Agnelli levou Lula à Guiné no início de 2011 para convencer o presidente Condé a manter o projeto da Vale; o contrato para entrar no país foi uma das razões da queda de Agnelli, logo depois FOTO: AGÊNCIA VALE
Contrato de risco
Como a Vale assinou um acordo para assumir todos os custos de uma transação bilionária e obscura na Guiné
Consuelo Dieguez | Edição 90, Março 2014
A sede da AGN Participações fica no 3º andar de um prédio envidraçado na avenida Brigadeiro Faria Lima, numa das áreas comerciais mais valorizadas de São Paulo. A empresa, com negócios ainda embrionários em mineração e energia, foi criada em dezembro de 2011 por Roger Agnelli, nove meses depois que ele foi destituído da presidência da Vale, que comandou durante dez anos de forma quase imperial. Agnelli tenta, na sua empresa, constituída com um capital de 500 milhões de reais, recuperar o prestígio que angariou nos anos da Vale. Seus negócios atuais incluem uma mina de cobre no Chile, minas de potássio no Brasil e um projeto de bioenergia em Moçambique. Na mineração, ele se associou ao banqueiro André Esteves, do BTG Pactual, um dos mais atilados captadores de negócios, com quem estuda a aquisição de novas minas. São todos investimentos de longo prazo, ainda longe de dar retorno aos acionistas.
Enquanto Agnelli esteve à frente da Vale, entre 2001 e 2011, o lucro da companhia saltou de 3 bilhões de reais para 30 bilhões. A produção de minério de ferro duplicou, e a empresa, que era a oitava mineradora do mundo, passou a ser a segunda maior, atrás apenas da anglo-australiana BHP Billiton. Na sua gestão, a Vale se internacionalizou, comprando minas e empresas ao redor do planeta. Em 2006, numa demonstração de força, adquiriu a portentosa canadense Inco, produtora de níquel, que logo se transformou num importante gerador de caixa para a mineradora. Agnelli parecia não ter limites em seus planos de transformar a companhia na maior empresa do setor. Nem a crise financeira global de 2008 refreou seu ímpeto.
Mas, como costuma acontecer com administrações longevas, a de Agnelli começou a ser questionada. Suas relações com alguns diretores da empresa, preocupados com sua excessiva ousadia, azedaram. Alguns deles se demitiram. Outros preferiram confrontá-lo, embora a tática tivesse pouca influência nas decisões do presidente.
Em 2010, mesmo com parte dos executivos contrários à operação, a Vale comprou 51% de participação num projeto de exploração nas montanhas de Simandou, na República da Guiné, um pequeno país miserável na costa ocidental africana. A área é uma das maiores reservas de ferro do mundo ainda intactas. Para entrar no negócio, a mineradora brasileira se associou ao empresário israelense Beny Steinmetz, dono da Beny Steinmetz Group Resources, ou BSGR.
Até 2008, o direito de exploração de Simandou pertencia à anglo-australiana Rio Tinto, que o havia adquirido em 1997. O então presidente da Guiné, o ditador Lansana Conté, cassou a metade da concessão da Rio Tinto pouco antes de morrer e a transferiu a Steinmetz, um expert em transações de diamantes, mas sem nenhuma familiaridade com a extração de minério de ferro. Dois anos depois, em 2010, o israelense selou o acordo com a brasileira. A Rio Tinto, uma das principais concorrentes da Vale no mundo, revoltou-se ainda mais depois que a rival se meteu num negócio que ela ainda lutava para recuperar.
[Na reportagem “O tesouro, o mercador, o ditador e sua amante”, que piauí publica nesta edição a partir da p. 18, Patrick Keefe relata em detalhes a disputa pelo controle da exploração de Simandou. A Vale aparece de maneira secundária, na condição de sócia de Steinmetz, sem que as razões, os termos e as circunstâncias de sua entrada no negócio fossem objeto de investigação.]
A associação da gigante brasileira com um neófito na mineração de ferro resultou na criação da VGB – Vale Beny Group, uma sociedade que, até agora, só trouxe dor de cabeça para a Vale. A mineradora se viu na desconfortável situação de ter o nome vinculado a uma transação sobre a qual pesam acusações de suborno, e cuja legitimidade está sendo questionada pelo atual governo da Guiné, por entidades internacionais de combate à corrupção e pela Justiça americana.
A suspeita de que a concessão de Simandou tenha sido obtida de forma irregular por Steinmetz começou a ser investigada por iniciativa do novo presidente, Alpha Condé, que tomou posse no final de 2010, depois das primeiras eleições democráticas em décadas na Guiné. Condé também pretendia revisar os contratos de exploração e alterar o Código Mineral para permitir que o Estado tivesse maior participação nos royalties. O megainvestidor George Soros, a quem o presidente guineano conhecia de longa data, passou a atuar como seu interlocutor nessa questão. Aconselhou que Condé contratasse os serviços de Scott Horton, advogado do escritório americano DLA Piper, especialista em investigações sobre corrupção em todo o mundo. À revista New Yorker, Horton disse que “para enfrentar um sujeito como Steinmetz, o governo de Condé precisava de ajuda externa”.
Roger Agnelli, de 54 anos, é um homem magro e jovial. Seus olhos são grandes, escuros e redondos, como os de um peixe. Os cabelos crespos são domados por uma escova, o que lhe dá a aparência de ter saído há pouco do cabeleireiro. Fios grisalhos despontam em torno das têmporas e no alto da cabeça. Encontrei-me com ele no começo de uma tarde abafada de janeiro, na sala de reuniões da AGN, ocupada por uma grande mesa rodeada por cadeiras coloridas, numa decoração que faz pensar mais num escritório de jovens empreendedores da internet do que no vetusto negócio de mineração.
O executivo procura se encaixar nesse novo cenário. Sua expressão está mais relaxada que nos tempos da Vale. Sua fala é mais descontraída e ele sorri com certa frequência. Exibia um saudável bronzeado adquirido nos dias que passou em sua casa no balneário de Angra dos Reis, no Rio. O terno, seu uniforme na Vale, foi substituído por calça jeans, camisa branca de linho aberta no colarinho, blazer azul-marinho e sapatos esportivos. Sentou-se à vontade numa das cadeiras. Ao seu lado, mais formal, estava Fabio Eduardo Spina, um jovem advogado de cabelos cortados rente à cabeça, olhos claros e sorriso largo, que Agnelli trouxe com ele da Vale e a quem deu uma participação na AGN. Spina era diretor da mineradora e foi o consultor jurídico na compra de Simandou.
Agnelli tragou um cigarro eletrônico que desprende uma fumaça de vapor de água. Explicou que o bastonete de acrílico não fazia mal e o ajudava na tentativa de parar de fumar. “Eu tinha deixado o cigarro, mas um dia, velejando com um amigo, na Itália, aceitei um charuto”, contou, dando mais uma tragada. “Foi a minha desgraça. Depois disso passei a fumar até cinco charutos por dia. Não dava. Agora, estou usando essa cigarrilha para ver se abandono o vício.” Em seguida, emendou a pergunta. “Então, qual o motivo da nossa conversa?” Embora já o tivesse alertado da razão da entrevista por um e-mail enviado em dezembro, expliquei que se tratava de Simandou e da associação da Vale com Beny Steinmetz, arquitetada durante sua gestão. Agnelli sorriu, abriu os braços e, como se referisse a alguém por quem nutrisse simpatia, exclamou: “Grande Beny!”
Desde que começaram a pipocar as notícias de que a concessão da BSGR para explorar a riqueza da Guiné estaria comprometida por ilegalidades, Agnelli vinha evitando se manifestar. Explicou-me a razão. “A Vale não tem nada a ver com isso. Está absolutamente correta, limpa”, disse. “Além do que, eu não sou mais presidente da companhia. Saí de lá em 2011 e não tenho conhecimento do que aconteceu depois.” Lembrei que o negócio tinha sido fechado por ele, durante sua gestão. Agnelli não aceita ser criticado por essa associação. Alegou que, se há algum problema com a concessão, a questão tem que ser resolvida entre Steinmetz e a Guiné. “Eles é que têm que se entender”, disse, batendo na mesa. “A Vale fez o que tinha que fazer e, na época, não havia nada que desabonasse o Beny.”
Quando conheceu Steinmetz, ou Beny, como sempre se refere ao sócio da Vale, Agnelli teve a impressão de que era um tipo “superinteligente, bem relacionado, com uma boa estratégia, além de cordial e muito simpático”. Fez uma pausa e lançou mão de um argumento pedestre para explicar a possibilidade de o sócio da mineradora não ser o que ele imaginava no início, embora considere difícil ter se enganado sobre a sua índole: “Tem gente que casa com ex-prostituta e só vai saber que a mulher foi prostituta anos depois. Ou casa com veado e vai saber anos depois. Não tenho nada contra nenhum dos dois, mas, como faz?”
Fabio Spina entrou na conversa, introduzindo o linguajar formal dos advogados. “Antes de fechar o contrato fizemos uma due diligence. A Vale contratou dois escritórios internacionais de advocacia, o Cleary Gottlieb e o Clifford Chance, para proceder a uma investigação independente de como essa concessão foi obtida. Nenhum deles encontrou nada de suspeito”, explicou. A empresa também contratou a firma americana Nardello & Co para examinar a transação. Todos os cuidados legais, segundo Spina, foram tomados antes de a empresa selar a sociedade com a BSGR. Um deles foi atender às exigências da Lei de Práticas Corruptas no Exterior, que cobra de empresas com ações na Bolsa de Nova York garantias de que seus negócios em outros países não tenham se beneficiado de falcatruas. Além disso, insistiu o advogado de forma enfática, ainda que num tom de voz baixo, a Vale respondeu também aos questionários da Lei Antissuborno do Reino Unido, mesmo que não tenha ações negociadas em Londres. A análise investigativa, na sua avaliação, foi feita “na maior extensão possível que um comprador podia fazer”. “A Vale tem tudo registrado. Mandamos um questionário para o Beny responder e ele garantiu que não houve corrupção, nem pagamento ilegal”, disse Spina.
Respirou fundo e acrescentou mais um dado à vigorosa defesa do negócio fechado por eles: “Falar em perspectiva é fácil.” E recordou: “Na época, não havia um único artigo de jornal contra o Beny. Nada que indicasse que ele poderia não ser um empresário correto. Nunca iríamos jogar o nosso nome e o da Vale em um negócio suspeito. Quando o Roger assumiu a Vale, era uma empresa de 8 bilhões de dólares; quando a deixou, valia 160 bilhões. Você acha que íamos jogar tudo isso no lixo para fazer um negócio ilegal?”
Antes da associação da Vale com a BSGR, Agnelli e Steinmetz mal se conheciam. O vínculo do israelense com a mineradora brasileira se resumia ao fato de uma de suas empresas ser fornecedora de equipamentos para uma mina da Vale na Nova Caledônia, território francês na Oceania. Agnelli sustenta que as primeiras conversas de Steinmetz sobre Simandou se deram com o diretor de Exploração Mineral e Energia da Vale, Eduardo Ledsham, que foi demitido após a saída de Agnelli e hoje é o CEO da B&A Mineração, criada em parceria com André Esteves. “Eles se encontraram num congresso de mineração, acho que no Canadá, e o Beny falou de Simandou e da disposição de vender parte do ativo para a Vale. Disse que tinha a jazida, mas não tinha capital para tocar o negócio sozinho”, contou Agnelli. Ledsham, segundo o ex-presidente da Vale, se empolgou com a proposta, que também ganhou a simpatia de José Carlos Martins, até hoje diretor da área de ferrosos e estratégia.
Martins era um entusiasta da expansão da Vale para além da exploração do minério de ferro. Sua ideia era desenvolver toda a cadeia de produção, inclusive com a criação de um parque siderúrgico que pudesse transformar parte do minério da Vale em aço, de valor agregado muito mais alto. Essa estratégia esbarrava em dois grandes problemas: primeiro, a escassez de energia, gargalo crônico da infraestrutura brasileira, especialmente danoso numa atividade como a siderurgia. Segundo, a necessidade de extração de mais minério, justamente num momento em que a Vale estava tendo dificuldades de aumentar sua produção.
Uma das razões para isso era a demora na aprovação de uma licença ambiental do Ibama que permitisse explorar uma nova mina de ferro, a Serra Sul, em Carajás, no Pará. A Vale entrara com o pedido de licença em 2004, mas o processo se arrastou e começava a comprometer a capacidade da empresa de atender às encomendas, sobretudo da China, seu maior comprador. Naquele momento, o preço do minério atingia o recorde histórico de 200 dólares por tonelada. A Vale saiu em busca de novos negócios pelo mundo. A frustrada tentativa de aquisição da canadense Alcan, fabricante de alumínio, em 2007, foi um deles. A Rio Tinto acabou desembolsando 38 bilhões de dólares e ficou com a empresa. A insistência de Roger Agnelli em adquirir a companhia canadense foi um dos motivos, à época, da saída de alguns executivos graúdos da Vale. Eles avaliavam que era um projeto muito arriscado e poderia comprometer o caixa da empresa.
A realidade provou que estavam certos. Em 2008, quando a crise chegou, a Rio Tinto se viu em apuros em razão da compra da Alcan. Tom Albanese, então presidente da mineradora anglo-australiana, foi pedir ajuda a Agnelli. Estava desesperado para vender alguns ativos e, dessa forma, recompor o caixa da Rio Tinto. Agnelli viu ali uma oportunidade e foi às compras. A Vale levou uma mina de ferro em Corumbá, no Mato Grosso, e uma de potássio, na Argentina.
Mas, em troca das transações que facilitavam a vida da Rio Tinto, Agnelli queria uma contrapartida: fazer uma joint venture com a concorrente comprando metade da sua participação em Simandou. “Eu sentei com o Tom Albanese e disse: ‘Tom, vocês estão com problema de caixa e Simandou me interessa. Você vai acabar perdendo essa reserva. Você está sem fôlego para investir lá agora.’” Segundo ele, o governo da Guiné já vinha alertando a Rio Tinto sobre a possibilidade de lhe tomar a concessão caso não desenvolvesse a área. As duas empresas chegaram a fazer um memorando de entendimento. Na hora de fechar negócio, a Rio Tinto pediu 4 bilhões de dólares, conforme a versão de Agnelli. Ele considerou o valor excessivo e recusou a oferta. “Acho que não queriam nos vender”, disse.
Agnelli sacudiu os ombros num movimento de desdém e, em seguida, disse ter respeitado a decisão da Rio Tinto. “Em negócio não tem essa história de se sentir ou não traído”, falou. “É preciso respeitar a decisão de quem é o dono. E eles já estavam conversando com os chineses.” A desforra veio em abril de 2010, quando a Vale assinou o contrato com a BSGR para exploração da área tomada da Rio Tinto. Albanese cortou relações com Agnelli. Ele diz não ver razões para a reação do ex-concorrente. “A forma como a Rio Tinto perdeu a concessão foi absolutamente legal, dentro do Código Mineral vigente na Guiné. Não havia motivos para os protestos da companhia. Eles estão lá há vinte anos e, até agora, não fizeram nada”, argumentou.
Em 2011, a Rio Tinto fechou um acordo, dessa vez com o governo de Alpha Condé, para garantir a exploração da metade que mantivera de Simandou. A mineradora anglo-australiana terá como sócia a chinesa Chalco, que pagou 1,35 bilhão de dólares para entrar no negócio.
Esfregando as mãos na mesa, Agnelli se pôs a fazer uma análise do caso da Guiné. Disse que, na época, o negócio fazia todo o sentido para a Vale. Simandou, geologicamente, é semelhante a Carajás – antes da divisão das placas continentais, tratava-se de uma mesma região. O minério dessas minas é considerado o melhor do mundo, em função do alto teor de ferro: em Carajás ele é de 67%, enquanto nas minas das principais concorrentes da Vale o teor é de 30%. Essa qualidade dá uma vantagem competitiva à mineradora brasileira em termos de preço, já que seu minério pode praticamente ir direto para os altos-fornos das siderúrgicas, sem necessitar passar por processos de purificação. A vantagem, porém, se perde na logística. É muito mais difícil e caro levar para a China o minério do Brasil. Bem mais barato, o frete de transporte da Austrália, onde ficam as principais minas das concorrentes – ainda que com ferro de pior qualidade –, é decisivo para virar o jogo.
Para a Vale, a exploração de Simandou poderia solucionar dois problemas ao mesmo tempo: o estrangulamento da produção em Carajás e a desvantagem logística. “A Vale seria imbatível porque ficaria em pé de igualdade com suas rivais em termos de frete e com um minério de qualidade muito superior”, disse o consultor Cláudio Frischtak, especialista em mineração. Se em tese o projeto parecia fazer sentido, mostrava-se extremamente duvidoso quando confrontado com dados da realidade. Um dos que mais questionavam a viabilidade de Simandou era Fábio Barbosa, então diretor-financeiro da Vale. De opiniões firmes, ele passou a ter embates frequentes com Agnelli e José Carlos Martins, defensores fervorosos da parceria com Steinmetz.
Barbosa fazia vários questionamentos. A começar pelo valor e condições da compra. A Vale concordou em pagar 2,5 bilhões de dólares a Steinmetz para ficar com 51% da área, sendo que 500 milhões seriam desembolsados na assinatura do contrato, à vista. Barbosa desconfiava que Steinmetz, que não pagara nada pela concessão, só estava tentando passá-la adiante. Teria um lucro estúpido apenas com o recebimento dessa primeira parcela. Não seria um parceiro, mas um atravessador.
A segunda grande questão se referia ao custo da implantação do projeto. Embora fosse um minério de excelente qualidade, havia uma dificuldade imensa para a sua extração. A região de Simandou é montanhosa, coberta por densa floresta e de difícil acesso; não há qualquer infraestrutura de transporte para escoar o minério; inexistem redes de comunicação e elétrica, falta mão de obra qualificada. A instabilidade política da região também é um complicador. Além da própria Guiné, vizinhos como Serra Leoa e Libéria vivem reféns de diferentes grupos que disputam o poder, em crise crônica. Computando todos esses fatores, Barbosa fazia os cálculos e as contas não fechavam. Se quisesse extrair o minério da Guiné, a Vale teria que enterrar uma fortuna que eles ainda não tinham conseguido dimensionar.
Para os que compartilhavam a posição de Barbosa, havia um grande desequilíbrio na sociedade entre a Vale e a BSGR, uma vez que uma das exigências de Steinmetz para vender metade da concessão era que a mineradora brasileira bancasse, sozinha, todo o desenvolvimento do projeto. Isso significava construir do zero não só uma ferrovia para escoar o minério, mas também a rede elétrica e a de comunicação. Mesmo não colocando dinheiro, a participação de 49% de Steinmetz não seria diluída. Para Barbosa, isso era um despropósito sem tamanho. “A Vale se comprometeu a carregar o Beny”, ouvi de um executivo da mineradora brasileira. Para Steinmetz, a transação não podia ter sido melhor. Ele, que colocara apenas 160 milhões de dólares em Simandou, em um estudo de viabilidade, passou a ser sócio de um negócio de 5 bilhões, considerando que sua parte teria valor equivalente à do outro sócio.
Na sala de reuniões de sua empresa, Agnelli empertigou-se na cadeira colorida. Sustentou que os entraves ao desenvolvimento da infraestrutura eram pequenos diante do poderio da Vale. “A Vale tem uma enorme experiência em operar em áreas difíceis”, disse. E assegurou que, da forma como havia sido idealizado, o projeto tinha tudo para dar certo. A principal dificuldade seria contornada com a construção de uma ferrovia que passaria pela Libéria. Simandou fica muito mais próxima da costa liberiana, que também tem a vantagem de ter um porto com profundidade suficiente para receber os gigantescos navios de minério. A alternativa, a saída pela Guiné, é infinitamente mais custosa. Ela exige a construção de uma ferrovia de 650 quilômetros, numa região acidentada. Além disso, a costa guineana é muito rasa, obrigando à construção de um molhe de mais de 20 quilômetros mar adentro para que os navios possam atracar.
Os sócios de Simandou tinham consciência de que o escoamento do minério pelo país vizinho era condição essencial para viabilizar o projeto. E aí entraria a rede de relacionamentos de Steinmetz. Para convencer a Vale, o israelense afirmou aos executivos da mineradora que havia conseguido a autorização tanto do governo da Guiné quanto da Libéria para que o minério de Simandou fosse escoado por solo liberiano. O problema é que a garantia foi dada de boca, sem qualquer documento que a registrasse. Foi com uma expressão de inocência que Agnelli explicou o acerto com o sócio: “O Beny nos disse que estava tudo certo, que ele já havia conversado com o governo da Libéria e com o da Guiné e que todos concordaram que o minério de Simandou seria escoado pela Libéria”, contou, pitando mais uma vez seu cigarro eletrônico.
Caso cumprisse o que prometera, Steinmetz demonstraria uma força política de que nenhum outro empresário fora capaz. Até então, a Guiné vetara sistematicamente a alternativa de saída pela Libéria, que já havia sido proposta pela Rio Tinto. A imposição de que o escoamento do minério de Simandou seja feito por uma ferrovia através da Guiné está registrada no Código Mineral local. É um dos principais obstáculos ao desenvolvimento da extração no país.
No começo de abril de 2010, semanas antes de o contrato entre a Vale e a BSGR ser fechado, um relatório de técnicos do governo da Guiné condenou o negócio. O documento, ao qual piauí teve acesso, pontificava que a BSGR não tinha sequer direito a repassar a concessão para outra empresa, porque tinha sido autorizada apenas a fazer um estudo de viabilidade da jazida. E reafirmava que, pelas leis minerais guineanas, o transporte do minério de Simandou não poderia ser feito através da Libéria, conforme Steinmetz vinha pleiteando. Somente poderia passar pelo país vizinho o minério que fosse produzido em Monte Nimba, outra região, cuja concessão é da BHP Billiton. “No que se refere à concessão entre a BSGR e a Vale, ela é feita em violação do artigo do Código Mineral de 1995”, diz o documento. O código estabelece que “a permissão de pesquisa não é divisível, nem pode ser objeto de cessão ou transferência, mesmo em caso de morte”. Um conselheiro de Alpha Condé me contou recentemente que esses argumentos foram discutidos à exaustão com o então ministro de Minas da Guiné, no governo anterior ao de Alpha Condé, mas que ainda assim o negócio foi autorizado.
Em fevereiro, encontrei-me com um ex-executivo da Vale num café no Leblon, na Zona Sul carioca. Ele acompanhou as discussões com a BSGR e confirmou que, ao final, a única garantia que a empresa tinha de que a ferrovia passaria pela Libéria era a palavra de Steinmetz. “Não havia nenhum documento assinado pelos governos dos dois países de que isso seria autorizado”, disse ele. Perguntei-lhe se era sinal de amadorismo desembolsar 500 milhões de dólares confiando apenas na promessa de um empresário cujo relacionamento com a Vale era incipiente. Ele me respondeu de forma lacônica: “No mínimo.”
No dia 30 de abril de 2010, Steinmetz chegou ao Rio, junto com outros executivos da BSGR, para a assinatura do contrato com a Vale, na sede da companhia, no Centro da cidade. Fábio Barbosa, como diretor-financeiro da mineradora brasileira, recusou-se a assiná-lo. Orientou os executivos da sua área a também não assumir tal responsabilidade. “Ele, como responsável pela assinatura do balanço da Vale junto à SEC (órgão de fiscalização do mercado acionário americano), dizia que, caso os acionistas da Vale fossem prejudicados com o negócio, quem iria preso seria primeiro o Roger, e, depois, ele”, contou esse executivo. No lugar de Barbosa, quem assinou o documento foi José Carlos Martins, como diretor executivo, além de Agnelli, como CEO da Vale s.a. Beny Steinmetz não colocou seu nome. Pelo lado da BSGR, a responsabilidade legal do negócio coube a um diretor chamado David Clark.
Agnelli deu mais uma pitada e continuou seu relato. Frisou que, embora não tivesse a garantia formal dos governos, havia no contrato a cláusula de que o pagamento dos 2 bilhões de dólares restantes só seria efetuado depois que se resolvesse a questão da ferrovia. E que nos encontros que teve com o Conselho de Administração da companhia deixara isso claro. “Eu conversei com todos os integrantes do conselho”, disse-me Agnelli, aparentando absoluta tranquilidade. “Foi registrado em ata e todos os acionistas estavam conscientes de que pagaríamos 500 milhões de dólares para termos a opção de comprar os 51% de Simandou. Caso não conseguíssemos que a ferrovia saísse pela Libéria, não pagaríamos o restante. Perderíamos os 500 milhões por não desenvolvermos a jazida, mas ficaríamos sócios em Simandou.” E justificou mais uma vez, como quem repete um mantra: “Era importante estrategicamente para a Vale não deixar a Rio Tinto sozinha lá com acesso a todo aquele minério.”
À época em que o negócio foi fechado, o presidente do conselho da Vale era Sérgio Rosa, que era também presidente da Previ, o fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, o maior acionista individual da mineradora. Rosa confirmou a amigos que endossou a proposta, assim como todos os outros conselheiros, por avaliar que se tratava de um bom negócio. O argumento de Agnelli de que estariam em pé de igualdade com a Rio Tinto foi suficiente para convencer os conselheiros. “Era muito difícil para eles questionar o Roger”, disse-me um executivo da companhia. “Ele era o operador e a empresa vinha dando resultados fabulosos. Acho que os conselheiros ficavam temerosos de ir contra suas ideias.” O fato, segundo esse executivo, é que o conselho nunca teve ciência do que foi assinado. “Eles apenas foram informados da estratégia, mas não conheciam os detalhes do contrato.”
O contrato, no entanto, não garantia que a Vale permaneceria dona dos 51% se não pagasse os 2 bilhões de dólares restantes, caso a questão logística não fosse solucionada. Ou seja, se a Vale não saldasse sua dívida com o israelense até 2011, independentemente do resultado da negociação em torno da ferrovia, sua participação ficaria reduzida a apenas 10% de Simandou – o equivalente a 500 milhões de 5 bilhões. Em resumo, a mineradora pagou meio bilhão de dólares a Steinmetz sem qualquer garantia de que a ferrovia sairia pela Libéria. E ainda concordou em ter sua participação significativamente reduzida, na eventualidade de que a promessa não fosse cumprida.
Um advogado que examinou o contrato, um calhamaço de quase 200 páginas, questionou a forma como o negócio foi aprovado pela companhia brasileira. “É estranho que o conselho tenha autorizado a Vale a desembolsar meio bilhão de dólares antes que o problema da ferrovia estivesse resolvido”, disse ele, durante um almoço no Rio de Janeiro, em meados de fevereiro. “Se o negócio só seria economicamente viável se a ferrovia saísse pela Libéria, me parece lógico que era preciso, antes, acertar formalmente essas condições.” Sua avaliação é de que o contrato deveria conter uma cláusula obrigando Steinmetz a devolver o dinheiro caso ele não conseguisse viabilizar a questão logística. “No mínimo, a Vale deveria ter imposto o pagamento de uma multa ao empresário”, sugeriu.
Os problemas da Vale com o sócio israelense não demoraram a aparecer. As faturas dos gastos com a instalação do canteiro de obras em Simandou passaram a chegar ao escritório da VGB – a empresa resultante da sociedade – em Conacri, capital da Guiné, e quem tinha de pagá-las era a Vale, uma vez que o contrato não previa o desembolso de nenhum centavo pela BSGR. Certo dia, executivos da mineradora receberam uma conta milionária referente ao leasing do avião particular de Beny Steinmetz, com o qual ele roda o mundo. Os responsáveis pelo reembolso das despesas se recusaram a pagar.
“Nós dissemos ao Beny que os gastos com o avião particular dele não eram de responsabilidade da Vale, não faziam parte do projeto”, contou-me um executivo da companhia envolvido no processo. Steinmetz reagiu mal: disse que ou bem a Vale pagava aquele custo ou ele, como sócio, não autorizaria mais nenhuma despesa feita pela Vale (na verdade, a assinatura era sempre de um representante da empresa; ele mesmo nunca assinava nada). Numa sociedade, as despesas precisam ser referendadas pelos sócios. Caso os representantes da BSGR se recusassem a autorizá-las, as obras parariam. “Ele ia sempre até o limite. Dizia ‘então vamos parar’. Ele não levava adiante, mas ousava nos intimidar”, contou esse executivo. “Essa não é a melhor forma de se fazer negócio.”
No mundo concreto das obras, as coisas também não estavam dando certo. Quando os técnicos da Vale entraram em Simandou para entender o projeto, tiveram clareza da dificuldade de sua implementação. “O Martins argumentara que a Rio Tinto não tinha conseguido desenvolver Simandou porque fora ineficiente, mas que a Vale conseguiria fazê-lo”, contou um outro executivo, referindo-se ao diretor aliado de Agnelli. Não era simples assim. Não havia na Guiné trabalhadores qualificados para tocar as obras. Pensou-se em empregar o fly-in e fly-out adotado pelas plataformas de petróleo, um esquema de revezamento que alternaria o trabalho das equipes: a cada quinze dias um grupo de operários brasileiros iria para Simandou e outro voltaria para o Brasil, retornando à Guiné quinze dias depois, e assim por diante. Funciona bem em plataformas, cujas distâncias são, no máximo, de 300 quilômetros da costa. No caso da Guiné, a milhares de quilômetros do Brasil, a solução exigiria a contratação de um Boeing 747, que teria que aterrissar na Libéria, de onde os operários seriam levados até a montanha do minério por caminhos precários. Era inviável e a ideia foi abandonada.
Havia ainda problemas com a segurança dos equipamentos. O roubo de material era comum. “Era desesperador. Não tinha nada lá, nem infraestrutura, nem energia, nem segurança. Não havia como se comunicar com o escritório em Conacri caso fosse preciso contratar algo com urgência”, contou um funcionário da Vale que participou dessa primeira etapa do projeto.
O presidente Alpha Condé assumiu a Presidência em dezembro de 2010. Como toda a negociação de Steinmetz fora feita com os governos anteriores, adversários do novo presidente, Agnelli achou por bem que ele e o sócio visitassem Condé para falar de suas intenções na Guiné. Chegaram a Conacri no dia seguinte à posse e foram se encontrar com Condé em sua casa. O momento não era o mais propício. Enquanto os três conversavam no andar de cima, o irmão do presidente era velado no andar de baixo. Agnelli disse que foi um encontro amigável e que Condé demonstrou grande interesse em conhecer o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que em menos de um mês, em janeiro, seria substituído por Dilma Rousseff no Palácio do Planalto. Condé evitou dar garantias sobre o futuro da operação em curso, mas na conversa reivindicou, como contrapartida ao negócio, que a Vale e seu sócio construíssem uma ferrovia urbana ligando Conacri aos distritos mais próximos, empreendimento relevante num país em que a maioria da população se desloca a pé.
Agnelli concordou e voou para Washington, onde conversou com o Banco Mundial para tratar do financiamento da ferrovia urbana na Guiné. Não conseguiu apoio. De lá mesmo, ligou para Lula. Falou do desejo de Condé de conhecê-lo e pediu também a intercessão do então presidente no negócio. Acreditava que o prestígio de Lula poderia levar o presidente guineano a olhar com mais simpatia a presença da Vale na Guiné. Aproveitou para pedir que o BNDES liberasse recursos para a ferrovia de Conacri.
No dia 1º de janeiro de 2011, Lula passou a faixa presidencial para Dilma. Nessa mesma data, de acordo com o contrato entre a Vale e a BSGR, vencia o prazo para a solução da cláusula da saída da ferrovia pela Libéria. Dez dias depois, a Vale teria que depositar na conta do israelense 2 bilhões de dólares. O imbróglio, porém, não se resolvera. Steinmetz não conseguiu cumprir o que havia prometido. No final de fevereiro, menos de dois meses depois de deixar a Presidência, Lula voou para a Guiné junto com Agnelli, no avião da Vale. Lá foi saudado com entusiasmo pela população. O ex-presidente se hospedou na casa de Condé. Agnelli, acompanhado de sua mulher, seguiu para o Novotel, onde costumam ficar os altos executivos estrangeiros. Subiu as escadas até seu apartamento, no 4º andar – evitou o elevador dadas as frequentes quedas de energia no país.
No dia seguinte, 22 de fevereiro, houve uma cerimônia para o lançamento da pedra fundamental do projeto da Vale em Simandou. Lula assistiu a tudo ao lado de Condé. Suava sob o calor escorchante. Em seguida, houve um almoço para as autoridades. À mesa junto com Condé, cercados por seguranças, sentaram-se Lula, Agnelli e sua mulher. Logo após se acomodarem, Beny Steinmetz se aproximou e parou diante deles, como quem se convida a tomar assento. Olhou insistentemente para o presidente, que desviou o olhar. Criou-se uma situação constrangedora, percebida pelos convidados. Um integrante do cerimonial conduziu Steinmetz a outra mesa. Era ordem de Condé que o israelense não se sentasse na mesa principal.
“Ali ficou claro para mim que o presidente Condé não tinha um bom relacionamento com o Beny”, disse-me Agnelli. Perguntei-lhe se ele sabia por quê. Agnelli respondeu que o mal-estar decorria do fato de Steinmetz não ter pago impostos à Guiné pela quantia que recebeu da Vale. “Eu fui falar com o Soros. Eu disse: ‘George, me diga o que é, que eu tento resolver. Eu falo para o Beny pagar’”, contou Agnelli, relatando que, depois disso, Soros não lhe deu retorno.
O lançamento da pedra fundamental deu esperança aos brasileiros de que o projeto seria aprovado. Mas, com a queda em desgraça do parceiro bem relacionado, a garantia de que a ferrovia sairia pela Libéria era um sonho cada vez mais distante. Steinmetz deixou isso claro para os executivos da Vale. Em março, sugeriu que procurassem outros caminhos para resolver a questão da ferrovia, já que ele não poderia mais ajudá-los. E os deixou sozinhos no negócio, jogando sobre a Vale a responsabilidade de resolver o impasse.
Em qualquer negócio, a despeito de sua dimensão, quando uma das partes se sente lesada, presume-se que ela recorra à Justiça para obter alguma forma de reparação. Esse seria o caminho a ser tomado pela Vale. No entanto, no caso da sociedade com Steinmetz, essa possibilidade não existia. Pessoas que leram o contrato disseram que a Vale se comprometeu a não processar a BSGR ou qualquer empresa do grupo de Steinmetz (e ainda qualquer diretor, empregado, agente ou consultor da empresa e do grupo do israelense) caso se sentisse prejudicada pelo acordo. “É inacreditável que uma empresa do tamanho da Vale, com a sua excelência e importância no mercado, tenha concordado que uma empresa júnior, absolutamente irrelevante na mineração de ferro, lhe impusesse esse tipo de condição”, avaliou um experiente advogado envolvido no assunto. “Nunca vi uma coisa dessas.”
Depois disso, Roger Agnelli ficou numa posição vulnerável. Em 2008, durante a crise global, ele já havia se desgastado com o presidente Lula por ter demitido 1 300 funcionários, alegando corte de custos. Também contrariou o presidente ao encomendar navios à China, num momento em que o governo queria acelerar a construção naval no país. “O Roger estava certo”, disse-me um executivo da companhia. “A Vale é uma empresa com ações no mercado e não podia se sujeitar a exigências descabidas do governo, que queria se intrometer na administração da empresa. A Vale não é a Petrobras, onde o governo faz ingerência sem parar.”
As relações com Lula se normalizaram, mas Agnelli nunca teve um bom entendimento com a presidente Dilma. Em março de 2011, numa viagem à África, declarou a jornalistas que não aguentava mais tanta corrupção no Brasil. Selou ali o seu destino. A cada dia, sua posição na empresa ficava mais debilitada.
Ainda em março de 2011, Agnelli perdeu um importante aliado no Conselho de Administração. Sérgio Rosa foi substituído na presidência da Previ e do conselho da Vale por Ricardo Flores, um executivo de carreira do Banco do Brasil. A indicação de Flores foi bem aceita pelos acionistas. Ele tinha muito mais familiaridade com o mercado acionário do que o antecessor, cuja trajetória fora construída no sindicalismo bancário e na militância do PT. A partir daí, as relações de Agnelli com o conselho mudaram radicalmente. Ao contrário de Rosa, Flores passou a cobrar de Agnelli que enviasse com pelo menos quinze dias de antecedência a pauta das reuniões ao conselho, bem como os documentos sobre os temas que seriam discutidos. Até então, os conselheiros tomavam conhecimento dos assuntos em cima da hora. “O Roger tinha uma ascendência muito grande sobre o conselho”, contou-me um alto executivo da Vale. “Isso mudou depois da chegada do Flores.”
Encontrei-me com um ex-integrante do conselho numa tarde de dezembro. Ele contou que Flores irritou-se com Agnelli numa certa reunião porque não tinha recebido a pauta com antecedência. No encontro seguinte, o fato se repetiu e Flores cancelou a reunião. Mas foi por causa de Simandou que a relação desandou de vez. O presidente do conselho da Vale pediu para ver o contrato com Steinmetz. Depois de analisá-lo, concluiu que tinha sido muito prejudicial à companhia. Questionou cláusula por cláusula. Ficou possesso ao saber que a Vale pagara os 500 milhões de dólares sem qualquer garantia; que assumira toda a responsabilidade financeira do projeto; que estava impedida de processar o sócio.
Durante a reunião em que o assunto foi tratado, alguns conselheiros tentaram argumentar que não tiveram conhecimento de todos aqueles “detalhes”. Flores levantou a voz. “Como não sabiam? Ninguém aqui é menino. Todo mundo tem responsabilidade por esse contrato.”
Agnelli foi avisado, em março de 2011, de que não continuaria mais à frente da empresa. Nem Flores, como presidente do conselho, nem a presidente Dilma o queriam mais lá. Privatizada em 1997, no governo Fernando Henrique Cardoso, a Vale nunca se desvinculou do Estado. Seus maiores acionistas são a Previ, dos funcionários do Banco do Brasil, o BNDESpar (o braço acionário, com participação nas empresas, do banco estatal de desenvolvimento) e outros dois fundos de pensão estatais, o Petros, dos funcionários da Petrobras, e o Funcef, da Caixa Econômica Federal. Ou seja, mesmo privatizada, a Vale tem no governo seu principal acionista. Os outros sócios relevantes são o Bradesco e a japonesa Mitsui. Os 46% restantes são ações negociadas em Bolsa.
Agnelli chegou à Vale aos 38 anos, logo após a privatização, como representante do Bradesco no conselho, onde ficou até ser alçado à presidência da mineradora. Sua atuação no conselho logo o catapultou ao comando da companhia. O Bradesco sempre lhe deu suporte, mas depois de seu desgaste com Dilma o banco foi pressionado a aceitar sua destituição da Vale.
No final de abril, Flores apoiou o nome de Murilo Ferreira para o cargo. Sugerido por headhunters, Ferreira era funcionário de carreira da própria Vale, tinha sido diretor da companhia e ocupara a presidência da canadense Inco. Deixara a Vale em 2008, estremecido com Agnelli após ter discordado da tentativa de compra da Alcan, em 2007. No período de transição entre os dois presidentes da Vale, Agnelli se recusou a ceder um espaço para Ferreira no escritório da presidência.
Pouco depois de tomar posse, em maio de 2011, Murilo Ferreira foi a Conacri para uma audiência com Condé. Ouviu do presidente que a Guiné não queria negócios com Steinmetz. Caso desejasse permanecer em Simandou, a Vale teria que se livrar do sócio. Condé também sustentou que a ferrovia do minério teria que passar por seu país, e não pela Libéria.
Surpreso, Ferreira perguntou se o presidente havia mudado de ideia quanto ao trajeto da ferrovia, já que, na presença de Lula, ele havia confirmado o acordo sobre esse assunto. Tanto que assentara a pedra fundamental para construção da ferrovia urbana em Conacri, contrapartida para a aprovação do projeto. Condé lhe respondeu que a cerimônia tinha sido uma encenação em respeito ao ex-presidente, a quem admirava, mas que, assim que o brasileiro partiu, ele deu seguimento à disposição de rever todos os contratos na área de mineração. Aproveitando-se dessa brecha, a Vale declarou força maior e suspendeu a aplicação de todas as cláusulas contratuais com a BSGR, inclusive a possibilidade de ver reduzida de 51% para 10% sua participação na sociedade. Também paralisou o projeto e cancelou todos os pagamentos a Steinmetz. Ainda assim, a Vale continua com despesas de manutenção em Simandou para garantir a licença.
Numa manhã de janeiro, encontrei-me com Murilo Ferreira no 16º andar da sede da Vale. Ferreira tem um sorriso afável. A fala é mansa, puxada nos esses do interior de Minas Gerais. Costuma fugir das perguntas mais delicadas argumentando que precisa analisar tudo caso a caso. Ele se sentou à cabeceira de uma comprida mesa de madeira da sala de reuniões. Ao seu lado, estava o jovem advogado Clóvis Torres, consultor-geral da empresa, cuja aparência ansiosa e tensa contrastava com a do chefe.
Ferreira disse não falar sobre hipóteses em relação ao futuro da Vale em Simandou. Após muita insistência, admitiu que a logística é fundamental no projeto. Iniciou serenamente sua peroração: “Mineração de ferro depende tanto do minério como da logística. A associação dos dois é que permitirá calcular se o negócio é competitivo.” E continuou, com voz pausada: “O que faz o minério diferente após as especificações é a sua capacidade de escoamento. Existem reservas boas, notáveis. Mas é preciso somar uma porção de coisas para falar em que classe você coloca o minério. Não basta dizer que o minério é muito bom. Se é preciso 700 quilômetros de estrada de ferro para escoá-lo, tchau. Se tenho que fazer um molhe de 50 quilômetros, tchau. A reserva pode ser excelente, mas vai continuar inexplorada.”
Desde que assumiu o cargo ele tenta uma solução para Simandou, mas não comenta a iniciativa de seu antecessor de comprar a concessão. “Quem sou eu para questionar? Se o conselho da época aprovou o negócio, é porque o achou bom.” Além disso, disse ele, as circunstâncias mudaram. O preço do minério caiu de 200 dólares a tonelada para 130 dólares. O mundo entrou em recessão, e a China não é mais tão demandante de ferro. Nesse meio tempo, a mina de Serra Sul, em Carajás, recebeu licença para operar, e a expectativa é de que produzirá 50 milhões de toneladas por ano. Isso não significa, disse ele, que a Vale não precise desenvolver novas reservas. Comentei então que havia grande expectativa no mercado para saber se a Vale iria desenvolver Simandou, já que isso muito provavelmente teria impacto no preço futuro do minério. Ferreira cruzou as mãos e abriu um sorriso: “Eu sou mineiro de Uberaba. Só afirmo alguma coisa depois de ter muita certeza. Essas pressões vêm de gente que quer me ver escorregar em casca de banana.”
Indiretamente, contudo, fez uma crítica ao comportamento de Agnelli em relação aos negócios. “Os estudos que estamos exigindo hoje para aprovação dos projetos no conselho são muito mais detalhados. O mercado estava inconformado com o fato de a Vale apresentar projetos sem muitos detalhes. Eu peco pelo outro lado. Gosto de ter os projetos muito detalhados. Todos só são apresentados com possibilidade de execução.”
Em 2012, um ano após ter deixado a Vale, Agnelli deu mais uma mostra de seu estilo. Uma reportagem da revista Exame dizia que ele e André Esteves, à frente da B&A, estavam tentando se apoderar da concessão da Vale em Simandou. Asher Avidan, braço direito de Steinmetz na BSGR, chegou a vir ao Brasil denunciar a estratégia. Agnelli nega que isso tenha ocorrido e se diz vítima de calúnia. “Esse Asher Avidan é um maluco, um desequilibrado”, protestou. Perguntei-lhe por que não o tinha processado. “Para quê? Nem aqui ele mora”, justificou-se.
Foi um momento tenso para Murilo Ferreira. “A notícia me causou muito desassossego”, confessou. “Depois o André Esteves me ligou e disse que não era verdade”, concluiu o atual presidente. Na mineradora, comenta-se nos corredores que um intermediário do Planalto procurou Esteves e deixou claro que a presidente Dilma não queria que ele se metesse com a Vale.
A questão agora é saber como Ferreira fará para se desvencilhar de seu sócio inconveniente. Ele nega que tenha intenções de se desfazer da aliança com Steinmetz – com quem se comunica somente por intermédio de advogados – antes de ter provas de que o israelense subornou governantes da Guiné. “Eu não posso afirmar se ele corrompeu ou não pessoas do governo. Isso quem decidirá é a Justiça. Somente depois a Vale poderá dizer se desfaz ou não a sociedade. Vamos esperar o julgamento.” Perguntei-lhe se ele considerava Steinmetz um bom parceiro, levando em conta os pontos extremamente desfavoráveis à Vale no contrato. Ferreira desconversou. “O contrato tem cláusula de sigilo. Não falo sobre isso.”
Os advogados envolvidos no caso esperam o julgamento nos Estados Unidos do francês Frédéric Cilins, previsto para o final deste mês de março. Cilins, que trabalhou para Steinmetz na Guiné, foi flagrado pelo FBI tentando convencer uma das viúvas do ditador Lansana Conté a destruir provas de uma propina que ela teria recebido para que a BSGR ganhasse a concessão em Simandou.
No dia 11 de fevereiro, Murilo Ferreira e o consultor-geral Clóvis Torres tiveram um encontro sigiloso com Alpha Condé, em Conacri. Foram pedir que a comissão técnica – encarregada de avaliar se houve suborno por parte da BSGR para conseguir a concessão em Simandou – adiasse o resultado da sua sindicância por sessenta dias. Condé determinara que, caso a comissão encontrasse indícios fortes de corrupção, a concessão poderia ser cancelada. Tudo leva a crer, segundo um conselheiro de Condé, que a comissão encontrou esses indícios. Segundo esse mesmo conselheiro, Ferreira alegou que a Vale entrou com uma ação na Justiça americana pedindo autorização para se desfazer da sociedade com a BSGR por motivo justo.
Murilo Ferreira pediu que o governo da Guiné esperasse a decisão judicial. Caso a sociedade se desfaça, a Vale ficará sozinha no negócio em Simandou. Condé lhe disse que tem o maior interesse na permanência da empresa na Guiné e concordou em dar mais prazo para que a companhia resolva a questão da sociedade com Steinmetz.
Agnelli criou um neologismo em inglês para a discussão em torno do pagamento ou não de propina ao governo da Guiné. “Bullshitagem”, de bullshit, algo como “bobagem” no idioma bretão. “Dizem, dizem”, irritou-se. “O fato é que se essa jazida já estivesse sendo explorada a Guiné estaria vendo o dinheiro entrar. Está tudo parado e eles continuam na miséria.”
O executivo está convencido de que fez o melhor negócio para a Vale. Disse que a África é o futuro e ele quer estar lá com a sua empresa. “Eu adoro a Guiné. Quero estar lá para ajudar aquela gente a se desenvolver. Adoro aqueles negão.” Sua empresa em sociedade com André Esteves tenta negociar com a BHP Billiton parte da concessão em Monte Nimba, no sul do país.
Ao me acompanhar até a saída, Agnelli caminhou pelo comprido corredor da empresa, cujas dependências ele havia me mostrado. Na parte central há uma sala grande, com decoração também colorida, onde ficam as bancadas das doze pessoas que hoje trabalham na AGN Participações. Ao final do corredor, há uma sala de reuniões menor e uma copa. Comentei com ele que o local era espaçoso. Ele reagiu com espanto, quase duvidando da minha avaliação. “Você acha?” Respondi que sim, provocando: “Mas não é uma Vale.” Ele respondeu de pronto. “Ainda” – e sorriu.