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questões cinematográficas

Notícias “de antiguidades” ou “da antiguidade”?

Além de comentar a diferença entre a tradução do título do documentário dirigido por Alexander Kluge – conforme exibido no Instituto Moreira Salles - IMS do Rio, em novembro – e como é nomeado na revista “Crítica marxista” nº 30, publicada este ano, José Carlos Avellar acrescenta no e-mail enviado às duas e meia da madrugada de 21 de dezembro, informações sobre a relação de Eisenstein com Stalin.

| 08 jan 2011_18h31
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Além de comentar a diferença entre a tradução do título do documentário dirigido por Alexander Kluge – conforme exibido no Instituto Moreira Salles – IMS do Rio, em novembro – e como é nomeado na revista “Crítica marxista” nº 30, publicada este ano, José Carlos Avellar acrescenta no e-mail enviado às duas e meia da madrugada de 21 de dezembro, informações sobre a relação de Eisenstein com Stalin.

From: José Carlos Avellar

Date: Tue, 21 Dec 2010 02:24:17 +0000 (GMT)

To: Eduardo Escorel

Subject: Esclarecimento

Eduardo:

“Wie sag’ ich’s meinem Kind?!”

É o título de um dos capítulos das memórias de Eisenstein. Frase um tanto enigmática, escrita em alemão, para abrir um texto sobre o ensino no Instituto Estatal de Cinema, o aprendizado com o pai e as lições recebidas de Meyerhold. O capítulo não foi incluído no volume de memórias editado na metade da década de 1960, mas fez parte da edição revista e ampliada que se editou em 1980, traduzida para o inglês em 1983 e daí traduzida para o português com o título de “Memórias imorais”. Em 1997, entre os novos relatos autobiográficos acrescentados, quatro outros capítulos trazem esse mesmo título, “Wie sag’ ich’s meinem Kind?!” e as memórias tornaram-se mais próximas do texto original de Eisenstein. Mais próximas do texto original, – mas não a versão definitiva.

Como assinalou em diversas ocasiões Naoum Kleimann, diretor do Centro Eisenstein de Moscou, organizador e autor das notas e comentários aos textos que formam as memórias, só um terço do que Eisenstein escreveu foi publicado. Dois de seus últimos trabalhos teóricos, “A natureza não indiferente” e “Método”, foram editados apenas parcialmente. Igualmente, foram publicados apenas parte de seus relatos autobiográficos e das muitas digressões reunidas no projeto que Eisenstein formulou ao longo de 1946 com um título em espanhol e alemão: “Yo. Ich selbst. Memorien”

[É] possível que nos textos ainda não publicados existam referências a Stalin como o comentário que o ator Mikhail Kuznetsov conta ter ouvido durante a filmagem da cena do arrependimento do czar para a terceira parte de “Ivan, o terrível”. Kuznetsov, que no filme interpreta Fyodor Basmanov, conta que num intervalo da filmagem procurou Eisenstein:

“Eu disse para ele: ‘Sergei Mikhailovitch, o que é isso? O czar Ivan, o terrível, matou mil e duzentos boyardos! Como é que ele de repente, sem mais, se arrepende de tudo?’ E Eisenstein me disse: “Stalin matou mais gente e não se arrepende. Deixe que ele veja isto, talvez ele se arrependa”.

O relato de Kuznetsov encontra-se no texto de Leonid Kozlov para edição especial da revista Kinoviedtcheskie Zapiski nº 38, 1998, dedicado a “Ivan, o terrível” e é citado e comentado por Gérard Conio em “Eisenstein, le cinéma come art total” (Infolio, Paris, 2007). Eisenstein, é sábido, filmou as três partes de “Ivan, o terrível” ao mesmo tempo e, antes de qualquer outra, montou primeiro esta cena do terceiro movimento do filme: Ivan se confessa para Piotr arrependido dos crimes que cometeu. Ele estava convencido que deveria aprender com ela como montar o filme.

Talvez porque a experiência de Eisenstein me pareça – como dizer? – perto daquela de Ulisses diante do Ciclope, no começo da viagem de volta à casa, talvez por isso, dei uma volta enorme para chegar a sua questão sobre o titulo – “Notícias de antiguidades ideológicas” ou “Notícias da Antiguidade ideológica”? – do filme do Alexander Kluge sobre as anotações de Eisenstein para filmar “O Capital” de Marx. Não sou doutor em línguas germânicas (nem em qualquer outra língua, nem mesmo nesta em que pensamos, como é possível perceber), nem conheço o texto de Frederic Jameson. Mas o que me parece é que as duas possibilidades traduzem parcialmente para o português a imagem que o título alemão propõe. A primeira possibilidade talvez seja uma imagem verbal mais próxima do filme de Kluge que se serve de livres associações, como se inspirado pelas livres associações que Eisenstein pretendia realizar em torno de um dia de um trabalhador comum, e de sua mulher preparando a sopa para receber o marido de volta da fábrica, para filmar “O Capital”.

No texto que escreveu para a apresentação do filme em uma caixa editada pela Filmedition Suhrkamp, Kluge repete e amplia uma imagem que se encontra, desde o título, num filme que realizou em 1985: “O ataque do presente contra o resto do tempo” (“Der Angriff der Gegenwart gegen auf die übrige Zeit”). Nele, Kluge se refere às vezes à Antiguidade, assim, no singular, e às vezes fala de antiguidades.

Diz: “todo presente (porque ele é prática) necessita de uma teoria. Para isso são apropriados os pontos de referência que se encontram fora do acontecimento presente”; diz que “é uma vantagem que Eisenstein, o ano de 1929 (em que ele supostamente teria rodado o filme) e a obra de Marx (e os exemplos com que ele se deparava enquanto escrevia) estejam tão distante de nós quanto a Antiguidade. Eles não pisam no nosso terreno pantanoso, mas no de Aristóteles e Ovídio e em outras terras firmes de que dispõe a humanidade”.

Diz que “hoje nós podemos discutir as incomuns ideias de Marx e o insólito projeto de Eisenstein como se estivéssemos em um jardim, uma vez que eles são antiguidades ideológicas. Podemos lidar com eles tal como lidamos com a Idade Antiga, onde se encontram os melhores textos da humanidade. Não temos que proclamar nada de novo nem julgar nada definitivamente. Podemos alterar um pouco sem precisar copiar o que Marx e Eisenstein fizeram. Pode-se encarar isso como uma despedida ou como um começo”.

Antiguidade ou antiguidades, como dizer?

Nas “Memórias imorais” editada pela Companhia das Letras em 1987, o título “Wie sag’ich’meinem Kind?!” é mantido em alemão, como no original, com uma tradução em nota ao pé da página: “Como posso dizer isso a meu filho?” Mas talvez se pudesse dizer: “Como eu vou dizer a meu filho?”. E mais, a leitura do capítulo sugere que talvez Eisenstein estivesse pensando em dizer: “Como eu vou me dizer ao meu filho?”

Grandes abraços (melhor dizer no plural, não?)
jose carlos avellar 

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