Uma das coisas que mais me fascinam no gênero canção é sua capacidade de nos transportar para lugares distantes num espaço muito curto de tempo. Às vezes basta um único acorde, o movimento sutil de um dedilhado, uma rápida introdução percussiva, um jeito de colocar a voz, o caminho de uma melodia, e somos imediatamente transportados para outros planos imaginários. Essa capacidade de conduzir a determinados estados de alma, de criar um transporte, de estabelecer um mood muito particular, que dificilmente pode ser descrito em palavras, é, para mim, o aspecto mais valioso e essencial das canções. Mais valioso, por exemplo, do que a mera busca por belas melodias e belas palavras, por ritmos inusitados ou por arranjos ousados etc.
Tudo isso é, evidentemente importante, mas só ganha valor real na medida em que potencializa a força vital da própria canção. Porque as canções são organismos vivos, um pouco como as pessoas: algumas são mais retraídas, outras mais expansivas; algumas maliciosas, outras explícitas; algumas claramente noturnas, outras francamente solares; algumas leves, outras pesadas; algumas originais e cativantes, outras banais e passageiras; algumas mais interessantes, outras menos. E tudo isso se expressa não numa única passagem, ou em determinada tirada, mas na totalidade do ser-canção, no mood que sua presença estabelece. É o mistério dessa presença que faz uma canção ser mais do que um simples agregado de notas e palavras dispostas de maneira melodiosa e harmônica, algo maior do que o resultado natural da soma de ideias e concepções que lhe sejam exteriores.
Leonard Cohen é um dos grandes mestres na criação de canções que se impõem pela presença original e encantada, pela atmosfera muito própria que sugerem. Não faz muito tempo que comecei a perseguir suas canções. Winter Lady, que está em seu primeiro álbum, Songs of Leonard Cohen (1967), foi que me deu a chave de entrada para o seu universo. Ela parece conter toda a melancolia congênita de Cohen, o traço evasivo de sua personalidade e de sua história. Sempre em certo descompasso com o presente, Cohen viveu ora isolado numa ilha grega, ora imerso no agito mundano dos anos 1960, ora desaparecido do mundo em algum retiro espiritual nas montanhas.
Winter Lady fala de uma “mulher viajante” (“traveling lady”) que evoca fantasias no protagonista – ele lhe pede insistentemente para ficar um pouco mais, que interrompa, ainda que brevemente, seu movimento transitório. O próprio espaço da canção é situado numa estrada (uma road song, por assim dizer), e o protagonista-cantor se coloca como “apenas uma estação” no caminho da viajante. As fantasias que ela traz à tona são infantis, referem-se a bonecos de neve, soldados e batalhas sonhadas em noites cada vez mais frias – soam como os ecos das tardes da infância de Cohen, banhadas no canto melodioso de sua mãe russa, e o protagonista sugere que “ela costumava usar o cabelo como o seu, exceto quando estava dormindo”. A imagem do cabelo se desdobra na imagem de um tear banhado em “fumaça, ouro e respiração”, ao qual se segue um quadro vago no qual a viajante, parada em silêncio na soleira da porta, desperta no cantor a misteriosa reflexão: “Você escolheu sua jornada muito antes de seguir por essa estrada.”
Uma deliciosa atmosfera onírica perpassa Winter Lady. Tudo nela é profundamente sugestivo, tudo contribui para criar um mood no ouvinte. E Cohen precisa de muito pouco: cinco acordes com algumas alterações climáticas – o quarto grau da tonalidade soando lindamente sob os acordes durante quase todo o tempo –; uma voz pequena e grave; uma melodia bastante simples e recorrente – que desliza sobre um compasso ternário e nos embala como se fosse um acalanto –, e imagens verbais algo arquetípicas, que religam o tempo mítico da infância ao eterno mistério do feminino e do destino. São elementos muito simples, que ganham vida pelo manejo preciso e consciente de um ourives sofisticado. O resultado é um objeto vago, feito de “fumaça, ouro e respiração”, que se impõe como presença viva lá no fundo da alma, e não cessa de encantar.