Como de hábito, uma cifra importada da China impressiona pelos contornos titânicos. O WeChat, mais popular aplicativo do país, contabiliza por dia, 902 milhões de usuários e cerca de 38 bilhões de mensagens. A ferramenta tecnológica, monitorada minuciosamente pelas autoridades, escancara o paradoxo chinês, há quarenta anos pairando sobre o país mais populoso do planeta: como modernizar a sociedade, mantendo-a sob a mão de ferro do Partido Comunista, no poder desde 1º de outubro de 1949.
Coube a Xi Jinping, sucessor dos imperadores vermelhos Mao Tsé-Tung e Deng Xiaoping, transformar-se em timoneiro na fase mais desafiadora do paradoxo histórico, quando a economia chinesa deixa para trás, como fórmula para decolagem, a descoletivização da agricultura e a industrialização a todo vapor, para construir um novo modelo apoiado sobretudo no setor de serviços, com ênfase em inovação e tecnologia.
Resumo da ópera: a sociedade chinesa apresenta um tecido social cada vez mais complexo, com mudanças tectônicas em quatro décadas, exemplificadas pela urbanização acelerada e pela expansão de uma robusta classe média. O novo cenário torna ainda maior o desafio, ao Partido Comunista, de sua permanência no poder.
No comando do PC desde 2012, Xi Jinping não esconde a estratégia para lidar com o repto crescente: concentrar poderes. No domingo, 25 de fevereiro, anunciou a intenção de abolir limites para reeleição do presidente, cargo que ocupa desde 2013. Em outubro passado, no décimo nono congresso do Partido Comunista, Xi obteve mais um mandato de cinco anos como secretário-geral e, quebrando uma tradição, não sinalizou candidato para sucedê-lo, em 2022, no posto mais poderoso do país – já que, na China, a autoridade emana sobretudo das estruturas partidárias. A Presidência do país carrega, portanto, caráter eminentemente simbólico e cerimonial.
No festim do PC em que celebrou sua concentração de poderes, Xi Jinping discursou de maneira castrista, ao consumir 3 horas e meia, e discorreu sobre a importância da “cultura da inovação”, previu a expansão da classe média e a diminuição das atuais diferenças de renda, entre o topo e a base da pirâmide. Mas advertiu sobre o risco de o país importar modelos ocidentais de democracia.
Paira, sobre a elite dirigente chinesa, um trauma: o colapso do PC soviético e da União Soviética, ocorridos em 1991. Mikhail Gorbachev, o reformista-mor, começou em 1985 um cardápio de mudanças políticas, a “glasnost” (transparência, em russo), alargando, em ritmo acelerado, os limites de liberdade individuais no país, ainda sob o tacão do regime comunista. O gorbatchevismo deixou as metamorfoses econômicas, a “perestroika” (reestruturação, em russo), para um segundo momento e numa velocidade morna.
Desde o início das reformas chinesas, sob Deng Xiaoping, em 1978, a economia se sobrepôs à política. A meteórica debacle soviética reforçou a percepção em Pequim, para a manutenção do PC no poder, da necessidade de seguir o caminho original, sem desvios de rota.
Em 1994, após viver quatro anos em Moscou, como correspondente da Folha de S.Paulo, e testemunhar a desintegração da União Soviética, mudei-me para Pequim, a fim de acompanhar in loco, até 1997, a decolagem da China. Um diplomata chinês, quando de minha mudança, me disse: “Estamos felizes que alguém como você vá trabalhar em nosso país e, com sua experiência russa, possa comparar os dois processos e seus resultados.”
Xi Jinping e seu entourage certamente se debruçaram sobre a opção de Gorbachev e suas consequências. E insistem na ideia de manter a política sob mão pesada, enquanto, inevitavelmente, modernizam a economia.
Deng Xiaoping, o patriarca da alquimia responsável por misturar economia em mutação com sistema político congelado, sentenciou certa vez: “Fazer reformas é como andar de bicicleta: se parar de pedalar, você cai.”
Xi parece concordar. E, ao amealhar cada vez mais poderes, sinaliza a disposição férrea de controlar o Partido Comunista e as estruturas políticas, para seguir pedalando e modernizando a economia, enquanto mantém o regime monopartidário. A pergunta é até quando a fórmula pode funcionar no país dono da segunda maior economia do planeta.