Minha família vem da Ucrânia. Não sei bem de onde. Meu avô Leonardo conta que seu avô, Pedro, chegou ao Brasil pelo porto de Santos em 1907. A partir daí se estabeleceu no Rio Grande do Sul, ao redor de Erechim e, depois, Passo Fundo – onde o governo concedia terras aos imigrantes. Dizem os mais velhos que a outra parte da família de autodenominados russo-ucranianos, do tio-avô Nicolas, se estabeleceu nos Estados Unidos e debutou uma linhagem artística à estirpe com a atriz Natalie Wood. Minha avó alardeia que somos parecidas, como toda avó delirante em um contexto de fofoca.
Cresci ouvindo histórias sobre como meu avô cresceu muito pobre em Passo Fundo e falava apenas russo até os 10 anos de idade. Como só a partir dessa idade passou a frequentar a escola porque, para ir, precisava de calçados e não tinha sequer um par. Como seu pai, Virgílio, era comunista filiado ao PCB e grande fã de literatura russa – muito embora ele próprio fosse semianalfabeto. Era um homem que metia medo, segundo minha mãe, com seus óculos de tartaruga e os quase 2 metros de altura. Já a mãe de meu avô, Marina – de quem honro o nome –, era analfabeta e uma cozinheira de mão cheia. Com seus menos de 1,50 metro de altura, fazia borscht diariamente para todos – ainda que sua versão adaptada aos desígnios sulistas nem sempre levassem beterraba.
As referências eslavas nunca abandonaram meu léxico familiar. A primeira filha de meu avô, minha mãe, chama-se Natasha em homenagem à protagonista de Guerra e Paz. O nome da segunda filha, Larissa, veio de Lara, a personagem de Doutor Jivago. Dostoiévski, Tolstói, Gogol e outros nomes difíceis me eram arremessados desde pequena, e eu me sentia meio perdida em meio aos patronímicos todos que eles traziam consigo. Isso sem contar meu próprio sobrenome, Slhessarenko, um trauma absoluto em toda e qualquer repartição pública e privada que frequentei desde menina.
A coisa toda ganhou ares de política quando meu avô veio a ser preso pela ditadura militar brasileira. Foi instaurado contra ele um inquérito policial militar que o acusava de comunista e denunciava o nome de sua primogênita como evidência inconteste de sua “filiação ao inimigo”. Sua casa veio a ser saqueada três vezes e outras formas de perseguição política se seguiram. É uma ferida familiar que carregamos todos com muita reverência e afetação.
Quando fui convidada pelo Ministério de Relações Exteriores do Reino Unido para visitar a Ucrânia entre janeiro e fevereiro de 2024, todo esse passado presentista deu o rebote. A ideia era formar uma delegação da sociedade civil para ouvir autoridades locais, nacionais e organizações civis sobre a realidade acachapante do conflito. A primeira coisa em que pensei não foi a guerra, mas a possibilidade de conhecer o país da minha família. Pensei em como era injusto eu estar na posição de visitar a Ucrânia sendo que meus familiares que foram absolutamente formatados por ela, notadamente meu avô, não poderiam fazê-lo. Senti-me, por outro lado, em uma missão honrosa: levar a herança viva da família a sua origem; radiografar todos os mínimos detalhes daquele lugar tão carregado de afetos aos meus progenitores.
Mas aquela estava longe de ser uma viagem normal. Eu só havia sido convidada a ir ao país em razão da guerra, para discutir política e autoritarismo. Isso me trouxe uma sensação de desorientação muito particular: primeiro porque eu era brutalmente ignorante sobre o que estava acontecendo. Sentia até vergonha de admitir o desconhecimento frente a algo tão visceralmente ligado à minha família e à geopolítica dos anos 2020. Segundo porque eu nunca tinha tido qualquer experiência sequer próxima de uma zona de guerra, então me sentia sem parâmetro algum de desespero. Em terceiro lugar, essas ignorâncias técnica e afetiva vieram acompanhadas por uma sensação um tanto paralisante de incompetência. O que uma moça brasileira, de classe média, com miúdos 26 anos e outras tantas dúvidas poderia somar a tal cenário? Em meio a pessoas tão gabaritadas e influentes, eu temia não ter voz alguma. Achava que todos já dominavam a arte da etiqueta político-institucional enquanto eu ainda usava meus anéis de coco e brincos de argola.
Fora essa desorientação toda, outra insegurança mais profunda me cortou: eu estaria fazendo algo probo? Estaria “do lado certo”? Essas perguntas podem parecer descabidas para serem proclamadas em voz alta, mas me soam mais do que justificadas em um contexto de desconhecimento; em que a guerra, no sentido clássico, se desenvolve com toda a fúria por dois anos e meio, mas também uma guerra informacional, mais nova, se estabelece.
Colhendo uns poucos fatos do cenário ucraniano recente, a desconfiança é mais que razoável. Um país que elegeu um comediante sem experiência política para presidente – cujo partido foi criado no ano anterior às eleições e levou o nome de sua série de tevê. Um governo que veio a banir partidos de esquerda, perseguir políticos opositores e censurar veículos de comunicação. Nomeou interventores, cancelou eleições e ganhou apoio nominal das maiores democracias ocidentais. Não só delas: também de alguns partidos de extrema direita pelo mundo, mobilizados com a causa do “anticomunismo”, ao passo que vários outros, notadamente na Europa, são aliados de primeira hora de Putin (vide o Fidesz, na Hungria e a AfD na Alemanha, por exemplo). Empresas gigantes e CEOs de toda sorte também vieram a se engajar na causa, um deles até dizendo que a reconstrução do país poderia virar um farol do neoliberalismo para o mundo. Seu presidente até tentou comparar o que está acontecendo agora com o que aconteceu no Holocausto, a fim de cavar (sem sucesso) a solidariedade de Israel.
Se voltarmos uma década, o país também foi palco de manifestações vorazes. Centenas de milhares de pessoas nas ruas reivindicando uma agenda nacionalista e anticorrupção. Usando táticas violentas e literalmente jogando políticos na lata do lixo. Não deu outra: abriu-se o caminho para a extrema direita, ainda que inicialmente tivesse agitado uma porção muito mais ampla e ideologicamente amorfa da população (qualquer semelhança com as Jornadas de Junho por aqui não é mera coincidência).
Para quem tem a ginga latino-americana, solidarizar-se com uma guerra europeia, branca e altamente lucrativa pode soar incômodo. Em um Sudão destroçado (e sem qualquer visibilidade midiática) e uma Gaza em frangalhos, quem seria a Ucrânia na fila das guerras? Mas não há uma escala universal; tentar parametrizar o maior ou menor sofrimento em cenários de destruição é perverso. Com a licença do pastiche a Audre Lorde, não há uma hierarquia de guerras. Não podemos nos dar ao luxo de lutar contra apenas algumas em detrimento de outras. Todas somam aturdimento e revolta; devem motivar uma luta comum: a luta por seu fim.
Vendo tudo de lá, fiquei por um tempo ainda sem palavras. Saí da Ucrânia, mas ela não saiu de mim. Passei, então, a conversar com muitas pessoas diferentes para tentar aplacar minhas dúvidas. Entrevistei gente afetada pelo conflito, de professores de Kiev a ucranianos emigrados; de uma filósofa e voluntária russo-ucraniana a um gerente comercial moscovita. E passei a perceber que, se olharmos de perto, veremos que há vários fenômenos em desenvolvimento na Ucrânia que estão patentes por aqui e por outras partes do mundo — a despeito ou por causa da guerra.
Foi nessa empreitada que conheci o trabalho de Volodymyr Ishchenko, sociólogo ucraniano emigrado e pesquisador da Universidade Livre de Berlim. Ele se denomina “ucrano-soviético” e faz parte de um grupo de críticos que, mesmo frente à ameaça existencial russa, não hesita em condenar algumas posições ucranianas em alinhamento à Otan, à União Europeia, ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial. Lançou neste ano um livro chamado Towards the Abyss: Ukraine from Maidan to War, publicado pela Verso Books, que reúne análises políticas que fez do país desde 2014 até dezembro de 2022.
Para alguns de seus pares intelectuais ucranianos, suas ideias atuais soam como uma traição ao projeto de Ucrânia que defendem. Para eles, Ishchenko se encaixa no espectro político como extrema esquerda e simplifica as complexidades ideológicas do país e os lados da guerra ao tentar enquadrá-la fundamentalmente nos termos de um conflito de classes – segundo ele, a luta seria entre os capitalistas políticos pós-socialistas (popularmente conhecidos como oligarcas) versus as classes médias aliadas ao capital internacional pró-Ocidente. Para Ishchenko, por outro lado, alguns desses colegas seriam etnonacionalistas que tentam explicar a guerra apenas por meio de identidades antagônicas e do imperialismo de Putin.
Quer abracemos a perspectiva de Ishchenko ou não, seus escritos jogam luz a alguns pontos cruciais do desenrolar político do país que vêm sendo negligenciados do debate internacional. São eles, por exemplo, o lugar que Zelensky ocupa no cenário político, as forças de extrema direita – inicialmente avessas, e depois afinadas ao projeto de Zelensky –, e o papel da esquerda por lá. Mergulhar nesses fatos pode ajudar a colocar as coisas em contexto e a abandonar a ignorância e desorientação que talvez muitos compartilhem comigo até aqui.
Demorei dois dias e meio para chegar à Ucrânia, viajando de São Paulo, e o mesmo tempo para retornar. Como o espaço aéreo está fechado, as alternativas são viajar por trem via Polônia ou entrar de carro pelas fronteiras; no meu caso, pela Moldávia. Foram longas sete horas de carro e dois controles de fronteira para cada perna do trecho (a ida e a volta). Como era final de janeiro, ainda dava para ver alguns rastros de neve pelo acostamento, mas a paisagem no geral era dominada por um verde desbotado, meio misturado com o preto do tchernozion, um dos solos mais férteis do mundo.
A primeira parada da viagem foi Odessa. A cidade portuária fica no Sul da Ucrânia e, ao contrário do que eu imaginava, não é muito contaminada por referências internacionais. Muito pelo contrário: fora a quase onipresente instituição do avocado toast nos menus de café da manhã, foi difícil encontrar traduções para o inglês ou qualquer outra língua menos assustadora para não conhecedores de cirílico.
A cidade teve sua infraestrutura comercial duramente afetada pela guerra. Silos que armazenam grãos no porto local aparecem como que desmoronando no horizonte, o que bagunça a paisagem intocada da escadaria de Potemkin, palco de uma das etapas do Ensaio Geral da Revolução Russa e do filme Encouraçado Potemkin. Quando vi os silos pela primeira vez, não entendi que eles estavam destruídos. Talvez a gente precise treinar o olhar para enxergar as ruínas.
Mesmo a destruição da catedral de Odessa – que tem um rombo gigantesco na sua ala esquerda – parece naturalizada no cenário local. Pessoas continuam caminhando em seus arredores, missas acontecem diariamente e o bondinho fica apitando na rua da frente. Ainda que as ruas estejam inundadas de vitrines com a placa de “aluga-se” ou “vende-se”, a atmosfera reluta em ceder ao desespero. Uma ucraniana que conheci me disse que as sirenes antibomba lhe servem de adorno ao sono; “é esquisito quando não tocam”.
Fiquei pensando em como as autoridades adaptaram a cidade para fazer os abrigos antibomba. A regra geral era a de que, ao ouvir as sirenes, era preciso logo correr para um deles, que ficam abaixo do nível da rua. Mas com o fastio dos dois anos e meio de guerra, correr para se abrigar virou exceção – sob o risco de você não conseguir dormir, trabalhar ou tentar manter uma rotina em meio à absoluta falta de rotina. Disseram-me que muitos deles foram aproveitados do século anterior; a infraestrutura de guerra já é velha conhecida dos locais. Visitei um abrigo dos tempos da Segunda Guerra Mundial. Ele parecia congelado no tempo: portas maciças de ferro, cadeiras empoeiradas e duas mesas grandes de madeira; um telefone de discar no canto dianteiro e papéis indecifráveis lambendo as paredes.
Enquanto Odessa guarda os trejeitos das cidades menores, silêncios gelados de janeiro e vielinhas de paralelepípedos — muito embora seja a terceira cidade mais populosa da Ucrânia –, Kiev escancara o oposto. Edifícios altíssimos, alguns mal vistos pelo estilo stalinista, e avenidas mais largas. Igrejas portentosas, pixos políticos sobre a guerra e outros símbolos que já vêm de uma década – filhos dos protestos de Maidan – também eram parte da cena local.
A cidade parece uma colcha de retalhos, em certo sentido. Arquitetonicamente, foi alvo de disputa entre diversos impérios e exala esse mosaico meio desajeitado de referências antagônicas. Vários prédios, para além das repartições oficiais, passaram a portar uma bandeira do país, em apoio aos soldados – “o azul significa o céu; o amarelo, o trigo”, explicou-me uma guia local. Não é de todo incomum vê-los passeando pelas calçadas. Todos fardados, eles também passaram a proteger as entradas de prédios públicos, fazendo barricadas vultosas e mais controles de segurança.
Perguntei a um grupo de ucranianas se elas saberiam me dizer de que parte do país vem o sobrenome Slhessarenko. Primeiro, uma confissão: Slhessarenko está para a Ucrânia assim como Silva está para o Brasil. Depois, um chute impreciso: pode vir do centro ou do Leste. Pedi para elas me apresentarem um primo distante, ao que me responderam com risos tímidos. Com uma gravata borboleta que era um acontecimento ela própria, um professor de ciência política de lá adicionou: “Esse é o jeito mais brasileiro de traduzir o sobrenome a partir do cirílico”, e deu um riso abafado. Cartórios do Brasil, um empreendimento à parte.
Em Kiev, visitei com frequência o Media Center Ukraine. Ele se autodeclara uma “iniciativa cívica dedicada a apoiar a mídia e jornalistas independentes cobrindo a guerra financiada pela rússia” (rússia em minúsculas mesmo, como outras autoridades por lá adotam também). Na entrada, um cartaz de papelão mostra um tronco masculino de terno e uma mão vestida de luva de box com a legenda “100% verdade”. Voluntários de lá também trabalham de moletons pretos com os dizeres “a verdade irá prevalecer” em azul e amarelo. As mensagens me deram um embrulho no estômago. A guerra atropela tudo; chapa todas as complexidades em apenas dois polos: pró-Ucrânia independente, detentora da verdade, ou traidor nacional, da propaganda.
No último dia no país, ouvi sirenes ao caminhar no meio da rua. Imaginem aqui alto-falantes espalhados por todo o perímetro de paralelepípedos, bem altos, em postes de luz ou coisa similar. Já estava de volta à Odessa, a parada antes de rumar para Chisinau, a capital da Moldávia. O barulho clássico – universal? – que alardeia emergências era ensurdecedor.
Em vez de ir para o abrigo, fui tomar café da manhã na beira do porto. Em uma sorveteria enorme, com dois salões diferentes e um corredor. Todas as mesas estavam vazias, à exceção de uma, que aderia ao teatro cotidiano. Não conseguia entender absolutamente nada do cardápio e as atendentes também não falavam inglês, com exceção da mais nova de todas, que arranhava a língua com um zunido característico dos sotaques de lá. Pedi uma torrada com abacate e outras firulas, só me certificando de que era uma opção vegetariana (palavra também universal?), e segui ao carro para a viagem de volta.
Mesmo de dentro dele era ainda possível ouvir os gritos das sirenes de alerta. O que você faz quando está em uma estrada e toca o alarme? Uma funcionária pública de lá ainda me falou que alarme é privilégio: dá tempo de fazer alguma coisa; piores são os ataques não anunciados. Fiquei pensando sobre isso tudo no caminho de volta, enquanto passava por diversos checkpoints com a placa de proibido tirar fotos.
Traçar paralelos perfeitos entre outsiders magnatas da política ocidental e o presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky não dá muito certo. Por mais que haja afinidades eletivas com incumbentes de extrema direita em países ocidentais – para não fincar o modelo apenas na primeira geração de Donald Trump, a nova geração do presidente argentino Javier Milei vem a reboque –, Zelensky não é lido no país como um partidário do clube.
Eleito em 2019, o comediante era até então produtor-executivo e protagonista da sitcom Servo do povo. Nunca havia tido qualquer experiência com política; sua sitcom acabou servindo como pré-campanha. Além do mais, emprestou seu nome ao partido que ele viria a capturar. A escolha funcionou. Por mais desgostosa que seja a evocação de “servo” (tendo em vista o regime da servidão vigente na Ucrânia durante no século XIX), no mínimo, ela prende a atenção. Tanto é assim que até pelas bandas de cá foi usada por nada mais nada menos que Pablo Marçal, candidato derrotado à prefeitura de São Paulo: o candidato pedia a chance de ser um “servo” como prefeito da cidade.
Por um lado, havia expectativa de que Zelensky traria a Ucrânia aos trilhos democráticos. Por outro lado, aliados nacionalistas-liberais de seu rival, Petro Poroshenko, pintavam o candidato como uma possibilidade de détour para a Rússia, em reversão à ocidentalização promovida pelo incumbente de até então. Por mais infundada que fosse a caricatura de um Zelensky pró-Rússia, é verdade que ele esboçou um tom mais conciliatório do que seu adversário, tentando abandonar clivagens clássicas da política nacional – como Ocidente versus Oriente e falantes de russo versus falantes de ucraniano – em nome da união. Iludido, ele sonhava que traria Putin para a mesa de conversa, negociaria os territórios ocupados em 2014 e acabaria com os termos fracassados dos Acordos de Minsk (selados com a invasão desse mesmo ano).
Quando perguntado em 2019 por quem viria a se tornar seu biógrafo, Simon Shuster, sobre por que abandonaria os palcos do entretenimento e adentraria os da política, ele respondeu que a elite política de Kiev se transformara em um bando de vândalos e debochados. Em um misto de salvacionismo e ingenuidade, também disse que ela acabaria com a economia do país em pouco tempo. Continuava uma guerra sem sentido no front Leste e suportava resignada baixas diárias de soldados – mal sabia ele que o pior ainda estava por vir.
“Eles são todos esnobes, é isso? Nenhum deles é divertido?” – chegou a perguntar, em referência às lideranças políticas com que encontraria se ganhasse as eleições. Só se reuniria, porém, com os divertidos, insistiu, e enviaria emissários profissionais para lidar com o resto. “Não quero me tornar politicamente correto, não é meu estilo”, completou.
“Politicamente correto” se soma a outras expressões que o líder usou em campanha e nos fazem torcer o nariz por aqui, dado o trauma comum bolsonarista. Zelensky falava em “quebrar o sistema”, o que revela pretensões antiestablishment, e não poupava desprezo aos políticos que dominavam a cena nacional. Queria inaugurar uma “nova política”, o que analistas de lá identificavam como, na verdade, a antipolítica. Esse combo tem cara de extrema direita. Cheiro de extrema direita. Focinho de extrema direita. Mas não é extrema direita por lá.
Ao mesmo tempo em que propalava slogans comuns às extremas direitas ocidentais e se diferenciava da extrema direita ucraniana, Zelensky esboçava promessas de uma agenda libertária. Contra o intervencionismo do Estado, em prol do afrouxo fiscal e das liberdades individuais. E, mesmo que as seguintes pautas não causassem muito frisson por lá, colocou-se igualmente a favor da legalização de drogas leves, da prostituição e contra o banimento de direitos reprodutivos.
O comediante chegou a falar em ter um Estado todo ao alcance de um smartphone – e isso veio a se materializar com o lançamento do aplicativo Diia. Sua campanha toda foi pautada em redes sociais: apelidada de e-Ze, ela teve alta presença no Facebook, Instagram, YouTube e Telegram, mas acabou por descontentar jornalistas sedentos por entrevistas com o fenômeno meteórico. Recusando-se a conceder muitas delas, o candidato se firmou em outra era da comunicação política, o que igualmente conhecemos por aqui.
Uma vez que assumiu o cargo, o presidente lançou a plataforma LIFT, pela qual cidadãos comuns poderiam propor ideias e projetos, interagir com autoridades e até se candidatar a cargos no governo. Uma de suas bandeiras também era trabalhar para que se pudesse votar de forma online. Hoje, o país se vangloria de ser um bastião da tecnologia da informação, com muita de sua burocracia totalmente digitalizada e serviços disponíveis aos montes pela internet – ainda que, ao mesmo tempo, não deixe de ser também um dos países mais pobres e agrários da Europa.
Outro tema espinhoso na campanha foi a proposta de reforma agrária. Se propriedade de terra é sempre uma questão violenta, imagine em ex-Repúblicas soviéticas, que passaram por processos de privatização selvagem nos anos 1990. Em 2001, o parlamento ucraniano aprovou uma moratória sobre a abertura do mercado de propriedades rurais, que foi desde então prorrogada dez vezes, tamanho o receio de abertura tanto dos políticos quanto da população nacional. O tema chegou a angariar reprovação de cerca de 70% da população e até das elites políticas. Por outro lado, as pressões da União Europeia, do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional – fora a pressão nacional de setores potentes do agronegócio – impulsionaram a reforma. Uma delas, por exemplo, deu-se em 2018, quando a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu que a moratória violava direitos de proprietários rurais ucranianos.
A partir disso, Zelensky previu uma abertura em duas fases. De 2021 a 2024 apenas pessoas físicas poderiam comprar terras, em um teto de 100 hectares por pessoa. Depois, pessoas jurídicas poderiam comprar lotes, no limite de 10 mil hectares. A guerra, no entanto, também bagunçou esses planos. Desde então, Ishchenko afirma que o presidente vem exercendo uma política de “neoliberalismo de improviso”, cedendo às pressões ocidentais que enviam suprimentos e somas astronômicas.
A própria extrema direita ucraniana fez questão de se distanciar de Zelensky no início. Fez campanha feroz contra ele, recheada de ameaças de morte. Um de seus traços distintivos é o nacionalismo exacerbado, com a exaltação de uma identidade estritamente ucraniana (o que já a colocava em rota de colisão com o candidato Zelensky, que mantinha uma postura mais conciliadora) e a recuperação de símbolos históricos controversos.
Dentre eles, está a figura de Stepan Bandera. Ele foi um radical de direita que lutou pela independência do país desde os anos 1930 e também colaborou com o nazismo. Com biografia complexa, o líder participou (até liderou por um período) da Organização de Nacionalistas Ucranianos e, em consequência de ações do grupo, foi preso tanto pelo regime polonês nos anos 1930 quanto pelo nazista nos anos 1940. Sua organização assassinou judeus, poloneses e civis no geral e marchou junto com as tropas alemãs contra a União Soviética. Além disso, tentou declarar um Estado ucraniano independente dentro da cidade de Lviv, ocupada pelos nazistas, o que rendeu prisões em seguida. Para alguns, Bandera permanece um herói nacionalista; para outros, um colaboracionista assassino.
Nacionalista ou colaboracionista, Bandera é um símbolo abstruso. E, como é de se imaginar a este ponto, outro traço da extrema direita ucraniana – que é comum às extremas direitas em países pós-soviéticos – é a antagonização com a Rússia e a ojeriza ao comunismo. Aqui, mais um elemento não presente na campanha de Zelensky, muito embora a guerra tenha chacoalhado ambas as convicções. Os termos sobre o que, porém, significa “pró-Rússia” vieram a ser progressivamente inflados.
Não só a extrema direita se colocava contra essas posições acima, como também foi agente importante para remodelar o que elas significavam ao longo do tempo. Segundo Ishchenko, a onda de protestos de Maidan em 2014 – que colocou em causa o significado de uma nação e identidade ucranianas e foi instrumentalizada pela extrema direita – foi importante para reconfigurar a paisagem ideológica do país. A partir de então, ser “pró-Rússia” passou a significar muito mais do que só a integração à esfera de influência do país. Ou melhor, muito menos: o rótulo de pró-Rússia foi barateado para abocanhar igualmente posições independentes (daqueles que não defendiam uma Ucrânia nem aliada à União Europeia/ Otan nem à Rússia), pragmáticas (de negociação tanto com o Ocidente quanto com o Oriente) e céticas ao resultado dos protestos de Maidan.
Além de nacionalista e anti-Rússia, outros traços da extrema direita por lá são a mobilização contra a pauta LGBT e o uso de meios abertamente violentos – o que não combinava com as inclinações de Zelensky. Caracterizando assim, talvez não pareça tão diferente das forças radicais de direita que conhecemos por aqui. Porém, a propalada defesa da violência é tão grande que levou à formação de grupos paramilitares nesses setores e sua subsequente institucionalização. O Batalhão Azov é o caso paradigmático aqui. Surgiu em maio de 2014 na cidade de Mariupol como uma milícia, em razão da invasão russa no Donbass, e conseguiu massiva mobilização de voluntários e relevância na cena nacional, chegando até a ser incorporado ao exército ucraniano seis meses depois.
Para Ishchenko, esse uso escancarado da violência física diferencia a extrema direita ucraniana das marcas de extrema direita de Trump e de Milei, por exemplo. Em contraposição, aproxima-a dos fascismos dos anos 1920 e 1930, também caracterizados pela proliferação de grupos paramilitares e sua institucionalização. O sociólogo também denuncia laços dessa mesma extrema direita que escandalizou contra Zelensky na campanha com as forças pró-Ocidente, ou seja, em prol da integração ucraniana à União Europeia e à Otan. Em outras palavras, a extrema direita virou a página do antagonismo a Zelensky a partir da invasão em larga escala de 2022; por outro lado, nunca deixou de bandear com forças pró-Ocidente, isso mesmo antes da invasão que aconteceu em 2014. A diferença é que, antes de 2014, esse campo pró-Ocidente ainda era minoritário e impopular no país, o que mudou brutalmente desde então.
Esse bandeio, inclusive, funcionou como um fator premonitório para a política ocidental. Alianças entre a extrema direita e forças políticas liberais ocidentais aconteceram na Ucrânia antes do resto do mundo. E atualmente vemos esse processo de normalização da extrema direita por meio de alianças e sua incorporação ao establishment político em diversos países — no Brasil, inclusive. Outro exemplo nesse sentido é a normalização dos posicionamentos da premiê Giorgia Meloni e sua aliança com a presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen.
Hoje, a prevalência da extrema direita na sociedade ucraniana é alvo de muita discussão – e serviu como expediente perfeito a Putin para invadir o país (“desnazificá-lo”, nos seus termos). Há quem diga que a guerra a fortaleceu, que a mídia ocidental minimiza sua importância e que o Batalhão Azov – rebatizado de Brigada Azov – não se desradicalizou após a incorporação ao exército. Sobre sua representação parlamentar nacional, por outro lado, não resta dúvida: ela é quase inexistente. O maior partido, Svoboda, tem dificuldade de conseguir alcançar o mínimo de 5% de votos necessário para ocupar o parlamento e atualmente só ocupa um assento; já aquele que se originou do Batalhão Azov (a Divisão Nacional) não tem nenhum. Em âmbito municipal, por outro lado, o Svoboda domina algumas assembleias.
Para quem não pratica o vocabulário básico ucraniano, Zelensky desponta como uma esfinge. Ele domina símbolos correntes da extrema direita, mas não é seu representante. Tem propostas libertárias, mas não abre mão de agendas conservadoras também. Outro rótulo empregado para suas atribuições é o de populista. Mas nenhum deles sintoniza bem a frequência do atual presidente da Ucrânia.
Segundo Olexiy Haran, professor de política comparada da Universidade de Kyiv-Mohyla, é difícil colocar Zelensky como de direita ou de esquerda; antes, ele é um patriota. Essa palavra fede a 8 de janeiro por aqui, mas, em um contexto de guerra, assume sentido bastante diferente. Isso porque o tabuleiro ideológico por lá é bem outro também; basta ver a força declinante da esquerda institucional para entender que ali o jogo é outro.
O espectro da esquerda institucional no país tem força nanica. Segundo Haran, podemos falar em partidos e políticos de direita e centro-direita – de que Poroshenko é representativo, por exemplo –, mas não de esquerda. Seria isso uma jabuticaba ucraniana? Países com histórico soviético detêm heranças particulares com forças de esquerda. Na Moldávia, por exemplo, o partido comunista governou até 2009. Na Ucrânia, por outro lado, a rejeição à esquerda chama a atenção.
Por mais que os partidos comunista e socialista fossem forças políticas relevantes na Ucrânia nos anos 1990 – sendo o comunista o partido mais popular até 2002 –, eles foram perdendo progressivamente sua força, por conta da associação a oligarquias nacionais e repressão após os protestos de Maidan. O partido comunista foi proibido em 2015 e seu líder, Petro Symonenko, apoiou expressamente a invasão russa de 2022. Emigrou a Belarus em março daquele ano e foi ostracizado pela comunidade ucraniana.
Na visão de Ishchenko, porém, ainda é possível divisar redes informais da esquerda no país, mesmo que sem canalização institucional. Fora a “velha esquerda” institucional – de que os comunistas faziam parte e foram banidos pelas políticas de descomunização na sequência dos protestos de Maidan – há uma “nova esquerda” na Ucrânia. Sua força política nem se compara à anterior, mas ela poderia vir a ganhar popularidade caso a Ucrânia seja bem-sucedida na guerra e se aproxime da União Europeia, defende o sociólogo, ainda que acredite que isso não seja provável. Além dela, redes menores de marxistas e leninistas, chamadas de “círculos” (kruzhki), ganharam alguma popularidade com a guerra e mantêm uma posição derrotista, que critica ambos os lados do conflito.
Em âmbito institucional, o que se tem no país hoje é um sistema partidário volátil, com diversos partidos de ocasião – notadamente o Servo do Povo. É o que chamamos por nossas bandas de traços fisiológicos ou, em outras palavras, carência de ideologia política. Segundo Anna Osypchuk, professora de sociologia da Universidade de Kyiv-Mohyla, há uma preocupação transversal nos partidos com relevância eleitoral sobre o estado de bem-estar social, no entanto. Por mais que “socialismo” ou “políticas sociais” sejam rótulos evitados abertamente, há agendas inarredáveis como políticas de educação e saúde públicas, por exemplo.
A invasão russa em larga escala de 2022, por outro lado, serviu como o golpe de misericórdia ao espectro ideológico. A guerra atropelou até o fisiologismo. A inclinação ideológica virou mais simples e cristalina: só e puramente combater o inimigo externo. Ideologias políticas perderam progressivamente espaço em nome da ameaça existencial colocada pelos russos.
Até então, algumas forças de representação institucional de esquerda – bastante descapitalizadas após Maidan e a deposição de Viktor Yanukovych – se colocavam contra a adesão ucraniana à União Europeia e à Otan e as forças de direita em seu favor. Havia ainda quem apoiasse uma terceira via, de uma Ucrânia independente. Mas essa via foi espremida com o advento da guerra. A guerra, em resumo, uniu os campos, gerando duas reações imediatas em seu apoio. Primeiro, defender o Estado ucraniano contra a invasão externa; segundo, confeccionar uma ampla coalizão pró-Ucrânia, atravessando simplificações ideológicas já débeis.
Com a guerra que eclodiu em 24 de fevereiro de 2022, todos os futuros prospectados desde a campanha de Zelensky foram proscritos. A invasão russa em larga escala cancelou as expectativas de aprofundamento democrático e a negociação desejada com os russos. Uma sequência de medidas autoritárias, justificadas nominalmente pela guerra, tomaram as rédeas da política nacional.
Algumas delas são menos questionáveis. A pronta declaração de lei marcial no território nacional, prorrogada sucessivamente desde então, é praxe em emergências – a última prorrogação, a 12a, foi pedida em 12 de agosto. As estratégias militares tampouco são muito comentadas pelos cidadãos. Há um acordo tático e tácito de não comentar decisões do alto comando e manejo bélicas.
Guerra demanda unidade. O medo é de que discordâncias sirvam de combustível (fóssil) para as máquinas de propaganda russas. E o medo não é sem precedentes: capilaridade imensa e sofisticação tamanha levaram à disseminação de redes putinistas em diversos países africanos e latino-americanos, além da negação de atrocidades sem tamanho como o massacre de Bucha, ainda em março de 2022.
A oposição política ordinária também se vê de mãos atadas. Conversei com Andrii Osadchuk, vice-presidente do Holos (partido liberal de oposição ao Servo do Povo), em Kiev, em fevereiro deste ano. Segundo ele – e imaginem aqui o próprio Hugh Grant versão eslava –, é preciso entender as prioridades do momento. O inimigo é externo; a guerra hegemoniza a agenda política extraordinária. Não é que todas as críticas estejam proibidas, mas o grosso delas é, de certo, arrefecido.
Criticar exige cautela e sensibilidade ao momento. Entretanto, agendas ordinárias devem igualmente ser levadas a cabo, ainda que haja um espaço reduzido para a dissidência. Na medida do possível, as instituições continuam funcionando. Mesmo com barricadas frondosas, soldados vigilantes em suas entradas e sacos de areia escorados até nas janelas dos banheiros (para evitar pedaços de vidro estilhaçados).
Há amplo consenso também sobre a necessidade de suspensão de eleições (proibidas pela lei marcial também), tanto entre a elite política quanto entre os cidadãos. Em ano de super bowl eleitoral (mais de setenta países já foram ou serão palco de eleições), a Ucrânia teve de ficar de fora da festa – ao passo que a Rússia elegeu Vladimir Putin pela quinta vez. Isso sem falar nos 25 assentos do parlamento ucraniano, a Verkhovna Rada, que seguem vacantes desde 2014. A falta de eleições lá, que já aniversaria uma década, é explicada pela ocupação russa: áreas ocupadas não comportam eleições. (Por outro lado, essas mesmas áreas ocupadas abrigaram urnas para reeleger Putin neste começo de ano.)
Outras medidas adotadas, por sua vez, levantam as sobrancelhas. Dentre elas, o banimento de diversos partidos políticos alegadamente pró-Rússia, o fechamento de emissoras de tevê (até antes da invasão) e a perseguição aos críticos do regime. Ainda em março de 2022, o presidente ordenou a suspensão de onze partidos por manterem “laços com o inimigo”. À parte isso, também criou uma programação televisiva unificada entre diversos canais de tevê para fazer informes em tempo real sobre a guerra, a Telemaratona das Notícias Unidas. Criticada como pura propaganda de governo, ela passou a ter audiência cada vez menor no país com o passar do tempo.
Vários canais televisivos também foram alvo de censura e sanções, inclusive antes de a guerra estourar. Os canais de Viktor Medvedchuk, cuja filha é afilhada de ninguém menos que Vladimir Putin, foram banidos ainda em 2021, por exemplo. Também há relatos de que o simples envio ou postagem de símbolos soviéticos em redes sociais pode dar azo a processos judiciais por infração à lei de descomunização ou justificação da agressão russa.
Já no front religioso, o presidente recentemente promulgou uma lei severa que restringe o credo dos praticantes vinculados à Igreja Ortodoxa Russa (IOR), também conhecida como Patriarcado de Moscou. Segundo seus termos, grupos religiosos são obrigados a cortar laços com a instituição russa em até noventa dias, sob o risco de banimento. O alvo em especial é a Igreja Ortodoxa Ucraniana (IOU), que é historicamente vinculada à IOR e vem sendo acusada de espalhar propaganda do inimigo segundo o Serviço de Segurança ucraniano – por mais que tenha condenado a invasão russa desde o princípio. Nas palavras do presidente, deu-se mais um passo em direção à “independência espiritual” do país. Ou à perseguição religiosa, criticam especialistas.
Depois de tanto tempo de guerra, as fraturas da sociedade também ficaram mais expostas. Não é possível sustentar uma unidade coesa de propósito; se isso já era difícil no começo da guerra, dois anos e meio depois, então, é impossível. A guerra afeta a todos, mas de maneiras bastante desiguais. Como o reitor da Faculdade de Economia de Kiev recentemente comentou, enquanto alguns ucranianos têm o desafio de procurar vaga nas creches de Berlim, outros esperam carona para chegar a suas unidades militares. Não é difícil apontar outras desigualdades aviltantes: enquanto alguns morrem tentando nadar até a Romênia e escapar da conscrição, outros ganham incentivos para pesquisa e trabalho nos países europeus ocidentais. Além disso, hoje há cerca de 7,3 milhões de ucranianos que vivem em situação de insegurança alimentar (ou 24% da população em territórios controlados pela Ucrânia) e 9 milhões em situação de pobreza (29% da população desses territórios), segundo dados de maio do Banco Mundial.
A guerra também serviu de oportunidade para a aprovação de leis restritivas a direitos trabalhistas. Ultraliberais surfaram em sua onda para erodir garantias de trabalhadores, e os argumentos para tanto giram em torno ora da necessidade de desregulação para modernizar o país e apoiar empresas em tempos de vacas magras ora da obsolescência das leis trabalhistas ucranianas – advindas do período soviético. Em agosto de 2022, diversas leis promoveram erosão significativa no arsenal de direitos dos trabalhadores. A lei 5371, por exemplo, extinguiu a validade de acordos coletivos para trabalhadores em empresas com menos de 250 funcionários (o que afeta cerca de 70% do total da força de trabalho do país). Outra lei da mesma época – essa válida até depois da guerra – garantiu a possibilidade de contratos de “zero hora”, isto é, aqueles que não garantem um mínimo de horas a serem trabalhadas pelo empregado – e, portanto, levam à imprevisibilidade e oscilações de salário a patamares significativos. Uma terceira, por sua vez, isentou empresários de pagarem salários a empregados que são convocados aos fronts.
As campanhas de mobilização militares igualmente vêm sendo criticadas. A Ucrânia tem ampliado o alistamento de militares desde o começo do ano, mas o número de desertores é crescente, bem como o daqueles que se furtam ao recrutamento (dados de julho apontam mais de 400 mil evasores). Isso sem falar nos quase 200 mil processados por violarem regras de registro militar. Em agosto de 2023, o presidente também dispensou todos os chefes dos centros regionais de alistamento, em razão de escândalos de corrupção – a famosa propina, recebida em dinheiro ou em criptomoedas – para evitar a conscrição. Em fevereiro de 2024, foi a vez do então comandante do exército, Valeri Zalujni, após o fracasso da contraofensiva ucraniana lançada em junho de 2023.
Depois de tanto tempo de guerra, a mobilização virou um fardo significativo. Com uma nova lei de abril, a idade de alistamento foi reduzida de 27 para 25 anos. Por outro lado, a previsão da lei que regulava a desmobilização após 36 meses de serviço foi retirada, enxurrando críticas sobre o cansaço daqueles que servem no front há tempos. Outra lei da mesma época facilitou a identificação de conscritos e criou um cadastro online para alistamento, acendendo rumores sobre maior vigilância do Estado. Não são poucos os relatos de homens que evitam sair às ruas com medo de serem capturados pelos oficiais de recrutamento.
Vale lembrar que a Ucrânia está em guerra com um país que tem mais do que o quádruplo de sua população (são 144,6 milhões de russos contra 38 milhões de ucranianos) e uma reputação militar longeva, mesmo que controversa. Com um país que tem mandado até jovens na beira da menoridade para morrer no front, ainda que de forma excepcional. Adolescentes que mal completaram 18 anos, com apenas duas semanas de treinamento, têm celebrado contratos militares para lutar em suas primeiras missões no Leste da Ucrânia e morrem em combate. A maioria dos soldados russos são mercenários, ou seja, contratados para a guerra ao se apresentarem voluntariamente. Na Ucrânia, há o inverso: a maioria é de conscritos, ou seja, convocados a lutar pelo governo.
Segundo me confessou Egor, 27, gerente de produção de uma empresa de torrefação de café em Moscou, não é mais preciso dispor de campanhas de mobilização de soldados na Rússia. Campanhas de mobilização parcial aconteceram até o final de 2022, mas hoje os novos recrutas são todos voluntários. Eles já dão conta da demanda – até porque o governo russo oferece muitos benefícios econômicos aos alistados e suas famílias: a vida melhora. O relato de Tatyana, 29, que trabalha no terceiro setor e emigrou da Rússia há oito meses, ajuda a completar esse quebra-cabeça. Para a população rural e pobre da Rússia, como da Sibéria, lutar na guerra é uma oportunidade de ascensão de classe: ganhar até 200% mais do que se ganhava, quem sabe comprar uma casa e um carro para a família.
Tendo isso tudo em consideração, imaginar que há dois anos e meio os ucranianos vêm travando essa guerra chama a atenção. Ninguém achava que duraria tanto tempo. E, se no começo do ano a sorte não parecia estar com eles, que acumularam mais perdas de territórios, baixa de suprimentos e constrições de suporte estrangeiro, a partir de agosto o jogo deu brecha para virar. Mas a brecha se deu a um custo altíssimo.
Em 06 de agosto de 2024, a Ucrânia invadiu a região de Kursk, na Rússia. A imprensa cobriu a invasão com afinco e muita especulação sobre uma nova fase do conflito. De fato, foi a primeira incursão em território russo desde a Segunda Guerra Mundial. Desde então, Putin apareceu na mídia como mais hesitante – ou isso é precisamente o que os veículos ocidentais tentaram emplacar –, e o futuro a curto e médio prazo parecia turvo. Até que o troco de Moscou chegou, em parcelas estrondosas. Uma série de ataques massivos em diversas cidades ucranianas e a destruição de infraestrutura de energia marcaram o final de agosto e o mês de setembro. Kiev, a seu turno, tem tentado revidar na mesma moeda.
Políticos ucranianos, o presidente inclusive, insistem que esta é a hora de países aliados da Ucrânia reforçarem a ajuda militar, para que os termos do conflito se alterem de vez. Na Assembleia Geral da ONU, que ocorreu no final de setembro, Zelensky reforçou que “ninguém no mundo quer acabar essa guerra mais do que a Ucrânia”. E, para isso, é necessário estabelecer uma paz duradoura e justa – e não alguma trégua temporária, que dê espaço para outras invasões futuras do país. Nesse sentido, ele tem levantado a bola de um “Plano para a Vitória”, que começou a discutir com Joe Biden e Kamala Harris na Casa Branca e até com Donald Trump.
O presidente também foi veemente ao criticar a iniciativa do Brasil e da China de puxarem uma reunião de paz em seguida à Assembleia Geral, com base nos seis pontos que os países estipularam em maio deste ano. Eles, porém, acabaram por estabelecer um grupo de treze países do Sul Global para trabalhar pela paz na região, com membros observadores do Norte. Segundo Zelensky, o plano sino-brasileiro é “destrutivo”, e o Brasil está se colocando ao lado da Rússia.
Ao mesmo tempo, pesquisas de opinião já apontam um enfado nacional com a guerra ou, em uma expressão popular no momento, um cansaço de guerra. Um recorde de ucranianos agora apoia negociações de paz com a Rússia (57% segundo uma pesquisa de agosto, e há quem diga que o percentual é ainda subestimado; outra fonte recente crava o percentual em torno de 44%, no entanto). Até recentemente, qualquer iniciativa nesse sentido vinha sendo rejeitada como uma rendição inaceitável: paz significava ceder os territórios ao inimigo. Os ucranianos, por outro lado, relutam em aceitar termos de paz que os mantenham em subjugação, é claro. O desafio é gigante.
Também não é sem receios que as comunidades internacionais acompanham a situação nos fronts. Não bastasse o aumento pornográfico dos lucros da indústria armamentista, a normalização da militarização dos países de alguma forma envolvidos é também motivo de preocupação. Lula chamou atenção a este ponto em seu discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU; segundo o presidente, os gastos militares, aumentados pelo nono ano consecutivo, poderiam servir para combater a fome e a crise climática.
Nos últimos anos, a Polônia dispensou percentual histórico do PIB à defesa – e promete ainda aumentar o naco em 10% no ano que vem. Na Alemanha, a coalizão governista tem empregado mais e mais discursos alusivos ao seu cacife militar, e o ministro da Defesa, Boris Pistorius, vem batendo recordes sucessivos de popularidade desde que assumiu o posto. Segundo o primeiro-ministro Olaf Scholz, vivemos um “ponto de inflexão”.
A gravidade é tamanha que os mais pessimistas veem que o objetivo comum de agora deve ser evitar a catástrofe nuclear; dentre eles, Ishchenko. À parte isso, a Ucrânia não parece ter muito futuro independente: ou títere da Rússia ou títere do Ocidente. No discurso por ocasião da comemoração da independência ucraniana, em 24 de agosto, o presidente Zelensky chegou a dizer que o país não vai se acanhar frente a ameaças constantes de “apertar o botão vermelho” vindas de um “velho homem doente”.
Independentemente do pessimismo, a recente escalada de tensões sinaliza para a necessidade imperiosa do fim do conflito – pauta que nunca saiu da mesa de setores da esquerda internacional. A situação não poderia ser mais crítica, e as “casualidades” causadas pela guerra – termo terrivelmente asséptico, usado para tratar das perdas humanas – não poderiam ser maiores. Estimativas recentes apontam 1 milhão de mortos e feridos dos dois lados – cerca de 480 mil ucranianos (o equivalente a 1,26% da população) e 600 mil russos (0,42% da população). Para se ter uma noção perversa de proporções, em Gaza os números são de pelo menos 137 mil palestinos mortos e feridos (6,4% da população) e 3,8 mil israelenses (0,04% da população) em menos de um ano. Não que elas possam ser tomadas a ferro e fogo, porém, já que estimar mortes em tais conflitos é tarefa sem proporção alguma.
Só o fim do conflito pode abrir espaço para pensar no futuro — de que os ucranianos tanto carecem — e discutir problemas da Ucrânia que ecoam em outras partes do mundo sem trégua. A crise de representação em que o país afundou de maneira duradoura, a fraqueza dos partidos políticos e as particularidades e universalidades reveladas nas extremas direitas por lá não deixam dúvidas sobre fenômenos compartilhados dos anos 2020. Resta saber como vamos enfrentá-los.