ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2017
De volta ao pó
A ressurreição do rapé
Julia Duailibi | Edição 127, Abril 2017
O barman é um garoto de cabelos bagunçados, do tipo que não economiza quando serve a dose de Jack Daniel’s. Perto dele há um pôster do poeta e romancista americano Charles Bukowski. Apesar da luz baixa, é possível identificar, sobre as paredes de cor escura, as fotos de Bob Dylan e dos Ramones, desenhos pornográficos e uma ou outra frase rabiscada: “Feliz Halloweed”, “Pó-Esia Concreta”.
O ambiente funciona como sala de estar para a companhia de teatro Cemitério de Automóveis. Num espaço anexo, no bairro da Consolação em São Paulo, o grupo ensaia e apresenta os seus espetáculos. Naquele sábado à noite, o ator e dramaturgo Mário Bortolotto, diretor da companhia, tinha acabado de sair do palco. Um dos principais nomes do teatro brasileiro, Bortolotto faz lembrar o vocalista de uma banda de rock – dessas cujos integrantes sobreviveram a décadas de excessos e já têm os cabelos brancos.
Ele vestia uma jaqueta de couro, camiseta preta e coturno. Assim que o vi, perguntei se poderíamos cheirar o pó. Era preciso sair dali. Passamos por baixo de um luminoso vermelho e amarelo – “Foda-se”, dizia o enfeite – e entramos no camarim.
Bortolotto tirou do bolso um pequeno recipiente de plástico, onde guardava o produto. Depositou na palma da mão uma parte do conteúdo e com a outra sacou um canudo. Com a ajuda do apetrecho, consumiu o pó. Os olhos do dramaturgo lacrimejaram, Bortolotto fungou, mas não pareceu se abalar. O pó que ele havia acabado de consumir era rapé, uma mistura de tabaco com cinzas de casca de árvore, ervas e sementes. A substância tem a aparência de pimenta do reino moída e, no Brasil, é produzida por tribos indígenas.
Depois de um longo período no ostracismo, o rapé voltou a ser adotado, de uns tempos para cá, por uma combinação curiosa de usuários: artistas, hipsters e ativistas da causa indígena. Seu consumo é visto por alguns como um ato de resistência à indústria tabagista, uma maneira de parar de encher os bolsos dos poderosos fabricantes de cigarro. Como na aplicação do produto não há combustão, seus entusiastas também celebram o fato de poderem usá-lo livremente, sem precisar recorrer aos fumódromos de bares e casas noturnas. O rapé é soprado (e não aspirado) no nariz com a ajuda de um canudo de bambu em forma de “V”, chamado kuripe, uma espécie de estilingue sem o elástico. É preciso introduzir uma das pontas na narina – a outra se coloca na boca, para assoprar o produto. A aplicação também pode ser feita em dupla, com o tepí, um canudo comprido usado pelos índios.
Na falta de um tepí, Bortolotto colocou uma pitada de rapé em seu kuripe e me passou o instrumento. A primeira sensação que tive foi a de uma ardência extrema, como se tivesse cheirado uma carreira de wasabi, o tempero usado no sushi. Em geral os olhos lacrimejam, e o corpo fica mole. Outro efeito comum é o acesso de espirros. O nariz começa a expelir o pó marrom.
Os índios dizem que se trata de um ritual de limpeza. O Ministério da Saúde adverte que, por conter nicotina, o produto causa dependência. De fato, o efeito se assemelha ao do tabaco. É como se você tivesse fumado um cigarro inteiro, em três segundos.
No século XIX, havia no Brasil algumas fábricas de rapé, principalmente no Rio. Em 1878, Machado de Assis escreveu a comédia O Bote de Rapé, na qual Tomé, o protagonista, dialoga com o próprio nariz. “Uma boa pitada as ideias areja”, diz o personagem, celebrando a substância. “Dissipa o mau humor.” O órgão olfativo de Tomé é ainda mais enfático: “O nariz sem rapé é alma sem amor.”
Disso já sabiam os índios, que consumiam o produto antes mesmo da chegada dos portugueses. Depois o rapé atravessou o oceano. Por algum tempo, fez sucesso com a elite europeia, até cair no esquecimento, quando passou a ser mais elegante fumar charutos.
Hoje é possível comprar rapé em tabacarias, mas o produto faz sucesso mesmo em lojas online especializadas em enteógenos – substâncias que alteram a consciência, usadas em rituais religiosos –, sementes psicodélicas, ervas medicinais e artesanato xamânico. “A venda aumentou nos últimos tempos”, garantiu Sarita Moura, proprietária da Mukani Shop, estabelecimento na internet que comercializa “moda étnica”, sementes, óleos e incensos. “Mas é uma parcela muito pequena que faz o uso adequado, no contexto espiritual. Grande parte usa porque é moda.” A Mukani vende rapé das etnias Kaxinawá, Yawanawá, Nukini e Apurinã. O preço varia de 35 reais (5 gramas) a 310 reais (100 gramas), e o rótulo do produto garante que seu consumo causa “fortalecimento do espírito, limpeza mental, concentração e foco”.
Bortolotto gosta do produto feito com cascas de tsunu, árvore nativa conhecida como pau-pereira. Em seu camarim, o dramaturgo contou que experimentou o rapé pela primeira vez há mais ou menos um ano. Foi apresentado à substância por uma amiga. Desde então consome o pó “várias vezes” por dia. “Dá uma limpeza total e deixa você mole. Tem índio que aplica na criança que está chorando. Aí ela acalma e dorme.”
Algum tempo depois da primeira fungada, Bortolotto voltou a se servir do potinho. Colocou um pouco mais de pó no kuripe. Uma amiga do dramaturgo, que pouco antes havia se juntado a nós, comentou que tinha em casa um saco de 100 gramas de jurema-preta, uma árvore cuja raiz tem propriedades psicoativas. “Vamos usar isso aí”, ele reagiu, animado. “Como é que faz? Você cheira ou você toma?”, quis saber.
“Tem que fazer um ritual, acender uma fogueira”, respondeu a amiga. “Ah, ritual, não. Aí é coisa de pajé”, respondeu o dramaturgo, antes de colocar os óculos escuros. Depois saiu do camarim, decidido, e foi se encostar no balcão do bar. Queria tomar mais uma dose de Jack Daniel’s.
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