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    Simone e seus amigos em uma das cenas de "Regra 34" Crédito: Amina Nogueira

questões cinematográficas

Regra 34 – ousado e contundente

Premiado em Locarno, filme de Julia Murat trata de desejo e sexualidade feminina

Eduardo Escorel | 11 jan 2023_08h00
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Regra 34, de Julia Murat, chega na próxima semana (19/1) às salas comerciais do país credenciado pelo Leopardo de Ouro, prêmio de Melhor Filme, recebido em agosto do ano passado no 75º Festival de Locarno. Participou depois, no início de outubro, da Mostra Première Brasil do 24º Festival do Rio e, logo a seguir, da 46ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, tendo sido exibido também em inúmeros outros festivais internacionais.

Ao noticiar o prêmio atribuído a Regra 34 em Locarno, a Variety (13/8/2022) qualificou o filme de Murat como sendo “provocador”, e o crítico da publicação, Guy Lodge, escreveu que ele é “desafiador e explícito sexualmente… sua combinação de práticas sexuais complexas e jogos abertos envolvendo telespectadores, evidentemente, conquistaram um júri que provavelmente nunca seguiria a rota segura”. Lodge esclarece ainda que “o título de Regra 34 deriva do popular meme online segundo o qual ‘se algo existe, há uma versão pornográfica’”.

Inácio Araujo, por sua vez, dedicou crítica extensa e elogiosa na Folha de S.Paulo (25/10/22) ao filme de Murat, assinalando “uma radicalidade que começa na duplicidade de Simone, papel de Sol Miranda. Praticante do direito, trabalha na Defensoria Pública, dedicada a questões referentes à mulher. À noite, com sua webcam, ela se dedica a fazer shows de nudez”. Ainda segundo Araujo, “o próprio corpo se transforma em contato com seu meio de comunicação mais radical.

Sol Miranda, de seu lado, afirmou, em entrevista dada na abertura do Festival do Rio, publicada no site AdoroCinema (11/10/22): “É uma dívida histórica que a gente tem na sociedade de maneira geral com as mulheres… Regra 34 vem trazendo uma pauta muito feminina a partir desse lugar, sobre a importância de a mulher ter liberdade nas suas escolhas. Algo que, nesse conservadorismo que a gente lida na sociedade, precisa muito também ser falado e ser reivindicado. Porque nós temos o direito ao desejo, o direito à liberdade.”

Além desses, não é preciso acrescentar outros comentários para situar a estreia do filme dirigido por Julia Murat, a partir do roteiro que ela escreveu com Gabriela Capello, Rafael Lessa e Roberto Winter, como um evento marcante.

Curioso acaso leva Regra 34 a ser lançado entre nós duas semanas após Emily, de Frances O’Connor, comentado aqui há uma semana. Não obstante serem muito diferentes um do outro, ambos têm em comum protagonistas mulheres, além de também serem dirigidos por mulheres, assim como premissas correlatas, a de Emily sendo a defesa da liberdade de pensamento.

Regra 34 sobressai no panorama do cinema brasileiro recente por sua ousadia e contundência, qualidades notáveis às quais pode se somar o efeito ambivalente de perturbar a passividade costumeira do espectador – ele pode tanto ser motivado a refletir sobre o que se descortina diante dos seus olhos quanto se sentir na constrangedora posição de quem participa e aprecia demonstrações de erotismo explícito na internet ao ser  transformado em voyeur independente de sua vontade.

Se considerarmos a liberdade de escolha da mulher, associada a seu direito ao desejo, como as premissas centrais de Regra 34, além de reconhecer a atualidade e recorrência do tema, cabe indagar se essa liberdade e esse direito são irrestritos ou se têm um limite. Essa talvez seja a indagação central subjacente à trama do filme – ou seja, o livre arbítrio feminino, no caso, inclui arriscar a própria vida e a de eventuais parceiras e parceiros?

À crescente insatisfação de Simone com as aulas do curso para se tornar defensora pública e à sua constatação de que a justiça pode ter consequências trágicas quando a lei é aplicada ao pé da letra, correspondem práticas cada vez mais radicais em sua atividade na internet, a ponto de sua conta vir a ser “encerrada por violação de regras da comunidade”.

A princípio, Simone nega um pedido de asfixiofilia (“Asfixiar sozinha é perigoso. Não vai rolar”, ela diz). A decepção com a defensoria persiste, porém (“Às vezes eu acho que o que a gente está fazendo aqui não serve pra nada. Pra nada…”). Ela procura se informar sobre asfixia autoerótica com sua amiga Natalia (Isabela Mariotto), “fotógrafa de festa infantil de dia”, e também lendo a respeito. Em seguida passa a praticá-la, sozinha ou com Coyote (Lucas Andrade), seu amigo e colega na defensoria. O confronto final de Simone com Lucia (Lorena Comparato), sua amiga mais próxima, é exemplar quanto à personagem considerar que sua liberdade pessoal de escolha é ilimitada:

“Eu sou uma mulher adulta, Lucia. Se eu vou foder ou como vou foder isso é problema meu… Eu gosto. Me excita. Você sabe o que é isso? Tesão.”

“… E me diz: quem se fode vendo você se foder? É problema de quem?”, pergunta Lucia.

“… O que você sugere? Que eu me reprima? Olha: eu sinto muito se o meu tesão não é suficientemente político pra você. Pra mim, essa conversa já deu. Sai. Sai. Sai”, Simone conclui.

Em busca de prazer haveria opção ainda mais radical do que a asfixiofilia? Talvez sim, Regra 34 sugere: um encontro presencial pago com “20 mil tokens para você vir aqui em casa e fazer o que quiser. A única regra é que não tem regra” – opção extremista de Simone dado o alto risco envolvido em informar seu próprio endereço a um estranho.

Na breve passagem de tempo a seguir, entre outros planos, volta a ser visto o poster que reproduz a capa de Gullivera, de Milo Manara, livro de 1996 que narra de um ponto de vista feminino a viagem de Gulliver a Lilliput. O mesmo cartaz está na sequência de abertura de Regra 34, enquanto Simone se masturba diante da webcam, cena entrecortada com os créditos de apresentação do filme.

Batidas causam leve sobressalto em Simone. Toques de campainha e novas batidas prosseguem enquanto ela se aproxima da porta. Em close que dura pouco mais de um minuto, Simone esboça um sorriso que talvez pretenda expressar sua satisfação ao sentir que abrir ou não a porta só depende dela – será mesmo essa sensação de micropoder que parece alegrá-la?

Regra 34 tem um final aberto. Murat tem a inteligência e sensibilidade de não esclarecer qual foi a decisão de Simone quanto à porta. Desse modo, evita julgá-la pois, ao fim e ao cabo, o filme não pretende ser uma lição de moral.

*

Destaque (XXIV): “… O fato de que tenha se tornado um dos maiores modos do poder de mostrar não impede de forma nenhuma o cinema de nos fazer perceber seus próprios limites, de designar o não visível como a condição e o sentido do visível, de se opor, dessa forma, ao postulado de uma visibilidade generalizada. É propriamente o cinema – e não a televisão – que mostra quais são os limites do poder de ver. O mundo ainda escapa, coisa impressionante, aqui ou ali, à proliferação dos espetáculos, e o cinema documentário é o primeiro a dar testemunho dessas escapadas e dessa teimosia: é preciso mostrar o horror? E como, e até onde? Como representar os processos lentos, invisíveis, as transformações ou metamorfoses dos espíritos e das matérias? Como mostrar o trabalho, suas temporalidades, suas durações que escapam ao divertimento?” Ver e Poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário, Jean-Louis Comolli. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p.10 (Éditions Verdier, 2004).

 

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