James Baldwin FOTO: ALLAN WARREN
Eu Não Sou Seu Negro – a jornada de James Baldwin
A péssima impressão causada por O Jovem Karl Marx terá deixado em estado de alerta quem não assistiu antes a Eu Não Sou Seu Negro, atento à apelação demagógica que parecia ser um traço emblemático do diretor Raoul Peck
Quem por ventura assistiu a O jovem Karl Marx (2017) antes de ver Eu Não Sou Seu Negro (2016), invertendo a sequência cronológica em que os dois filmes dirigidos por Raoul Peck foram realizados, certamente estranhou os cantos generalizados da crítica em louvor de Eu Não Sou Seu Negro.
Exibido fora de competição na mostra Berlinale Especial do Festival de Berlim concluído em meado de fevereiro, O Jovem Karl Marx é uma versão biográfica edulcorada do período que vai de 1844, quando Marx conhece Friedrich Engels, até as revoluções européias de 1848 contra os regimes monárquicos.
Depois de ter assistido a Eu Não Sou Seu Negro, documentário sobre James Baldwin que estreou no Rio em 16 de fevereiro, a estranheza pelos encômios ao filme deve ter sido substituída pela dificuldade de entender como o mesmo diretor foi capaz de realizar dois filmes seguidos tão díspares – o primeiro com inegáveis méritos, o outro um rotundo equívoco.
Houve quem escrevesse que Eu Não Sou Seu Negro “altera a vida” do espectador e que “seria difícil encontrar um filme que fala ao momento atual com maior clareza e força, insistindo em verdades desconfortáveis e tirando lições duras das sombras da história”. (A.O.Scott, “‘I Am Not Your Negro’ Will Make You Rethink Race”, The New York Times, 2/2/2017. Disponível aqui.)
Depois de assistir a O Jovem Karl Marx em Berlim, outro crítico escreveu que é um “filme biográfico honroso, concebido impecavelmente e realizado de forma clássica […] – mas, tenho que dizer, não muito cativante. […] Sem saber que é dirigido por Raoul Peck, O Jovem Karl Marx pareceria um filme sofrível de Merchant e Ivory de 1993. É atencioso, mas é também superficial e respeitoso, além de cometer o pecado dos velhos filmes biográficos: transforma o herói em um santo de gesso.” (Owen Gleiberman, “Berlin Film Review: ‘The Young Karl Marx’, Variety, 13/2/2017. Disponível aqui).
O roteiro de O Jovem Karl Marx é de autoria de Peck e Pascal Bonitzer, antigo crítico da revista Cahiers du cinéma. Bonitzer é roteirista, diretor e professor. Foi ele quem fez a adaptação do livro de Michel Foucault, Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: um caso de parricídio no século XIX (1976), dirigida por René Allio – créditos respeitáveis que permitiriam antever algo melhor do que esse O Jovem Karl Marx.
Além do roteiro, a direção, cenografia, figurinos etc. adoçam de tal maneira a narrativa de O Jovem Karl Marx que a tornam enjoativa. Sem resquício de pudor, Peck abre o filme com desvalidos na floresta sendo massacrados por cavaleiros que avançam em câmera lenta, sequência que parece pilhada de alguma versão banal da história de Robin Hood. Após 112’ de mulheres lindas, homens elegantes, operários – homens, mulheres e crianças – majestosos, figurinos impecáveis e personagens rasos, O Jovem Karl Marx é coroado com um final aberrante – ouve-se Bob Dylan em off cantando Like a Rolling Stone, inicialmente sobre fundo preto seguido de um clip feito com imagens de Patrice Lumumba, Che Guevara e outros.
Marx não merecia ser maltratado dessa forma. Baldwin teve melhor sorte.
A péssima impressão causada por O Jovem Karl Marx terá deixado em estado de alerta quem não assistiu antes a Eu Não Sou Seu Negro, atento à apelação demagógica que parecia ser um traço emblemático de Peck. No caso do documentário sobre Baldwin, porém, apesar de não faltarem esquematismos, dois grandes acertos asseguram a dignidade do filme, dando-lhe interesse e força.
Ainda mais feliz do que o farto uso de um vasto acervo de imagens de entrevistas e palestras do próprio Baldwin, no qual o escritor demonstra seu grande talento de orador e mímico, recorrendo para expressar seu pensamento, além da palavra, a um rico arsenal de gestos e olhares – ainda mais feliz é Peck dar voz ao escritor através de seus próprios textos lidos em voz off, especialmente o inacabado Remember this house, que seria uma história da América através das vidas de Martin Luther King, Jr. (1929-1968), o ativista dos direitos civis Medgar Evers (1925-1963), e Malcolm X (1925-1965), todos amigos de Baldwin, os três assassinados antes de completar 40 anos.
Prejudicado por sua vocação panfletária, presente na reiterada justaposição de imagens de impacto e nos grafismos, Peck não consegue tirar partido completo do tesouro que tinha nas mãos – um ensaio histórico inacabado sobre três vidas inacabadas e, ainda por cima, um personagem trágico, como Baldwin, que logo no início do filme deixa claro “não ter muita esperança” de que as relações raciais nos Estados Unidos pudessem melhorar.
O livro inacabado que Baldwin estava escrevendo no verão de 1979 foi definido por ele mesmo como uma jornada, assim chamada “por que você não pode saber o que você descobrirá na jornada, o que você fará, o que encontrará, ou como o que encontrar afetará você”. Peck, ao contrário, parece saber de antemão aonde pretende ir e como chegar, banalizando de saída o material com o qual está lidando.
Baldwin pertence à categoria humana dos sobreviventes, definida por Primo Levi em Os afogados e os sobreviventes – sobreviventes não são “os melhores, os predestinados ao bem, os portadores de uma mensagem: […]”. Sobrevivem “os piores, isto é, os mais adaptados; todos os melhores, morrem”.
Baldwin (1924-1987) viveu cerca de 20 anos a mais do que Luther King Jr., Evers e Malcolm X. Morou na França a partir de 1948 e morreu em Saint-Paul de Vence. Teria culpa de estar vivo no lugar dos seus três companheiros de geração assassinados? Eu Não Sou Seu Negro passa ao largo dessa indagação.
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí