ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2017
Barata tonta
O livre-arbítrio em xeque
Bernardo Esteves | Edição 125, Fevereiro 2017
Às vésperas do último Natal, o biólogo alemão Etienne Serbe projetou no telão as datas das palestras que já havia realizado em dezembro, como se divulgasse shows de rock. O NeuroTour começara duas semanas antes em Erlangen, na Alemanha, e passara pela cidade portuguesa de Coimbra. Com aquela apresentação na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o cientista de 28 anos inaugurava a perna sul-americana da turnê. Exibindo um vistoso cavanhaque loiro, trajava camiseta regata e bermuda colorida, indumentária adequada ao calor que castigava a Ilha do Fundão, onde fica o campus da UFRJ. Foi possivelmente o primeiro conferencista a palestrar descalço no Centro de Ciências da Saúde.
Simpático, anunciou que iria fazer um experimento com a plateia. “Preciso de dois voluntários”, disse, pouco antes de avisar: um deles teria seus movimentos comandados pelo outro e, assim, perderia temporariamente o livre-arbítrio. “Talvez valha mais a pena ser o controlador do que o controlado”, brincou. Um par de doutorandos subiu ao palco. O biólogo colou eletrodos no antebraço de ambos e pediu que Patricia Bado, a controladora, fechasse a mão direita. Tão logo a moça obedeceu, um laptop exibiu o pulso elétrico gerado por seu cérebro com o intuito de provocar a contração muscular. O que o biólogo pretendia era transferir esse sinal para o braço de Felippe Amorim, o controlado, e desencadear nele um movimento involuntário.
Depois de algumas tentativas frustradas, o teste finalmente funcionou. Atônito, com o cotovelo apoiado numa mesa, o controlado viu sua mão ser repuxada num espasmo, como se estivesse sofrendo uma convulsão, a cada vez que a controladora cerrava o punho. A jovem fitava o rosto do rapaz enquanto repetia o gesto, arrancando risadas nervosas do público. “Senti um poder meio malvado”, confessou ao relembrar o experimento no dia seguinte.
Ainda no palco, Serbe se aproximou da controladora e, com suas mãos, forçou o fechamento da mão direita dela. Desta vez, o braço do controlado permaneceu imóvel. “Eis um ótimo jeito de mostrar que os sinais responsáveis pelas contrações do rapaz vinham do cérebro da moça”, concluiu o palestrante.
Etienne Serbe nasceu em Dresden, então Alemanha Oriental, e cresceu num vilarejo de 600 habitantes no sul da Bavária, do lado ocidental. Foi estudar em Munique e, no ano passado, terminou o doutorado no Instituto Max Planck de Neurobiologia. Sua tese descreve como os neurônios das moscas-das-frutas processam a imagem de objetos em movimento.
Após defendê-la, o cientista decidiu não ir atrás de uma bolsa de pós-doutorado, a opção natural para um pesquisador em início de carreira. Achou mais proveitoso sair pelo mundo divulgando a neurociência. Com experimentos como o do controlador e controlado, espera chamar a atenção dos jovens para o estudo do cérebro. “Aprender observando as coisas acontecerem é bem melhor do que apenas ler a respeito num livro”, argumentou antes de proferir sua palestra no Rio.
A escolha de Serbe começou a se desenhar quando ele conheceu dois ex-estudantes da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, que fundaram a Backyard Brains em 2009. A empresa desenvolve kits de experimentos científicos para uso em sala de aula e tinha o desejo de se estabelecer na Europa. O alemão vislumbrou ali uma oportunidade e se dispôs a ajudar. No fim de 2016, recebeu um e-mail dos americanos sondando seu interesse em demonstrar os kits num evento para o qual haviam sido convidados. Estava inaugurada a parceria entre a Backyard Brains e Serbe, que o levou à turnê de palestras, documentada num blog.
O experimento mais famoso da empresa inclui um dispositivo que transforma uma barata num ciborgue manipulável a distância. O próprio usuário se encarrega de sedá-la com gelo e instalar eletrodos em suas antenas, cirurgia que chega a durar uma hora. O implante permite atiçar os nervos que o inseto utiliza para se orientar e pode ser acionado por um aplicativo de celular. Caso receba um pulso elétrico na antena direita, o bicho reage como se tivesse topado com um obstáculo e desloca-se para a esquerda. Se o estímulo atingir a antena oposta, o animal irá para a direita. Geralmente, a experiência ocorre com baratas da espécie Blaberus discoidalis, escolhidas por serem lerdas e fáceis de criar. O site da Backyard Brains prontifica-se a vendê-las por 36 dólares a dúzia. Já o kit com a experiência custa 160 dólares (o experimento do controlador e controlado vale um pouco mais, 260 dólares).
No Brasil havia dois dias, o alemão estava fascinado com a quantidade de insetos à sua volta e se perguntava em quais daria para implantar eletrodos. “O grilo seria massa”, aventou. Ele, porém, preferiu abdicar de experimentos com baratas na UFRJ, embora não lhe faltasse matéria-prima. Uma aluna se prontificou a caçar algumas no subsolo do Centro de Ciências da Saúde, mas o biólogo desconversou.
Serbe falou num evento dedicado a pesquisas de orçamento reduzido. Ao término da palestra, bebendo uma cerveja comprada com dinheiro arrecadado numa vaquinha on-line, ele contou que permaneceria no Rio até o começo de 2017 e, depois, seguiria viagem pela América do Sul. Tentaria agendar demonstrações dos kits durante o percurso. No final de janeiro, mandou um e-mail. Encontrava-se em Florianópolis, onde faria a quarta apresentação do NeuroTour. Apesar de receber convites para se apresentar na Bolívia e no Peru, ainda não tinha definido as próximas datas da turnê. “É que os cientistas e professores estão todos de férias”, justificou. O livre-arbítrio agradeceu.