Áurea Carolina, que foi eleita pelo Psol, mas "escondeu" o partido na campanha. “É como se esses grupos fossem startups e os partidos, grandes empresas que investem neles”, comparou o sociólogo e cientista político Celso Rocha de Barros. REPRODUÇÃO_FACEBOOK
Não me representa
Cresce na Justiça a pressão para legitimar candidaturas independentes de partidos – o que abre caminho para os outsiders da política
Sob a mesa do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, repousa um recurso impetrado por dois amigos com uma demanda pouco convencional: ainda que um ganhe a vida como advogado e outro trabalhe no mercado financeiro, eles querem poder se candidatar aos cargos de prefeito e vice, respectivamente, no Rio de Janeiro sem estarem filiados a qualquer partido político – o que já haviam tentado em 2016, sem sucesso. A candidatura “autônoma” fere o artigo 14 da Constituição, segundo o qual a filiação partidária é condição imprescindível para participar do pleito. Postulantes a cargos eletivos são obrigados a estar ligados a uma das quase quarenta legendas políticas do país.
Motivada pela desconfiança da população em relação à estrutura político-partidária nacional, a iniciativa da dupla visa abrir caminho para candidaturas independentes que podem trazer personagens novos para o xadrez eleitoral. A discussão chega ao STF em um momento crítico. A desconfiança sobre as legendas cresceu pela terceira vez seguida de acordo com o Datafolha. Segundo a pesquisa, apenas 2% dos brasileiros “confiam muito” em partidos políticos. A maioria da população, sete em cada dez (69%), não confia nos partidos, e 28% confiam um pouco, de acordo com o levantamento.
O recurso apresentado pelo advogado Rodrigo Mezzomo, de 47 anos, e pelo administrador Rodrigo Rocha, de 45 anos, foi distribuído para o ministro Fux no começo de julho. “Queremos levantar a discussão e debater as possibilidades jurídicas sobre candidatos independentes no Brasil”, disse Mezzomo. De fato, eles buscam dar legitimidade a uma situação que já vem ocorrendo há muito tempo nas urnas – quando candidatos obscuros ou desconhecidos usam partidos tradicionais apenas para se eleger numa simbiose efêmera conhecida como “barriga de aluguel”. Assim que ganham as eleições, os candidatos simplesmente passam a ignorar as orientações do partido e se firmam como políticos independentes. A prática é adotada por muitos partidos para fermentar seus quadros e, por consequência, ganhar mais tempo nos programas eleitorais e ter mais repasses do Fundo Partidário.
A pouco mais de um ano das eleições majoritárias de 2018, pretensos candidatos independentes já estão atrás de potenciais partidos para hospedá-los, e também de olho no STF na esperança de que as candidaturas sem filiação partidária sejam liberada. Eles querem repetir o sucesso eleitoral da ex-cantora de rap Áurea Carolina. Negra, 33 anos, de vasta cabeleira encaracolada, ela faz parte do movimento Somos Muitas, nascido em Belo Horizonte, em 2015, para discutir questões urbanas, como direito à moradia e violência policial.
Em 2016, o grupo lançou doze candidatos para a Câmara da capital mineira. Como a lei ainda exige filiação partidária, o Somos Muitas entrou para o Psol apenas para poder concorrer. O site do movimento, por exemplo, não lembra em nada a identidade visual da sigla. Se não fosse o número “50” à frente do número de cada candidato, o partido ficaria praticamente invisível na plataforma. “É como se esses grupos fossem startups testando coisas diferentes, e os partidos fossem grandes empresas que investem neles”, comparou o sociólogo e cientista político Celso Rocha de Barros. Desse namoro de conveniência, surgem conflitos. “Houve reações contrárias na nossa chegada, de rejeição”, explicou Carolina. A validade das filiações dos ativistas chegou a ser questionada. “Algumas pessoas do partido se sentiram ameaçadas, não conheciam a nossa construção”, disse.
Movimentos como o Somos Muitas avaliam que as siglas são muito conservadoras na hora de lançar novos nomes, dificultando a oxigenação. “É muito difícil furar esses bloqueios”, comentou o urbanista Roberto Andrés, de 36 anos, apoiador do Somos Muitas.
Sem o apoio do partido ou doação de empresas, o movimento apostou em uma campanha barata, construída nas redes sociais. No site, cada candidato recebeu uma hashtag que resumia sua identidade e plataforma, como #maconhasemvergonha, #visibilidadetrans, #mulheresnopoder e #todosospovos. Para reforçar o espírito coletivo, os aspirantes a vereador gravaram vídeos que, ao invés de pedir voto para si mesmo, apresentavam outro nome do Somos Muitas.
Áurea Carolina foi a vereadora mais votada de Belo Horizonte em outubro de 2016, com 17 420 votos – melhor desempenho de um parlamentar da capital mineira nas últimas três eleições. Cida Falabella também foi eleita e, ao lado de Carolina, forma a bancada do Somos Muitas (e do Psol). O movimento fez 34 494 votos ao todo.
“Vemos com bons olhos que eles vejam o Psol como uma alternativa”, diz Luiz Araújo, presidente nacional da legenda. Ele disse que o partido não se sente uma “barriga de aluguel” porque há afinidade entre as pautas do grupo e as do partido. O dirigente reconhece que há dificuldade para os partidos de se conectar com as demandas da sociedade. “Eles trazem muitas perguntas e respostas que o partido não tinha condições de fazer e responder”, falou. Entre elas, o apelo por uma organização interna mais horizontal. Para Carolina, a desconfiança foi resolvida com muita conversa. “A gente já tem uma inserção consolidada no partido e um espaço de diálogo muito mais favorável do que foi no momento inicial”, concluiu. Desde a vitória, há quem participe mais “organicamente” do Psol, mas alguns integrantes do movimento ainda permanecem independentes.
Em São Paulo, a Bancada Ativista reproduziu o método do Airbnb político. O grupo lançou oito candidatos pelo Psol e pela Rede. Apenas Sâmia Bomfim, de 27 anos, se elegeu, com 12 464 votos. A vereadora militava em grupos feministas e atuou na onda de ocupação de escolas que varreu São Paulo e o Brasil em 2016. Diferentemente de Áurea Carolina, Sâmia já era filiada ao Psol, mas sua candidatura foi elaborada “por fora” – os militantes se organizaram sem a colaboração do partido.
Ela também apostou nas redes sociais para divulgar sua candidatura. “As postagens que mais fazem sucesso são as que eu conto os bastidores de coisas menos aparentes, de acordos que foram estabelecidos, as disputas, essas coisas todas. Isso demonstra a podridão da política institucional”, explica. A Bancada Ativista alcançou um total de 72 355 votos com seus oito candidatos.
Na Câmara paulista, Fernando Holiday foi eleito vereador em 2016, com apenas 20 anos. Ele é filiado ao Democratas, mas seu bom desempenho na eleição de estreia foi resultado da força do Movimento Brasil Livre (MBL), um dos grupos de direita que militou pelo impeachment de Dilma Rousseff, e não do apoio da sigla.
A crise dos partidos, que atinge todo o continente, tem inspirado uma nova geração de grupos políticos. Desde 2015, foram criados pelo menos 800 movimentos independentes em toda América Latina, segundo a organização não-governamental Update Politics. Destes, cerca de 30% estão no Brasil, diz Caio Tendolini, de 33 anos, cofundador da ONG. Muitos desses, porém, já deixaram de existir porque algumas reivindicações são momentâneas.
A própria ONG surgiu em 2014 da vontade de modificar o cenário onde o denominador comum é a expressão “não me representa”. “O que se vê é uma política institucional podre e uma sociedade que cada vez menos acredita na política como meio de transformação. A gente vê como oportunidade de fazer a transformação disso”, diz Tendolini. O primeiro passo seria reconhecer que existem novas forças no tabuleiro político, daí a importância do mapeamento feito pela ONG. Entre os novos players apontados pela organização estão a Bancada Ativista, Somos Muitas, Acredito e Frente Favela Brasil – todas lançaram candidatos nas últimas eleições ou se articulam para 2018.
De olho nos movimentos, a Rede reserva 30% das candidaturas para os chamados “independentes”. Os postulantes continuam obrigados por lei a se filiar ao partido, mas não precisam participar da base da legenda para se lançar nas eleições.
Em São Paulo, a administradora pública Marina Helou, de 29 anos, fez 16 mil votos pela Rede, mas acabou não se elegendo porque a legenda não atingiu o quociente mínimo. Helou faz parte da Bancada Ativista, de São Paulo, e também é ligada ao movimento Acredito e à Nova Democracia. “Essa aversão à política é super perigosa. Por mais que hoje a política esteja na berlinda, ela também é a melhor solução que a gente tem. A responsabilidade dos movimentos é essa: de conectar as pessoas a uma nova versão da política”, diz.
Na avaliação de juízes eleitorais, há uma brecha legal para se aprovar o recurso impetrado no STF pela dupla Mezzomo-Rocha. Ela atende pelo nome de Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa Rica, um tratado internacional de 1969 que entrou em vigor em 1978, assinado por 25 países – inclusive o Brasil. Em um dos trechos, há uma interpretação que indivíduos têm o direito de participar diretamente das eleições. O artigo 23 diz que todo cidadão deve ter a liberdade de “votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a livre expressão da vontade dos eleitores” e “ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país”.
Mezzomo e Rocha alegam que o pacto – que prevê participação direta – tem mais peso que a Constituição, que demanda filiação política. Para eles, ninguém deve ser obrigado a associar-se ou permanecer associado a um partido para poder exercer a cidadania.
O Brasil é um dos 21 países que proíbem candidaturas independentes, o que representa apenas 9% das 220 nações analisadas pelo ACE Electoral Knowledge Network, projeto que compila informações eleitorais no mundo todo, mantido por oito instituições – entre ela a Organização das Nações Unidas.
De acordo com Mezzomo, o STF já abriu um precedente, quando decidiu que o Pacto de São José estava acima da Constituição num caso de disputa sobre prisão civil do “depositário infiel”, figura jurídica que descreve uma pessoa que fica legalmente responsável por um bem que foi extraviado, roubado ou que desapareceu. A prisão estava prevista na Carta Magna, mas os ministros entenderam que valia o definido no pacto internacional.
O julgamento do recurso ainda não tem data para ocorrer. Fux já se manifestou publicamente a respeito do tema. “Sou a favor da candidatura avulsa. Faz parte do jogo democrático e seria um item interessante”, disse à revista Veja, na edição de 12 de julho. No mesmo trecho, Fux critica o excesso de partidos no país por causa das “legendas de aluguel e venda de espaço em meios de comunicação”.
Como vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral, que já julgou a questão, Fux se sentiu impedido de revisitar o assunto e enviou o caso para redistribuição – a presidente do STF, Cármen Lúcia, decidirá se o processo terá novo relator. A opinião de Fux é semelhante à de Mezzomo, que vê no excesso de partidos políticos uma “sopa de letrinhas” distante do povo. “Os partidos se divorciaram da vontade da população. Poucos brasileiros são filiados a algum partido político. O número de pessoas que participa efetivamente da vida partidária é ainda menor. Muitas pessoas filiadas sequer vivenciam o partido”, explicou.
Professor há vinte e cinco anos, o advogado que nasceu em Porto Alegre e vive há três décadas no Rio de Janeiro já foi candidato a deputado federal pelo PSDB em 2014, antes de se desiludir com a política e jurar não ter mais vontade de assumir qualquer cargo eletivo sob a égide dos partidos. Ele se desfiliou logo após o resultado do pleito: com 10 506 votos, não se elegeu. “Saí justamente porque percebi que a vida partidária me causava incômodo. É muito natural que o cidadão de bem sinta repulsa pela vida partidária”, conta.
Em 2016, cogitou ser candidato a prefeito da capital carioca pelo Partido Novo, mas ficou apenas três meses na legenda. A explicação? “Tentei de novo, mas partido é partido”, disse, deixando entender que as decisões internas não são propriamente as melhores para a população. “A Constituição de 1988 democratizou o país, mas os partidos não se democratizaram internamente.” Para o advogado, a atuação dos partidos no Brasil é “coronelista”, e as lideranças se comportam como “caciques” – incluindo aí os chefes do PSDB e do Novo, por onde passou.
Pelo menos duas Propostas de Emenda Constitucional para legalizar as candidaturas sem partido já foram protocoladas no Congresso. A mais recente foi proposta pelo deputado federal gaúcho João Derly, da Rede (Rede-RS), que prevê um número mínimo de assinaturas de eleitores para garantir a inscrição da candidatura, e que eles possam se unir numa única lista para somar votos e superar o coeficiente eleitoral.
Na avaliação de um dos autores do recurso ao STF, Rodrigo Mezzomo, a proposta da Rede é uma “bela porcaria”. “Ao fazer exigências intangíveis, ela inviabiliza a candidatura independente”, comentou sobre a obrigatoriedade de apoio prévio ao candidato.
A outra, de 2008, está parada na Comissão de Justiça e Cidadania desde 2015. “Tenho a tendência a reconhecer a importância de partido. Não é porque são em quantidade [expressiva] e que há crise ideológica que os partidos têm que ser ignorados”, comentou o relator, o deputado peemedebista Rodrigo Pacheco, de Minas Gerais.
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