A imagem dos carros da Polícia Federal cercando o Palácio das Laranjeiras na manhã de terça-feira (26) provocou nos fluminenses uma triste sensação de déjà-vu. Não faz dois anos que o então governador Luiz Fernando Pezão deixou o palácio em direção ao Batalhão Especial Prisional da Polícia Militar, em Niterói, acusado de receber quase 40 milhões de reais em propinas de contratos do governo do Rio. O governador Wilson Witzel não foi preso, mas a Operação Placebo, como foi batizada, o atinge de forma acachapante. Entre os indícios que levaram à ação estão áudios em que empresários presos sob acusação de desvio de recursos da saúde mostram saber que o “01”, ou “WW”, assinaria uma portaria permitindo que uma de suas organizações sociais, proibida de administrar unidades de saúde do estado, fosse reabilitada. A medida de fato foi assinada por Witzel, dias depois da conversa entre os investigados. A PF também descobriu que, desde agosto de 2019, estava em vigor um contrato de prestação de serviços entre empresas do grupo Mário Peixoto, um dos maiores fornecedores do estado, com a primeira-dama, a advogada Helena Witzel. Mas não encontrou evidências de que os serviços tenham sido prestados. O secretário de Desenvolvimento Econômico, Lucas Tristão, também recebeu pagamentos do grupo de Peixoto, que tem contratos de 129 milhões de reais com o governo.
Quase tão fortes quanto as suspeitas contra Witzel foram as desconfianças de que a operação tenha sido resultado de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal do Rio. Na véspera, a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), uma das mais fiéis aliadas do presidente, declarou à Rádio Gaúcha que estava para acontecer um “Covidão”, uma ação da PF contra governadores por desvios de recursos destinados ao combate ao coronavírus. “A minha PF vai atrás de quem estiver fazendo besteira com essa grana”, já tinha avisado Bolsonaro, em 29 de abril. Ao expelir do governo o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, no final de abril, o presidente da República alegou estar insatisfeito com a ação da PF no combate à corrupção. Nos bastidores, afirmava que Moro “sentava em cima” de operações contra seus inimigos, mas que não lhe passava informações sobre investigações contra ele e seus parentes. Um de seus maiores inimigos é Witzel, a quem o presidente se referiu como “estrume” na reunião ministerial do final de abril passado, exibida em vídeo para todo país na última sexta-feira. Como as buscas sobre Witzel têm como base indícios colhidos pela própria PF em investigações que vêm desde março, não é possível afirmar que a polícia estivesse “sentada em cima” dos indícios contra o governador. Mas a rapidez com que o caso foi apreciado na Procuradoria-Geral da República chamou a atenção.
O procurador geral da República, Augusto Aras, está desde setembro evitando despachar sobre os relatórios da Polícia Federal que atribuem ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), crimes de corrupção passiva, falsidade ideológica eleitoral e lavagem de dinheiro no caso da Odebrecht e da OAS. Foram encaminhados pelo ministro Edson Fachin, que precisa do parecer do PGR para seguir com o inquérito – arquivando ou processando Maia. Aras, porém, não decide nem uma coisa nem outra. Há outros casos esperando parecer há tempos, o que é motivo de reclamações de procuradores. O de Witzel, no entanto, foi despachado em velocidade recorde. Segundo a decisão do ministro Benedito Gonçalves, que autorizou a execução das buscas, as provas contra Witzel chegaram à PGR no dia 14 de maio. O pedido de buscas em doze endereços ligados a Witzel, sua mulher e seu secretário foi feito no dia 20 – mas não foi feito pela PF ou pelos procuradores do Rio, e sim por iniciativa da subprocuradora Lindôra Maria de Araújo, de estrita confiança de Aras. Lindôra foi designada para cuidar de processos de autoridades com prerrogativa de foro no Superior Tribunal de Justiça (STJ), e portanto sua função é mesmo despachar inquéritos e processos como o da Placebo. Mas é a primeira vez que a própria PGR pede uma ação do tipo no STJ desde o início da gestão Aras, em outubro passado.
Na segunda-feira, o presidente Jair Bolsonaro fez uma visita inesperada à sede do Ministério Público Federal para participar da cerimônia de posse de um procurador. Depois da ação contra Witzel, deu os “parabéns” à Polícia Federal. A súbita celeridade de Aras foi assunto ao longo de todo dia nas listas de mensagens de delegados e procuradores. Comentava-se, ainda, o fato de que um dos elementos a sustentar a operação foi um depoimento do subsecretário de Saúde do Rio, Gabriell Neves, tomado na cadeia pelo Ministério Público estadual. Neves foi preso no início de maio. Quem o ouviu, porém, não foram os promotores responsáveis por sua prisão, que não foram sequer avisados. A oitiva foi feita de surpresa por outro colega – Claudio Calo, que se declarou impedido de investigar as denúncias de rachadinha no gabinete de Flavio Bolsonaro. Na ocasião, Calo alegou ter tido reuniões com o senador e compartilhado posts nas redes sociais.
Ao reagir contra a operação, Witzel acusou o presidente da República de instrumentalizar a PF para persegui-lo e atacou Flavio. “O senador Flavio Bolsonaro, com todas as provas que temos contra ele, já devia estar preso. Este sim.” Witzel não nega os desvios, mas diz que está apurando as denúncias e que já demitiu os auxiliares acusados. Desde o início da crise do coronavírus, o governo Witzel cancelou mais de quarenta contratos com fornecedores de equipamentos e serviços de saúde. Já foram apontadas fraudes em concorrências, descobertas empresas fantasmas e identificados vencedores em nomes de laranjas. Dos mil respiradores mecânicos comprados para atender às vítimas da Covid-19, só cinquenta foram entregues. Apenas um dos sete hospitais de campanha prometidos no início da pandemia foi inaugurado – e, ainda assim, sem condições adequadas de funcionamento. Witzel afirma não ter relação com os contratos suspeitos. A partir da operação de ontem, porém, ficou mais difícil sustentar essa versão.
O contrato de 540 mil reais do escritório de Helena Witzel com a empresa DPAD Serviços Diagnósticos, do grupo de Mário Peixoto, coloca a primeira-dama no foco dos investigadores. Um dos maiores do ramo, Peixoto ascendeu no governo de Sérgio Cabral e se tornou sócio dos ex-presidentes da Assembleia Legislativa do estado Jorge Picciani e Paulo Melo. Todos estão presos por acusações da Lava Jato no Rio. Segundo a PF, Helena começou a receber a primeira de 36 parcelas de 15 mil reais em agosto de 2019. Em outubro, uma organização social do grupo de Peixoto, a Unir, que administrava Unidades de Pronto Atendimento, as UPAs, foi descredenciada pelos secretários da Saúde e da Casa Civil após um processo interno constatar irregularidades. Em março, o próprio Witzel a reabilitou, por meio de uma portaria. O governador alega que o fato de a empresa de Peixoto ter sido desclassificada mostra que não há relação com o contrato da mulher. Mas ainda não explicou por que reabilitou a empresa.
Como advogada, Helena tem uma carreira incipiente. Ex-aluna de Witzel no curso de direito da Universidade de Vila Velha, no Espírito Santo, ela tirou a carteira da OAB em 2015 e, segundo a plataforma de buscas de processos Jusbrasil, só atuou, até hoje, em quinze processos judiciais, sempre como advogada do próprio marido ou de familiares. Atuou também como advogada do PSC, na prestação de contas das campanhas do partido no estado. Seu escritório, o “Helena Witzel Sociedade Individual de Advocacia”, foi constituído em março de 2018 e, até onde se sabe, a empresa do grupo de Mário Peixoto foi seu primeiro cliente privado. Depois da operação, a primeira-dama divulgou nota dizendo ter prestado os serviços e declarado os honorários no Imposto de Renda, mas não informou que tipo de trabalho executou.
A PF, agora, vai procurar outros contratos de Helena Witzel com clientes privados. Entre os investigadores, Helena é comparada a uma de suas antecessoras, Adriana Ancelmo, também advogada, condenada a 18 anos de prisão por lavagem de dinheiro e associação criminosa. Um dos expedientes usados por Adriana eram contratos de prestação de serviços de advocacia fictícios. Chamada de “Riqueza” pelo marido, o ex-governador Sérgio Cabral, Adriana Ancelmo tinha uma fornida coleção de joias e tamanha influência que chegou a indicar desembargadores e um ministro do STJ. Helena Witzel também é conhecida pela ascendência sobre o marido. Não se sabe, ainda, se passará a compor a triste estatística das primeiras-damas fluminenses.