidade Oculta) esta foi uma das canções que escolhi:
“Wilson Batista é um dos maiores compositores de samba de todos os tempos. Paulinho da Viola e João Gilberto também dizem isso. É uma injustiça que um sambista, tão atual ainda hoje, seja pouco conhecido” disse Cristina Buarque, cantora, compositora e profunda conhecedora do samba e dos sambistas. Wilson Batista nasceu na cidade de Campos, estado do Rio de Janeiro, em 3 de julho de 1913 e morreu em 7 de julho de 1968, na mesma cidade. De família humilde, ainda criança ficou órfão de mãe e foi criado pela irmã de seu pai, tia Rosinha. Wilson não gostava da escola, vivia fugindo e seu pai, preocupado com isso, matriculou-o no Liceu de Artes e Ofícios para que ele tivesse alguma profissão e aprendesse o ofício de marceneiro. Mas o menino não dava para a coisa. Por algum tempo, trabalhou como acendedor de lampiões. Se ele não tinha jeito nem pra escola nem pro trabalho, quando o assunto era música ele mostrava muito talento e entusiasmo. Pequeno, tocava triângulo numa banda e já compunha algumas músicas para o bloco Corbeille de Flores, do qual era integrante.
Um paradoxo: diferentemente do que reza o samba Meu mundo é hoje, Wilson queria sim fazer sucesso, tornar-se famoso, ser reconhecido. Em casa, sua família fazia muita pressão por conta da sua “vagabundagem”. Isso somado, o destino era um só: ir para o Rio de Janeiro. Chegando lá, conseguiu alguns trabalhos eventuais para sobreviver. Na busca para fazer da música o seu ofício, começou a frequentar a Praça Tiradentes e o Café Nice no final dos anos 20.
Seu primeiro sonho, no entanto, foi o de se tornar um sapateador: ficava horas nas salas de cinema aprendendo com os dançarinos de filmes norte-americanos os passos, as coreografias.
Todo homem carrega sua cruz/ Na estrada da vida/ Que é longa e sem luz, assim rezava o samba Na estrada da vida, de Wilson Batista, que foi cantado pela vedete Aracy Cortes em 1929, numa revista musical. Abaixo, a gravação de Luiz Barbosa (1933)
Wilson Batista não tocava nenhum instrumento, era semi-alfabetizado e, no entanto, foi criador de belas melodias e letras de uma qualidade que impressionou os grandes mestres da música brasileira. “Ele tinha uma inspiração divina”, tentava explicar Nássara, um de seus parceiros. Foi chamado de “o compositor da caixa de fósforo” por Custódio Mesquita, já que Wilson compunha batucando numa caixinha de fósforo com uma facilidade que causava espanto aos seus parceiros. Não é à toa que na gravação que Paulinho da Viola fez de Meu mundo é hoje, a caixa de fósforo, tocada por Elton Medeiros, soe como um elemento essencial no arranjo do samba (isso sem falar no duo de sopros, original, delicado). “Mesmo sem saber desta estória, nem deste epíteto, quando fui gravar este samba também tive a certeza de que era preciso uma caixinha de fósforo.”
Sobre a facilidade de Wilson para compor baseado nos acontecimentos do cotidiano – ele era um exímio cronista de crônicas musicais – disse um de seus parceiros, Antonio Almeida: “Wilson era flamenguista doente. Fomos ver um Flamengo x Botafogo, em General Severiano. O Mengo perdeu o jogo e ele saiu angustiado do estádio. Pegamos o bonde pra voltar pro Nice e Wilson criou um caso com o motorneiro, dizendo que não pagaria a passagem, tão aborrecido que se encontrava com a derrota do seu “mais querido”. Eu pedi calma e ele reagiu assim: ‘Eu tiro o domingo pra descansar e vou ao futebol me aporrinhar’. Fizemos ali mesmo, de parceria, o samba E O Juiz Apitou: ‘Eu tiro o domigo/ Pra descansar…’ Wilson era assim.”
E o juiz apitou, de Wilson Batista e Antonio Almeida com Vassourinha
Wilson tinha alma boêmia, casou-se três vezes, mas preferia os amigos, os bares e a rua à monótona vida de casado. Quando conheceu sua segunda mulher, Marina da Silva, ele ainda vivia com Floripes. Marina, que não sabia disso, começou a pressioná-lo para casar. Ele mudava de conversa, ela voltava a falar do assunto, até que um dia brigaram: “Eu saía do trabalho e pegava o bonde 56 até a central do Brasil, onde ele estava me esperando. No dia seguinte á briga, apanhei outro bonde, o 58, e fui direto para casa, deixando ele lá, esperando. Ele ficou uma fera comigo e fez aquela música do bonde que não veio”, conta Marina.
E o 56 não veio, Wilson Batista e Haroldo Lobo, com Déo
Mesmo depois de ter sido reconhecido pelo público e pelos compositores de sua época, Wilson continuava a ser discriminado como marginal, como alguém que frequentava “baixos ambientes” e retratava em seus sambas o modo de ser de malandros conhecidos e temidos, como Madame Satã que era seu fã incondicional. Não só isso, ele também se vestia como eles, usando terno branco ou azul-marinho, camisa de seda pura, chinelo “cara de gato”, lenço no pescoço, navalha no bolso.
Lenço no pescoço, gravação de Silvio Caldas de 1933
Foi com este samba que Wilson Batista desencadeou uma das mais famosas e inventivas polêmicas da história da música popular brasileira, a com Noel Rosa, que contesta Lenço no pescoço com Rapaz folgado:
Rapaz folgado, de Noel Rosa com Araci de Almeida
Embora esta resposta de Noel só tenha sido gravada em 1938, Wilson ficou com ela “entalada na garganta”. Nesse ínterim, os dois se conheceram e se tornaram amigos. Todavia, em 1934, após Noel ter lançado Feitiço da Vila, Wilson respondeu com Conversa fiada, gravada pelos Anjos do Inferno.
Conversa fiada de Wilson Batista com Jorge Veiga
Trecho do filme “Noel, poeta da Vila”, direção Ricardo Van Steen
À Conversa fiada, Wilson responde com Palpite Infeliz:
Palpite Infeliz, com Aracy de Almeida
A querela já estava no seu final. Depois disso, Wilson lançou ainda Frankenstein da Vila e Terra de Cego.
O compositor e pesquisador musical Almirante conta o final da polêmica: “Num encontro casual em um café na rua Evaristo Veiga, os compositores conversaram alegremente sobre as faladas ‘brigas’. Riram muito, e até Noel, completamente desinteressado de tais quizilas, atirou a ‘pá de cal’ definitiva na falsa inimizade.”
Quanto aos parceiros de Wilson Batista, muitos eram “comprositores”, isto é, compravam o samba e pagavam para ter seu nome como parceiro. Em troca disso, ele ganhava algum para sobreviver. Apesar de ter muitos sambas gravados e do sucesso, Wilson quase não recebia o pagamento por seus direitos autorais que, quando pagos, chegavam atrasados. Dentre os compradores de Wilson, destacou-se o malandro e bicheiro China. Mas nem todas suas parceiras eram assim. Ele teve parceiros ilustres e brilhantes, como Ataulfo Alves, Haroldo Lobo, Marino Pinto, Nássara. Com Ataulfo, por exemplo, fez Oh! Seu Oscar e O bonde de São Januário. Esta música é curiosa: com a ideologia do Estado Novo, que fazia a apologia do trabalho, Wilson deixou de lado o tema da malandragem e fez esta música que faz o elogio do trabalhador:
O Bonde de São Januário – Wilson Batista, Ataulfo Alves, com Ataulfo Alves
Dentre suas composições antológicas estão, Acertei no milhar, Balzaquiana, Emília, Louco, Lealdade, Preconceito, Meu mundo é hoje, Chico Brito, Nega Luzia, Mulato Calado.
Balzaquiana, Wilson batista, Nássara.
Balzaquiana, com Jorge Goulart
Emília – Wilson Batista, Haroldo Lobo, com Roberto Silva
Louco (Ela é seu mundo), Wilson Batista, Henrique de Almeida com Aracy de Almeida
Lealdade – Wilson Batista, Jorge de Castro com Orlando Silva
Preconceito – Wilson Batista, Marino Pinto, com Orlando Silva
Preconceito, com João Gilberto, em Montreaux
Chico Brito/ Nega Luzia/ Mulato Calado com Wilson Batista
Wilson Batista, um dos maiores sambistas brasileiros, morreu doente e sem recursos. Deixou com sua filha uma fita gravada com alguns sambas. Entre eles, um dizia assim: Todo mundo cantou/ Numa louca alegria/ Só sei a verdade/ Eu sonhei a sorte nua/ O verdadeiro autor da melodia/ Eu conheci Tião/ Um sambista legal/ Não teve sorte/ de ver seu sucesso/ Morreu antes do carnaval. Wilson Batista viu seu sucesso, teve suas músicas gravadas e tocadas, mas se viu também excluído de sua própria glória por viver sempre em dificuldade, sem dinheiro… Uma triste história que se repete com nossos grandes sambistas, que se tornam imortais pela força e valor de sua obra, mas que vivem sempre assim, na pobreza e no abandono… Como pode?