Kenneth Lonergan e Casey Affleck
Manchester à Beira-mar ─ filme de exceção
Manchester à Beira-mar é um filme de exceção. Não apenas por seu contraste com o espetáculo político em curso. Mas, também pelo fato de ir contra corrente da tendência dominante do cinema americano
Enquanto Manchester à Beira-mar estreava no Brasil, à beira do rio Potomac, em Washington, uma “variante americana do peronismo” assumia o governo, conforme escreveu John Cassidy no blog da New Yorker, sexta-feira passada.
Apesar de ambos serem americanos, o filme escrito e dirigido por Kenneth Lonergan e o novo presidente dos Estados Unidos têm pouco em comum. De um lado, a crônica miúda, em tons foscos, de um homem ferido, de outro, a posse de um “populista autoritário e impulsivo”, na definição de Cassidy, obcecado com o brilho dourado da América e, nas palavras de Paul Krugman no New York Times, “despreparado, inseguro e egomaníaco com déficit de atenção”.
Ao contrário do presidente falastrão, Lee Chandler (Casey Affleck), o zelador de Manchester à Beira-mar, fala pouco. Suas pausas duram mais do que as frases que enuncia. Solitário, ele desentope encanamentos, limpa a neve e joga fora o lixo dos apartamentos de um conjunto de prédios perto de Boston. Chandler é a face oposta da empáfia do presidente recém-empossado. De petulante, não tem nada. À parte suas explosões de violência, é um homem decente, simples e solidário, valores distantes dos recém-instalados na Casa Branca – “uma administração corrupta sem precedentes”, nas palavras, mais uma vez, de Krugman.
Manchester à Beira-mar é um filme de exceção, em vários sentidos. Não apenas por seu contraste com o espetáculo político em curso. Mas, também pelo fato de ir contra corrente da tendência dominante do cinema americano. Narrado fora da ordem cronológica dos eventos, não adota nenhuma das figuras de linguagem usuais para indicar mudanças de tempo. Mesmo assim, superou a barreira que, de forma geral, impede produções independentes de serem distribuídas nos Estados Unidos em condições que permitam virem a se tornar lucrativas (The New York Times).
Orçado em cerca de 8,5 milhões de dólares, custo de produção baixo para filmes americanos, e com duração acima da usual (2h17min), Manchester à Beira-mar já rendeu mais de 40 milhões de dólares, dos quais pelo menos um milhão no mercado externo. E deverá ter ainda um suplemento de receita graças às indicações para concorrer ao Oscar em seis categorias, inclusive melhor filme, diretor, roteiro original e ator. Isso, depois de já ter ganho vários prêmios da crítica americana e da Associação de Críticos Estrangeiros atuante em Hollywood.
Antes de Manchester à Beira-mar, segundo o artigo do New York Times citado acima, só um dos mais de 1100 filmes que estrearam, desde 2006, no Festival de Sundance (morada do filme independente) rendeu mais de 40 milhões de dólares no mercado americano – Preciosa, em 2009, cuja renda chegou a 53 milhões, valor corrigido pela inflação. A grande maioria dos filmes de Sundance não chegou a render um milhão de dólares.
Esnobado por distribuidores que consideraram Manchester à Beira-mar longo demais, os direitos de distribuição do filme nos Estados Unidos acabaram sendo adquiridos pela Amazon Studios e a Roadside Attractions por cerca de 10 milhões de dólares. Lançado, inicialmente, em 4 cinemas, nos quais foi exibido durante 4 semanas, o filme ocupou, em seguida, cerca de 1200 salas.
Para ser produzido, Manchester à Beira-mar também superou obstáculos. Os dois filmes anteriores de Lonergan (Conte Comigo, de 2000, e Margaret, de 2011) não lhe garantiram crédito junto a produtores. E as dificuldades aumentaram quando Matt Damon, escalado inicialmente para fazer o personagem principal, desistiu do papel por problemas de agenda. Casey Affleck, o substituto escolhido, não tinha, nem de longe, a mesma bancabilidade, exigindo que Damon assumisse contratualmente o chamado direito ao corte final, ou seja, o poder de dar a última palavra sobre a edição do filme, poder que acabou não exercendo de fato.
O aval de Damon, porém, não foi suficiente. Manchester à Beira-mar só foi feito graças à jovem produtora Kimberley Steward, que financiou o filme, dando ampla liberdade a Lonergan. Segundo Affleck, os produtores foram pais perfeitos: “Nunca foram permissivos demais, nem autoritários demais.”
Um dos quatro produtores do filme, Kevin Walsh, declarou que “há tantas produções padronizadas sendo feitas nos estúdios” que mesmo quando filmes para adultos chegam a receber apoio é feita pressão para que tenham finais felizes, o que não é o caso em Manchester à Beira-mar. Quando perguntaran a Lonergan, em Sundance, por que o final do filme não era mais otimista, ele respondeu que “essas coisas acontecem a algumas pessoas, e elas não conseguem superá-las, e eu acho que essas pessoas também merecem um filme”. Para a equipe de Manchester à Beira-mar, “deixar as pontas do enredo soltas é mais parecido com a vida” (as informações contidas nos três últimos parágrafos foram colhidas no artigo de Bret Lang, “Why Matt Damon Has Final Cut on ‘Manchester by the Sea’”.
Além das virtudes incomuns do filme em si, a equipe responsável pela realização do projeto e os critérios de produção adotados em Manchester à Beira-mar revelam uma face da sociedade americana oposta à que o novo governo tem mostrado. Nesse outro lado há uma força vital capaz de resistir ao pendor totalitário, megalomaníaco, nacionalista, protecionista e agressivo de alguém propenso a dizer falsidade após falsidade, tudo com o “propósito de destruir o pensamento racional”, como Roger Cohen escreveu há dois dias no New York Times.
Filmes não provocam mudanças. Mas fazem bem à alma em épocas sombrias e podem motivar ações políticas que evitem desastres.
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