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    “Toda organização criminosa do mundo passa por reciclagem em sua liderança. Chegou a hora do Primeiro Comando da Capital”, diz o promotor Lincoln Gakiya. O assassinato em fevereiro de Gegê do Mangue, número dois do PCC, desencadeou uma crise sem precedentes na cúpula da facção ILUSTRAÇÃO: PEDRO FRANZ_2018

anais do crime

A guerra do PCC

Facção se internacionaliza com tráfico de cocaína, e pela primeira vez Marcola vê seu poder ameaçado

Allan de Abreu | Edição 140, Maio 2018

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O carro parou no acostamento da rodovia entre Guarujá e Cubatão, na Baixada Santista, no local previamente combinado, bem ao lado da ponte sobre o rio Diana, que nasce na Serra do Mar e deságua no canal do porto de Santos. Eram três e vinte da madrugada de 18 de agosto de 2017, uma sexta-feira. Logo o motorista viu quatro vultos se aproximarem na escuridão. Ele desceu do carro, abriu o porta-malas e começou a retirar as bolsas de viagem. Dezesseis no total. Cada uma armazenava vários tabletes prensados, do tamanho de um tijolo, contendo cocaína. Somavam 273 quilos. O grau de pureza da droga era elevadíssimo – 97%. Os cinco pegaram as malas e rumaram a passos ligeiros para o mangue que margeia o rio. Com o auxílio de faroletes, chegaram a uma voadeira à beira d’água. Era um barco pequeno, com casco de alumínio, ágil e veloz, ideal para aquela missão. O jovem motorista voltou para o carro, enquanto os outros quatro entravam na embarcação. O céu limpo e a ausência de ventos fortes prenunciavam o sucesso da empreitada. Em poucos minutos a voadeira alcançava o canal do porto de Santos.

Horas antes, ainda na noite da véspera, 17 de agosto, um agente da Polícia Federal, com o uniforme de uma das empresas que trabalham no porto, atravessou o cais, misturado a centenas de estivadores, e escalou os degraus de um dos guindastes que se espalham pelo canal, como se fossem gigantescas patas de aranha. Subiu a uma altura de 80 metros do nível do mar, o equivalente a um edifício de 26 andares. Então abriu a bolsa que carregava a tiracolo e pegou um binóculo de uso noturno e as peças de um fuzil calibre 762, que começou a montar metodicamente. Do alto do portêiner, ele tinha uma visão privilegiada do canal e, sobretudo, do navio cargueiro ancorado mais à frente. Era ele que iria levar à Europa a cocaína que os quatro membros do Primeiro Comando da Capital, o PCC, trariam por mar dali a algumas horas.

O policial disfarçado de estivador era um sniper – atirador de elite da Polícia Federal. Sua presença no porto se devia a uma operação para flagrar o que, na gíria do tráfico, se conhece por “pescaria”. Com um pequeno barco, traficantes da facção se aproximam do cargueiro e, auxiliados por cordas lançadas do convés, tripulantes cooptados pelo esquema içam as bolsas carregadas de cocaína.

No dia 15 de agosto, quando soube por escutas telefônicas que integrantes do PCC fariam nova “pescaria” no porto de Santos, o núcleo de inteligência da PF em São Paulo se reuniu com uma equipe do Comando de Operações Táticas da corporação. Com um mapa sobre a mesa, definiram o plano de ataque, que envolveria, além do sniper, uma equipe em terra e outras duas no mar. Ao todo seriam 23 agentes da PF na operação.

Visitei recentemente o porto de Santos para entender melhor a cena. Os três agentes da PF que entrevistei numa tarde de abril me explicaram que nos últimos anos o porto havia se tornado um campo minado para a polícia. Nenhum deles quis ter sua identidade revelada, por razões de segurança. Com o recrudescimento do tráfico e o aumento dos ganhos, o PCC passou a corromper em escala inédita estivadores, funcionários dos terminais portuários, guardas e até fiscais da Receita Federal. Há uma tabela informal de propinas: de mil dólares pela foto de um contêiner que tenha destino internacional de interesse do esquema, até 1 500 dólares por quilo de cocaína embarcado, destinados a corromper toda a cadeia logística e de fiscalização. Os valores impressionam, mas são relativamente baixos se comparados ao lucro assombroso com a exportação da droga: no estado de São Paulo, o quilo da cocaína vale entre 6 e 8 mil dólares; na Bélgica, alcança 30 mil dólares; na Inglaterra, onde o policiamento é mais feroz, até 62 mil dólares.

Para se precaver contra algum vazamento da operação, a lancha que a PF usou naquela noite embarcou num caminhão em Brasília e foi até São Sebastião, litoral norte de São Paulo, de onde, no próprio dia 17 de agosto, navegou até a Ilha das Palmas, nas imediações de Santos. Era uma lancha blindada, que atinge velocidade de até 110 quilômetros por hora. A ela se somaria um bote com potência mais modesta, do Nepom, o Núcleo Especial de Polícia Marítima, da PF de Santos.

Naquela mesma tarde, disfarçados de funcionários do porto, o comandante da operação e o sniper fizeram um reconhecimento detalhado do terminal da Citrosuco. Era lá que estava ancorado o gigante Mozu Arrow, das Bahamas, no qual horas mais tarde ocorreria a “pescaria”. O Mozu Arrow é um “ro-ro” – abreviação de row-on/row-off, ou seja, rolar para dentro/rolar para fora – de 185 metros de comprimento por 30 de largura, em formato de caixote. Como o nome indica, ele pode receber cargas que nele ingressam por seus próprios meios, como carros e caminhões. Naquela madrugada, porém, milhões de litros de suco de laranja destinados à Europa abasteceriam o navio, que zarparia ainda no dia 18 de agosto rumo aos portos de Sheerness, na Inglaterra, e Ghent, na Bélgica.

Às onze e meia da noite, o bote do Nepom estava a postos no cais do porto, a poucos metros do Mozu Arrow, com cinco agentes a bordo; a lancha blindada que viera de Brasília, com sete membros da tropa de elite da PF a bordo, havia ancorado num ponto mais distante, no Guarujá. Naquele momento, o comandante da operação e outros agentes entraram no terminal da Citrosuco, em três carros descaracterizados. Com os faróis apagados, os veículos estacionaram numa área escura, a 700 metros do Mozu Arrow. Tudo estava calculado: em menos de dois minutos eles chegariam ao navio. A ação só começaria quando o sniper desse o sinal por rádio.

Foram pelo menos quatro horas de espera.

Apesar do horário, a movimentação no local era intensa. Não há sossego no maior porto da América Latina, com 16 quilômetros de extensão – diariamente transitam 30 mil pessoas nos terminais, que movimentam 130 milhões de toneladas de carga por ano.

Na voadeira, depois de vencer os pouco mais de 5 quilômetros que separam a ponte sobre o rio Diana do terminal da empresa de sucos no porto, o quarteto do PCC viu piscar por duas vezes uma das luzes da proa do “ro-ro” das Bahamas. Era o sinal combinado entre os traficantes e três tripulantes filipinos do Mozu cooptados pelo esquema. Enquanto a voadeira se aproximava do enorme casco do cargueiro, uma corda descia rapidamente do convés, vencendo a altura de 25 metros até a água.

Do alto do guindaste, o sniper avisou pelo rádio: “Vai!”

Já passava das quatro da madrugada quando a lancha e o bote da PF zarparam em direção ao navio, cada um de um ponto do canal. Quando faltava 1 quilômetro para chegar ao Mozu Arrow, o bote foi ultrapassado pela lancha, mais veloz. Momentos depois, a cerca de 100 metros da voadeira dos traficantes, partiu o primeiro tiro. E mais outro. Dezenas. Além das bolsas com a cocaína, o quarteto do PCC levava no barco dois fuzis, um AR-15 e um AK-47, e uma pistola calibre 3.70. As balas provocavam zunidos agudos no casco blindado da lancha. Os agentes do Comando de Operações Táticas também atiravam com fuzis HK g-36, calibre 5.56 milímetros, arma padrão da Polícia Federal, mais precisa que os fuzis dos traficantes.

Enquanto isso, por terra, os carros da PF chegaram ao navio. Num canto do convés, o comandante da operação avistou três marinheiros descendo afoitos por uma escada que dava acesso ao interior do navio. Carregavam três bolsas e não foram longe. Capturados, os filipinos voltaram ao convés já algemados. Lá embaixo, o barulho intenso dos tiros prosseguia.

Foram mais de cinco minutos de fogo cruzado, mas o relógio parece correr mais lento para quem vive a adrenalina de uma cena como essa. Um dos agentes disse ter tido a impressão de que a batalha durou uma eternidade. Dois dos traficantes foram alvejados e caíram na água. Um deles se chamava Wagner Santos do Nascimento, o Wagnão; o outro era Edson Roberto dos Santos Júnior, o Luizinho. Os outros dois membros do PCC seguiram trocando tiros com a PF, até que a voadeira encalhou na areia escura do mangue, na margem oposta do canal, em frente à favela da Prainha, tradicional reduto do PCC na Baixada. A essa altura Marco Alberto Santana Randi, o Marquinho, e Nicholas Gonçalves Borges, o Zero Dois, também estavam mortos. Junto aos corpos crivados de balas, outras onze bolsas de cocaína. Mais duas foram apanhadas no mar.

Como se não bastasse, a lancha da polícia também encalhou na mesma praia. Era preciso zarpar logo – não fazia muito tempo, tiros oriundos da Prainha já haviam atingido barcos da Receita Federal. Quando o dia clareou, a lancha blindada da PF ainda estava encalhada. Uma multidão de curiosos se formou na areia. Só no meio da manhã, com um barco rebocador, a lancha saiu do atoleiro. Com outro bote, os bombeiros resgataram os corpos que haviam caído no meio do canal e ainda boiavam no mar.

 

A ação na madrugada de 18 de agosto de 2017 era parte de uma grande investigação da Polícia Federal a respeito dos esquemas utilizados pelo Primeiro Comando da Capital para exportar cocaína pelo porto de Santos. A Operação Brabo, como foi chamada, havia começado um ano antes, em agosto de 2016, e foi concluída em 4 de setembro de 2017, duas semanas após o tiroteio no canal do porto. Três anos antes, a PF já havia deparado com as primeiras incursões do PCC no tráfico internacional via Santos, quando flagrou remessas da droga para a Europa e para o México. Mas nada se comparava ao que a Brabo descobriu. O PCC havia adquirido toneladas de cocaína na Colômbia e na Bolívia, que foram exportadas pelos portos de Santos, Rio de Janeiro e Itajaí, em Santa Catarina, para Espanha, Itália, Inglaterra, Bélgica e Alemanha.

Nos portos europeus, a droga costumava ser resgatada pela máfia sérvia, mais especificamente pelo clã Šarić, fundado e liderado por Darko Šarić, condenado por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro em sua terra natal. Dois integrantes do clã se mudaram para Santos a fim de cuidar de perto da sociedade com o PCC: Bozidar Kapetanovic, que no Brasil ganhou o apelido de Judô, e Miroslav Jevtic, o Felipe.

Do lado da facção paulista, a coordenação cabia a Ronaldo Bernardo, conhecido como Brown, e Vilmar Santana de Souza, o Baiano, ambos radicados em São Paulo. Enquanto Brown era um tipo expansivo e vaidoso, um bon vivant que apreciava carros de marca – seu xodó era um Porsche amarelo avaliado em 500 mil reais –, Baiano sempre prezou a discrição. Virou piada entre os agentes a sua fisionomia amarrada na foto dos registros da PF: o negócio lícito do dublê de traficante e empresário era a produtora Planeta Alegria, responsável pela carreira da dupla de palhaços Teleco & Teco.

O esquema a partir de Santos foi descoberto pelo DEA, Drug Enforcement Administration, a agência antidrogas dos Estados Unidos. Os norte-americanos entregaram à polícia brasileira documentos que apresentavam fortes indícios de que cinco grandes carregamentos de cocaína apreendidos no Brasil e na Europa haviam sido coordenados pelo mesmo grupo do PCC. Além desses flagrantes, anteriores ao início formal do inquérito da Operação Brabo, ocorreram mais dezoito durante o período do inquérito – foram 23 apreensões, totalizando 7,8 toneladas de cocaína, em Santos ou em portos europeus, como os de Gioia Tauro (Itália), Kaliningrado (Rússia), Antuérpia (Bélgica), Valência (Espanha) e Londres (Inglaterra). Na Europa, essa droga toda não vale menos de 233 milhões de dólares.

A Operação Brabo resultou na denúncia de 156 pessoas pelo Ministério Público Federal, incluindo sérvios, filipinos, um búlgaro, um malgaxe e um jordaniano, todos acusados de tráfico internacional de drogas e participação em organização criminosa. Uma Babel do crime, capitaneada pelo PCC.

Embora coordenassem a logística de exportação de cocaína de Santos, Brown e Baiano respondiam a um terceiro indivíduo, superior aos dois na hierarquia do grupo: Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue. Era ele o cérebro que trabalhava para transformar o PCC em um cartel de drogas semelhante aos da Colômbia e do México.

 

Seis meses antes da operação no porto de Santos, o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco – o Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado – do Ministério Público paulista, foi a Brasília para uma reunião com Michel Temer no Palácio do Planalto. Atendia a um convite para expor ao presidente os meandros da atuação do PCC no território nacional. Às nove da manhã do dia 21 de fevereiro de 2017, uma terça-feira, Gakiya começou sua palestra para uma plateia seleta: além de Temer, participavam os ministros Sérgio Etchegoyen, do Gabinete de Segurança Institucional; Raul Jungmann, então titular da Defesa; Antonio Imbassahy (na época à frente da Secretaria de Governo); Janér Alvarenga, diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin; e José Levi do Amaral, representante do Ministério da Justiça (ele havia sido nomeado ministro interino no início daquele mês, em substituição a Alexandre de Moraes, que assumira um assento no Supremo Tribunal Federal).

Foi Moraes quem indicou Gakiya quando Etchegoyen perguntou quem poderia lhes fornecer um panorama sobre a organização criminosa. O governo federal estava apreensivo depois de três massacres consecutivos em presídios do norte do país, em janeiro, quando, no intervalo de duas semanas, 115 detentos ligados ao PCC foram assassinados – muitos deles degolados e esviscerados diante das câmeras de celulares – por facções rivais em presídios de Manaus, Boa Vista e Natal. O atual ministro do STF é amigo de longa data de Gakiya. Ambos são da mesma turma de aprovados em concurso para o Ministério Público paulista, em 1991. A indicação foi reforçada por Jungmann, que havia assistido a uma apresentação do promotor paulista durante encontro do Sisbin, o Sistema Brasileiro de Inteligência, no Rio de Janeiro.

Neto de italianos e japoneses, Gakiya é um homem de 51 anos, voz grave, olhos puxados e cabelos levemente grisalhos. Nascido e criado em Presidente Prudente, no extremo oeste paulista, o promotor nunca quis sair de lá por três motivos: a família, as pescarias de dourado e piapara nos fins de semana, e a possibilidade de estudar de perto o crime organizado.

A região de Prudente é a meca dos presidiários no Brasil. Nenhum outro lugar concentra tantos presídios – 22 no total, abrigando em torno de 23 300 detentos. Se fosse um país, a região seria líder mundial em número proporcional de presos: 2 700 para cada 100 mil habitantes, índice nove vezes superior ao do Brasil (324 presos para cada 100 mil pessoas).

Mesmo com tantos detentos, ou por causa disso, a região de Presidente Prudente está sempre entre aquelas com menores índices de criminalidade do estado. “O crime não acontece aqui, é comandado daqui”, resume Gakiya.

O complexo de presídios foi criado pelos governos tucanos no fim da década de 90. O objetivo era levar os detentos para áreas mais afastadas das regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas, tradicionais redutos do PCC e palco de fugas em massa e rebeliões, sobretudo na antiga Casa de Detenção, mais conhecida como Carandiru.

 

Lincoln Gakiya já era promotor de Justiça havia dois anos quando o PCC foi criado, em 31 de agosto de 1993, uma terça-feira, depois de uma rebelião na Casa de Custódia de Taubaté. No início, o movimento funcionou como uma espécie de sindicato informal dos detentos, defendendo-os contra o que chamam de “sistema” – polícia, direção de presídios, Ministério Público, Justiça. O contexto favorecia esses argumentos, ou “ideologia”, no vocabulário da facção. Desde aquela época os presídios brasileiros, incluindo os paulistas, conviviam com superlotação constante e péssimas condições estruturais. Um ano antes, em outubro de 1992, ocorrera o massacre do Carandiru, quando 111 presos foram mortos pela polícia. “Nós do Comando vamos sacudir o sistema e fazer essas autoridades mudar a prática carcerária desumana, cheia de injustiça, opressão, tortura e massacres nas prisões”, afirmava o 13º artigo do estatuto de fundação do grupo.

A hegemonia do PCC foi imposta nos presídios paulistas à base de muita violência. Matar os desafetos era a ordem do trio que encabeçava a facção na década de 90: César Augusto Roriz da Silva, o Cesinha, cujos métodos lhe deram o epíteto de Exuzinho; Jonas Mateus, um ex-açougueiro que se tornaria um exímio cortador de cabeças nos presídios; e José Márcio Felício, o Geleião, um homem corpulento, de 1,90 metro de altura. Aos poucos, facções rivais foram sendo dizimadas ou reduzidas à insignificância: Seita Satânica, Comando Democrático da Liberdade, Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade – e por aí vai.

No fim dos anos 90, senhor do sistema carcerário paulista, o PCC, apelidado de “família”, tratou de estabelecer regras que estabilizassem o convívio social nos presídios e gerassem simpatia entre os detentos. A facção proibiu o consumo de crack nos presídios, e passou a auxiliar os detentos “batizados”, chamados de “irmãos”, com advogados e cestas básicas para os familiares. A renda vinha do crime: o controle da compra e venda de drogas dentro dos presídios e o patrocínio de assaltos e sequestros fora deles, sem contar rifas e uma taxa mensal, que atualmente é de 950 reais, apelidada de “cebola”, que todos os filiados são obrigados a pagar.

Quando o governo Mário Covas (1995-2001) decidiu construir dezenas de presídios no extremo oeste do estado, Gakiya testemunhou o rápido domínio que a facção passou a exercer nas novas unidades carcerárias. Em 1992, após alguns meses como promotor substituto em São Paulo, ele foi transferido para a comarca de Presidente Bernardes, cidade próxima a Presidente Prudente, onde já havia uma penitenciária. Passados quatro anos, nova transferência, para a comarca vizinha de Presidente Venceslau e sua penitenciária com capacidade para 781 detentos. Em 1999, Gakiya viu surgir a segunda penitenciária do município, com capacidade bem maior do que a primeira, 1 280 presos. A P2 de Venceslau, como ficou conhecida, passaria a abrigar a liderança do PCC.

Na virada do século, a “família” passou a se valer de uma novidade tecnológica, o telefone celular, que possibilitou sua expansão para além das grades. Um exército de jovens nas periferias das maiores cidades paulistas começou a ser “batizado” (o ritual de ingresso é simples: em geral, basta ter a indicação de três “padrinhos” filiados). O crescimento silencioso mostraria toda a sua força em 18 de fevereiro de 2001, um domingo, quando o PCC promoveu rebeliões, simultaneamente, em 29 penitenciárias paulistas. A ordem – ou “salve” – para “virar o sistema” partiu de um presídio distante, em Piraquara, no Paraná, para onde Cesinha e Geleião haviam sido transferidos semanas antes. A mensagem viajou até uma central telefônica em São Paulo e de lá para as 29 unidades prisionais controladas pela facção. O governo paulista reagiu transferindo outros líderes do grupo para estados vizinhos, como Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Em vez de enfraquecer o PCC, no entanto, a medida contribuiu para expandir a “ideologia” do grupo pelo centro-sul do país.

 

O PCC tornava-se uma força criminosa incontrolável. Sobretudo a partir de novembro de 2002, quando ocorreu a última troca de comando na facção. Naquele mês, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, assumiu o posto de número 1 do PCC, depois de uma disputa ferrenha que resultou no isolamento de Geleião e no assassinato de Cesinha, amigo de infância de Marcola.

Filho de pai boliviano e mãe brasileira, Marcola nasceu em Osasco, na Grande São Paulo, mas foi criado na região do Glicério, no Centro da capital. Ainda adolescente, começou a praticar pequenos furtos que evoluíram para roubos de pedestres e de veículos e, por fim, assalto a bancos, sua especialidade. Vaidoso e galanteador, ganhou um segundo apelido ao ingressar no PCC, provavelmente no fim dos anos 90: Playboy.

Depois de várias e curtas passagens pelo sistema prisional paulista, Marcola protagonizou o roubo de 5 milhões de reais (22 milhões em valores atuais) de uma transportadora de São Paulo, em julho de 1998. Capturado, foi para o Centro de Detenção no dia 6 de novembro daquele ano. Mas ficou pouco. Fugiria no dia 12 de janeiro de 1999 na companhia de outro amigo de juventude no Glicério: Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, um tipo franzino, de pescoço alongado e entradas consideráveis. Como Marcola, Fuminho também acumula prisões por roubo, mas seu métier no crime sempre foi o narcotráfico – o apelido provavelmente deriva daí.

Detalhes da fuga de Fuminho e Marcola se perderam no tempo. Mas o primeiro teve mais sorte. Marcola foi recapturado seis meses mais tarde e nunca mais deixou o sistema carcerário. Já Fuminho passou algum tempo na favela de Heliópolis, na capital paulista, e depois se radicou em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, onde, por orientação de Marcola, em poucos anos pôs de pé uma estrutura de porte para produzir e exportar toneladas de pasta base de cocaína para o PCC e outras quadrilhas – apesar de ser próximo da facção paulista e de seu líder, ele nunca chegou a ser formalmente “batizado”.

Fuminho mantém-se intocável em território boliviano à custa de muita corrupção policial. De tempos em tempos, vem ao Brasil sob nomes falsos. Foi numa dessas ocasiões, durante uma festa em local não revelado pela polícia, há cinco anos, que foi registrada a única fotografia mais recente dele. Entre 2010 e 2014, a PF identificou o deslocamento de dezenas de aeronaves com cocaína da Bolívia para o interior paulista sob a coordenação de Fuminho. Um desses voos quase foi frustrado por agentes federais ao pousar em um canavial de Igaraçu do Tietê. A droga – 500 quilos de cocaína – foi resgatada pelos traficantes, mas os policiais apreenderam uma bolsa com 1,5 milhão de reais em notas. Um dos policiais ouviu quando o celular do único preso na operação começou a tocar. Era Fuminho: “Sei que a casa caiu e que você é policial. Leva esse dinheiro com você e libera o menino.” O agente desligou e levou o rapaz para a delegacia.

Na mesma época, a Polícia Militar descobriu um bunker nos porões de uma casa em Juquitiba, região metropolitana de São Paulo. O compartimento, mantido pelo PCC para estocar a cocaína que Fuminho enviava da Bolívia, era vedado com uma placa de concreto, só retirada por uma retroescavadeira. Dentro, 424 quilos de cocaína e trinta armas, incluindo oito fuzis. Em 2015, o Denarc apreendeu 1,6 tonelada de cocaína num sítio em Santa Isabel, na Grande São Paulo. Mais droga enviada por Fuminho para o PCC. Em 2016, novo flagrante da Polícia Civil, agora na Zona Leste da capital: duas máquinas do traficante com capacidade para embalar 150 mil papelotes de cocaína por dia – o vídeo viralizou nas redes sociais.

O traficante era citado nos grampos da polícia como FM. “Ele é filho do home”, escreveu certa vez um integrante do PCC via aplicativo de celular em conversa captada pela PF. “Ele poe os cara da final [comando da facção] pa ir em cima d nois” / “Se ele pedi algo pa você q você nao conseguir fazer jaaaja vo-cê arruma pa kbca.”

É fato que Fuminho não costuma perdoar traições. Ao saber que um dos seus funcionários em São Paulo, Eduardo Ferreira da Silva, o Borel, era informante da polícia, ordenou sua morte. Na noite de 10 de fevereiro deste ano, Borel foi executado com 26 tiros dentro de um Mercedes Benz, no Tatuapé, Zona Leste da capital.

Além de violento, o parceiro de Marcola na Bolívia acumula lances ousados no currículo. Foi ele quem arquitetou um plano para resgatar o amigo da P2 de Presidente Venceslau, no início de 2014. A ideia era içar Marcola em um helicóptero blindado e transportá-lo até Loanda, no oeste do Paraná, de onde Fuminho o levaria de avião até o Paraguai. O plano só não foi adiante porque vazou para o Ministério Público por meio de escutas autorizadas pela Justiça.

 

A parceria de Marcola e Fuminho foi a engrenagem vital para a mudança de perfil do PCC. De um sindicato informal do cárcere, a facção em pouco tempo se tornou uma indústria poderosa, permanente fonte de lucros. Arroubos típicos de gangues deram lugar a uma mentalidade empresarial, com o emprego de técnicas de contabilidade e rígida divisão de tarefas. Marcola e seus aliados perceberam que seria melhor estabelecer uma espécie de “guerra fria” com o estado, em vez de provocar situações de confronto aberto. O mais traumático deles ocorreu em maio de 2006. Na ocasião, o governo paulista decidiu submeter a cúpula da facção ao RDD (o Regime Disciplinar Diferenciado, mais rígido), o que desencadeou uma série de ataques orquestrados e disseminou o pânico na população. Dezenas de presídios entraram em rebelião, ônibus foram queimados nas ruas de São Paulo, delegacias e postos da Polícia Militar alvejados, 59 policiais assassinados em poucos dias. A reação da polícia e de grupos paramilitares foi bárbara. Em dez dias, 505 civis foram executados em retaliação.

Desde então, o PCC só cresceu. Mas sua presença se tornou menos aterrorizante, ao menos aos olhos da população. Roubos e sequestros, crimes que envolviam muitas despesas e um risco alto, foram sendo substituídos pelo tráfico de maconha – adquirida no Paraguai a 100 reais o quilo e revendida na capital paulista por 700 reais –, e de cocaína – comprada na Bolívia a mil dólares o quilo e revendida em São Paulo a 6 mil, pelo menos.

Marcola desde o começo se cercou de aliados fiéis dentro da facção, todos detentos do sistema carcerário paulista, alguns deles conhecidos dos tempos de liberdade: Abel Pacheco de Andrade, o Boca de Ovo; Roberto Soriano, o Tiriça; Daniel Vinicius Canônico, o Cego; Júlio César Guedes de Moraes, o Julinho Carambola; Edilson Borges Nogueira, o Biroska; Marcos Paulo Nunes da Silva, o Vietnã; Fabiano Alves de Souza, o Paca; e Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue. Juntos, os oito formaram o comando do PCC, denominado “sintonia final geral”.

Abaixo da “final geral”, vêm as demais “sintonias”, como a “geral de rua”, que chefia os integrantes em liberdade; a dos “gravatas”, advogados cooptados pela facção (muitos servem de “pombos-correio”, transmitindo recados da cúpula); a da “cebola”, que cuida da cobrança da mensalidade dos filiados; a do “progresso”, responsável pela logística do narcotráfico – a denominação já indica que o grupo apostava nas drogas para progredir. Há ainda as “sintonias” do interior, distribuídas conforme os códigos de DDD: área 13 na Baixada Santista, 19 em Campinas, 16 em Ribeirão Preto e assim por diante. E as “sintonias” dos estados – o Gaeco paulista estima que atualmente a facção esteja presente em todos eles, um projeto de expansão já cantado em letra de funk de 2006:

O importante é que ninguém nos deterá nessa luta.
Revolução criminosa, cega, surda e muda.
Estamos caminhando em todas as penicas do Estado.
E nos estruturando do lado de fora, bem armados.
Por enquanto, nos consideramos em nível estadual.
A médio e longo prazo,
Organização nacional.

Foi esse cenário que o promotor Lincoln Gakiya encontrou quando a Procuradoria-Geral de Justiça o convidou para ingressar no núcleo regional do Gaeco em Presidente Prudente, em 2008. Para ele, era uma promoção natural na carreira, dado seu conhecimento acumulado sobre a facção. Mas o novo cargo não viria sem riscos – cinco anos antes, o PCC assassinara o juiz da Vara de Execuções Penais de Presidente Prudente, José Antonio Machado Dias, em retaliação ao seu perfil linha-dura.

Gakiya aceitou o convite e não arrefeceu. Segundo seus cálculos, já obteve a condenação de mais de mil integrantes do PCC. A reação não tardou, na forma de ameaças, veladas ou não, por bilhetes ou pela boca de advogados. Ele passou a andar de carro blindado e a ser acompanhado por seguranças 24 horas. Até 2016, prezava a discrição: não concedia entrevistas e raramente ia a eventos sociais. Mas, desde então, vem mudando de postura. “A cidade é relativamente pequena e eu já era conhecido no sistema carcerário. Percebi que a publicidade me daria proteção.”

Em outubro de 2013, 22 promotores do Gaeco, incluindo Gakiya, denunciaram à Justiça 175 integrantes da facção por formação de quadrilha. Na época, o faturamento anual do PCC era de 120 milhões de reais. Passados pouco mais de quatro anos, o faturamento cresceria 150%, para 300 milhões de reais, na estimativa do Ministério Público paulista. Uma das principais razões desse crescimento tem nome e sobrenome – ou melhor, apelido: Gegê do Mangue.

 

Nas imagens produzidas para o banco de dados da polícia, Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, aparece com os lábios retesados, arqueados para baixo, a postura do queixo levemente inclinada para cima, os olhos grandes, as sobrancelhas grossas, o cabelo já escasso acima da testa, cortado à escovinha – tudo converge para um semblante de poucos amigos.

Gegê, acrônimo de duas sílabas dos dois primeiros nomes – Ro(GE)rio (JE)remias –, incorporou o nome da favela do Mangue, nas franjas da Vila Madalena, bairro de classe média alta na Zona Oeste de São Paulo, para criar uma grife no submundo do crime. Não chegou a concluir o ensino fundamental e, ainda adolescente, dividia com o irmão mais velho a tarefa de abastecer de maconha e cocaína parte da boemia paulistana, assídua dos bares do bairro.

Quatro meses depois de completar 18 anos, em maio de 1995, ele conheceu o chão frio de uma cela, no 35º Distrito Policial em São Paulo. Foi quando soube do PCC e decidiu se batizar na facção por indicação de Carlos Magno Zito Alvarenga, o Nego Manga, “irmão” de prestígio na organização, assassinado tempos depois.

Gegê deixou a cadeia em 1998, mas voltou dois anos mais tarde, acusado de cometer um homicídio. Ascendeu no “partido” quando o amigo Marcola chegou ao poder, em 2002. No ano seguinte, teria o nome e o apelido estampados nos jornais, acusado de ser um dos mandantes do assassinato do juiz Machado Dias, em Presidente Prudente. Para a Justiça, apesar de estar preso, fora ele o autor de um bilhete manuscrito que chegou a Marcola, comunicando o êxito do crime: “A operação que faltava foi marcada e o paciente operado (risos).”

Depois de quase duas décadas atrás das grades e um périplo por catorze penitenciárias diferentes, Gegê saiu pela porta da frente da P2 de Presidente Venceslau na manhã do dia 1º de fevereiro de 2017. Entrou no carro do seu advogado e rumou para São Paulo. Na época, Gegê era réu em outra ação penal, acusado de ordenar a morte de dois rapazes na Zona Oeste de São Paulo, em 2004. Mas, graças a um habeas corpus de 2014 proferido pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, pôde aguardar o julgamento em liberdade. Havia audiência nesse processo no dia 20 de fevereiro, apenas vinte dias após sua soltura, mas os oficiais de Justiça não conseguiram encontrá-lo no endereço que ele informou ao deixar a P2 de Venceslau. A Justiça decretou novamente sua prisão preventiva – tarde demais. Passadas algumas semanas, Gegê seria condenado à revelia a 47 anos de detenção. Não estava mais no Brasil para cumprir a pena. Fugira para o Paraguai e em seguida para a Bolívia, onde se encontrou com Fuminho.

Gegê, considerado àquela altura o número 2 no PCC, levava uma ordem do chefe Marcola: impulsionar ainda mais os carregamentos de cocaína do país vizinho até o porto de Santos e de lá para o continente europeu. Era ele a pessoa mais capacitada a executar aquele “salve” por ser, de longe, o que mais entendia dos meandros do narcotráfico na “sintonia final geral”, formada essencialmente por assaltantes.

Em Santa Cruz de la Sierra, Gegê do Mangue uniu-se a Fuminho e a Fabiano Alves de Souza, o Paca, outro integrante da cúpula que aproveitou o indulto de Páscoa para fugir do regime semiaberto em 2011. Gegê e Paca estreitariam seus vínculos rapidamente.

A invasão da Bolívia pelo PCC vinha mudando de patamar desde 2007, quando integrantes do grupo adquiriram fazendas de gado nas regiões de Porto Esperidião, no Mato Grosso, e de San Matías, no país vizinho. O Ministério Público estima que existam atualmente pelo menos dezesseis integrantes da facção vivendo em solo boliviano. No Paraguai, tradicional produtor de maconha e corredor da cocaína produzida nos países andinos, vivem hoje ao menos 97 “irmãos”.

A ocupação do Paraguai pela facção chegou ao auge com o assassinato do traficante Jorge Rafaat Toumani, o “rei da fronteira”, em junho de 2016, nas ruas de Pedro Juan Caballero.

Além de cobrar propina das quadrilhas que operavam o narcotráfico na região, encarecendo o negócio, Rafaat era contra a presença do PCC na fronteira. A PF calcula que a facção brasileira investiu cerca de 500 mil reais no plano para eliminá-lo. Ele foi morto num cruzamento de Pedro Juan, quando estava dirigindo uma Hummer blindada, na noite de 15 de junho. Assim que parou num semáforo, seu carro foi fechado por uma caminhonete. Um atirador com uma metralhadora Browning M2, calibre 50, capaz de derrubar um helicóptero, estraçalhou o vidro da frente do blindado. Dezesseis tiros abriram rombos no tórax e no crânio de Rafaat. As fotos do cadáver chocariam Quentin Tarantino. A partir daquele dia, o PCC assumia o trono da fronteira paraguaia.

 

Até a chegada de Gegê à Bolívia, Fuminho não tinha deveres de exclusividade com a organização liderada por Marcola. Apesar de serem bons amigos – a ponto de Fuminho planejar o resgate do líder do PCC de Presidente Venceslau –, o primeiro fugiu do país no final dos anos 90,  quando a facção ainda estava confinada a São Paulo. Sua lealdade a Marcola não o impedia de ter os seus próprios negócios e de vender droga a quadrilhas menores. A polícia estima que, até o início deste ano, Fuminho (e Paca com ele) era responsável pelo envio de ao menos 2 toneladas de cocaína por mês para o Brasil.

Parte dessa droga ia para o porto de Santos. Lá, quem coordenava a exportação era um recifense radicado no Guarujá, de nome Wagner Ferreira da Silva e apelido Cabelo Duro. Réu em duas ações penais, por roubo e associação ao tráfico, Cabelo Duro não estava entre os alvos da Operação Brabo, descrita no início desta reportagem. Como Fuminho, tinha certa autonomia para fazer negócios menores, paralelos aos esquemas do PCC em Santos. Até fevereiro de 2017, tal situação era tolerada pela “sintonia final geral”. Assim Fuminho e Cabelo Duro enriqueceram rapidamente. O primeiro, segundo o Gaeco, é dono de fazendas na Bolívia e no Paraguai, parte das quais em sociedade com Marcola, enquanto o segundo possuía três helicópteros, todos em nome de laranjas, além de um piloto particular.

Gegê do Mangue desembarcou no país vizinho disposto a acabar com a política de tolerância com esquemas paralelos aos da facção. Impôs a todos os parceiros o monopólio para o PCC. Fuminho só deveria comercializar cocaína com a organização paulista; o mesmo valia para Cabelo Duro em Santos. Paca logo se adaptou ao novo regime e fechou com Gegê. Mas a mudança trouxe conflitos previsíveis. Fuminho – também ele insatisfeito – passou a receber reclamações do grupo de Cabelo Duro contra Gegê e Paca. Não bastasse o fato de atrapalhar o negócio alheio, Gegê e seu parceiro passaram a exibir sinais de riqueza. Paca comprou um Porsche para um dos filhos que morava na Inglaterra, no valor de 300 mil reais. Em julho de 2017, poucos meses após a chegada de Gegê à Bolívia, os dois passaram férias em Fortaleza com as respectivas famílias. Paca já havia feito o mesmo com a mulher e os filhos em janeiro daquele ano, quando o parceiro ainda estava preso.

Animada com o turismo no litoral cearense, no segundo semestre de 2017 a dupla investiu 10 milhões de reais na compra e na mobília de duas casas no condomínio Alphaville, em Aquiraz, na região metropolitana de Fortaleza. Para dissipar desconfianças, se apresentavam como empresários de jogadores de futebol.

Em dezembro, chegou o momento de usufruir o dinheiro investido nas casas. Para reunir suas famílias no Ceará sem correr riscos, Gegê e Paca tomaram vários cuidados. Andrea Soares Maciel, mulher de Gegê, deixou sua casa, no Alto da Lapa, em São Paulo, no mesmo dia em que Juliana Ponciano de Souza, mulher de Paca, deixou a sua na Barra da Tijuca, no Rio. Sempre com os celulares desligados, acompanhadas dos filhos, elas tomaram dois ônibus comerciais até São José dos Campos, no Vale do Paraíba. Juntas, embarcaram em um carro e viajaram 2 170 quilômetros até Santa Cruz de la Sierra. Da Bolívia, com os maridos e os filhos, voaram em um avião fretado até Fortaleza. Dias depois chegaram mais parentes, vindos de ônibus desde a capital paulista.

Nem a polícia nem o Ministério Público desconfiavam da aventura familiar de Gegê e Paca no Brasil. Os promotores do Gaeco mantinham vigilância constante sobre as duas mulheres, mas elas driblaram o cerco. Para o promotor Lincoln Gakiya, Andrea Maciel e Juliana Soares puseram em prática o que no jargão futebolístico se chama “nó tático”. “É bem provável que tenham tido o auxílio de policiais corruptos ou de ex-policiais com alto grau de conhecimento em ações de contrainteligência”, me disse Gakiya, sem entrar em mais detalhes.

 

Na tarde de 13 de fevereiro deste ano, terça-feira de Carnaval, um helicóptero pousou em Eusébio, região metropolitana de Fortaleza. Era uma das três aeronaves de Cabelo Duro, pilotada por seu funcionário Felipe Ramos Morais, rapaz de rosto redondo e bochechas salientes. Sujeito abusado, já fora detido quatro vezes por pilotar helicópteros em situação irregular e uma quinta por fazer voos rasantes na cidadezinha de Pompéu, interior de Minas Gerais. Também já havia sido preso por tráfico de drogas, no próprio Ceará. A missão de que fora encarregado envolvia a adrenalina que ele tanto apreciava. Dias antes, Cabelo Duro o incumbira de levar Gegê e Paca de volta à Bolívia. Para dar suporte ao piloto, o chefe e mais quatro integrantes do PCC de Santos viajaram de São Paulo no dia seguinte, em voo comercial.

Ao chegar à recepção do hotel onde se hospedaria com seus parceiros, na noite do dia 14, Quarta-Feira de Cinzas, Cabelo Duro parecia feliz – até arriscou alguns passos de samba no hall e caiu na risada, conforme imagens locais registradas. Pagou a hospedagem em dinheiro vivo e tirou da mochila um mapa, que abriu sobre o balcão. Para a polícia cearense, eram os detalhes da emboscada que estava por vir. Às nove da manhã, o grupo rumou de táxi até o hangar onde estava o helicóptero, em Eusébio. Morais os aguardava. Às 10h14 o helicóptero decolou com Morais e Cabelo Duro. Em local ainda desconhecido, apanharam Gegê e Paca. Minutos antes, o dois haviam deixado as mulheres, os filhos e os demais parentes em um ônibus fretado que seguiria para a região Sudeste. Era o fim das férias de dois meses no litoral cearense.

Às 10h20, Juliana de Souza, já no ônibus, recebeu no WhatsApp uma mensagem de Paca: “Oi amor, graças a Deus tudo na paz.” Cinco minutos depois, pelo mesmo aplicativo, Gegê enviou à mulher uma foto da paisagem vista do helicóptero. A imagem mostrava o mar, a praia e parte de uma área de mata fechada. Andrea Maciel estava cochilando e só viu a foto às 10h50. Escreveu de volta e notou os dois tracinhos acusando o recebimento. Às 18 horas, ela escreveu nova mensagem, perguntando se o marido estava bem. Mas dessa vez o recado não chegou ao aparelho do destinatário.

A foto que Gegê enviou à mulher fora tomada do alto da reserva indígena de Aquiraz, uma área de floresta com 1,7 mil hectares. Ao avistar uma clareira, Morais comunicou que pousaria para abastecer o helicóptero. Os passageiros aquiesceram. Assim que abriram a porta da aeronave, surgiram da mata quatro homens, cada um com uma pistola calibre 9 milímetros – uma delas seria apreendida pela polícia. Desarmados, Gegê e Paca eram presas fáceis. Foram assassinados com vários tiros. Os corpos foram arrastados para a mata, onde o grupo ainda tentou queimá-los, sem sucesso, antes de fugir no helicóptero. Fariam nova parada em outra mata, no Rio Grande do Norte, onde queimaram parcialmente, às pressas, documentos, celulares e a bagagem das vítimas.

 

Os corpos foram encontrados no dia seguinte, na tarde de sexta-feira, por um índio da reserva que apanhava pequenos frutos comestíveis na mata. Em poucas horas a notícia se espalhou pelas celas da P2 de Presidente Venceslau. Quem teria sido corajoso o bastante para matar o número 2 do PCC e seu braço direito? As pistas chegavam à polícia e ao Ministério Público por meio dos “salves”, mensagens escritas em papéis ou aplicativos de celular, utilizadas para a comunicação da facção. O primeiro deles, apreendido na P2 no dia 21 de fevereiro, dava a suposta versão de Cabelo Duro, informando que a ordem para os assassinatos partira de Fuminho, ao descobrir que a dupla estaria desviando dinheiro da facção. “Ontem, fomos chamados em umas ideias, aonde nosso irmão Cabelo Duro deixou ‘nois’ ciente que o Fuminho mandou matar o GG e o Paka. Inclusive, o irmão Cabelo Duro e mais alguns irmãos são prova que os irmãos estavam roubando.”

Cabelo Duro não teve muito tempo para sustentar essa versão. No início da última semana de fevereiro, a facção capturou dois aliados dele em São Paulo e os levou ao “tribunal do crime”. A estratégia, muito utilizada pelo PCC na resolução de seus conflitos, consiste em conduzir o réu (definido por eles) até um local isolado e submetê-lo ao julgamento dos líderes, quase sempre presos, em teleconferência por celular. A Polícia Civil diz ter certeza de que um deles, José Adnaldo Moura, o Nado, foi assassinado, enquanto o segundo, Cláudio Roberto Ferreira, o Galo Cego, só saiu com vida do local sob a condição de atrair Cabelo Duro para o “tribunal”.

Na noite de quinta-feira, 22 de fevereiro, exatamente uma semana após o assassinato de Gegê e Paca, Galo Cego marcou um encontro com Cabelo Duro na calçada do hotel Blue Tree, no Tatuapé, Zona Leste de São Paulo. As câmeras na fachada do hotel mostram quando Galo Cego entra na recepção – presume-se que havia acabado de conversar com Cabelo Duro na calçada, cena não alcançada pelas imagens. Segundos depois, surgem os primeiros sons de tiro, disparados por um homem encapuzado – dois disparos deixaram dois hóspedes feridos na recepção. Cabelo Duro aparece correndo em direção à porta do hotel, mas, ferido, cai próximo a um carro estacionado. O homem de capuz se aproxima, dispara com um fuzil contra a cabeça da vítima e foge correndo.

Nos dias posteriores ao assassinato, novos “salves” passaram a circular pelo sistema carcerário no extremo oeste paulista. Um deles dizia que, a partir do dia 27 daquele mês, estavam jurados de morte os algozes de Gegê e Paca ainda vivos, além de Fuminho. “Esses lixos, vermes da pior espécie, estão sendo decretados [à morte] pelo que fizeram com os nossos irs [irmãos] Gegê e Paca”, dizia um deles. Jurados de morte e com mandados de prisão decretados pela Justiça, o piloto Felipe Morais e demais participantes diretos ou indiretos do crime no Ceará – nove pessoas no total – estão foragidos. A polícia suspeita que pelo menos um deles também tenha sido assassinado. Com o mesmo helicóptero usado no crime, Morais rumou para o interior paulista – não se sabe se ele estava sozinho. Abandonou a aeronave em uma mata de Fernandópolis, já próximo à divisa com Mato Grosso do Sul, e desapareceu. No fechamento desta reportagem, a advo-gada e mãe do piloto negociava sua rendição à Polícia Civil do Ceará.

 

Fuminho e o grupo de Cabelo Duro estão em apuros no PCC, mas não são os únicos. A situação de Marcola se complicou dramaticamente. Um “salve” interceptado pelo Gaeco indicava que ele e os demais integrantes da “sintonia final geral” desaprovavam as mortes de Gegê e Paca. “Mataram nossos irmãos sem o conhecimento da sintonia final passando por cima por toda nossa disciplina e hierarquia do comando, fazendo calúnias absurdas para encobrir esse ato covarde.”

As tais calúnias seriam críticas veladas a Marcola por parte de “irmãos” ligados a Gegê. Para o promotor Lincoln Gakiya, tudo indica que foi a mando do líder do PCC que Fuminho armou o plano de eliminar Gegê e Paca: a dupla teria ordenado a morte de integrantes do PCC na Bolívia sem o aval da “sintonia final geral” e, mais grave, era acusada de desviar 30 milhões de reais da facção, o que explicaria tantos gastos no Ceará. “É muito pouco provável que Fuminho e Cabelo Duro planejassem o crime sem o aval da liderança do partido. Eles sabiam das consequências para um ato grave desses, considerando o poder de Gegê no grupo”, me disse o promotor no final de março, em Presidente Prudente.

O assassinato de Cabelo Duro e o cerco aos demais seriam, nessa linha, uma medida da cúpula para sustentar que Marcola não tinha conhecimento prévio da emboscada a Gegê e Paca, que teria sido traído. Acuado, Fuminho reagiu. No início de abril, o Gaeco de Mato Grosso do Sul interceptou um “salve” atribuído a ele:

“Irmãos, fui decretado pelo comando sem nem ser ouvido. Sô injustissado porque não posso ser cobrado pelas mortes do GG e do PAKA mediante que eu apenas cumpri ordens da Sintonia Final. […] A lei do comando vale p[ara] todos, independentemente se é grande ou pequeno, se praticou ato desviante, se foi provado mão na cumbuca, nada mais normal que eles serem decretados até mesmo como exemplo. […] Eu tenho provas que recebi as ordens escrita e confirmada para fazer a situação do GG e do PAKA. Tenho os bilhetes que o próprio pessoal do BOY [Marcola] passou pro meu pessoal. […] E é fácil saber que o único que poderia juntar os GG e o PAKA numa mesma situação não era eu, nem o cabelo duro, nem o maguila, nem ninguém, só o BOY mesmo. […] Meu decreto [de morte] tem que ser anulado, e se a ordem do GG e do PAKA era errada ou falsa, o decreto tem que ser em cima de quem passou a ordem irmão. É esse o papo. Giba/fuminho.”

 

Essa não é a primeira crise na cúpula do PCC. Em 2010, Marcos Paulo Nunes da Silva, o Vietnã, integrante da “sintonia final geral”, foi expulso da facção depois de ter ordenado a execução de um “irmão” para tomar os pontos de venda de drogas dele em São Paulo. Mas há crises e crises. Agora, pela primeira vez, a liderança de Marcola está em xeque. O conflito começou no segundo semestre de 2017, quando o líder do PCC estava isolado na Penitenciária de Presidente Bernardes. Edilson Borges Nogueira, o Biroska, um traficante de Diadema, na Grande São Paulo, preso havia doze anos, passou a criticar Marcola abertamente na P2 de Presidente Venceslau, acusando-o de ter atuado como informante da polícia. Na manhã do dia 5 de dezembro, uma terça-feira, Biroska foi assassinado a facadas por dois detentos durante o banho de sol.

O Gaeco e a Polícia Civil não têm dúvidas de que a ordem partiu de Marcola. “O Biroska passou a ser uma sombra incômoda para ele”, me contou Gakiya. Com as mortes de Gegê e Paca, ao cabo de dois meses a “sintonia final geral” perdia três dos seus oito integrantes. O advogado de Marcola, Marco Antonio Arantes de Paiva, nega envolvimento do líder da facção nas mortes de Gegê, Paca e Cabelo Duro.

“Toda grande organização criminosa do mundo passa por essa reciclagem de liderança. Chegou a hora do PCC”, afirma Gakiya. Com base na Convenção de Palermo, de 2000, quando a Organização das Nações Unidas estabeleceu critérios de classificação e de combate ao crime organizado, o promotor do Gaeco qualifica a facção paulista como pré-mafiosa. O PCC, segundo ele, preenche quase todos os requisitos que definem uma máfia: tem hierarquia bem definida, atuação transnacional, usa a violência para manter a disciplina entre seus membros e está infiltrado nas instituições do Estado (há dois anos, por exemplo, um membro do PCC foi acolhido no Condepe, o conselho de defesa dos direitos humanos de São Paulo). Só falta uma condição – a lavagem de dinheiro. “A facção tem dificuldade para manejar formas mais sofisticadas de ocultar e legalizar os ganhos do narcotráfico. Trabalha muito com dinheiro vivo e depende de máfias europeias, como a sérvia, para trazer o lucro da venda de cocaína da Europa de volta ao Brasil e à Bolívia, como ficou demonstrado na Operação Brabo.”

O promotor acredita que Gegê do Mangue mudaria essa situação. “Da cúpula do PCC, ele era o que mais tinha conhecimento do mercado mundial das drogas. Certamente tinha planos de abrir contas bancárias em paraísos fiscais para movimentar o dinheiro da facção.”

No final da palestra de Gakiya para a cúpula do poder em Brasília, naquele 21 de fevereiro de 2017, Temer lhe perguntou o que ele sugeria para tornar mais eficaz o combate ao poder do PCC. O promotor defendeu a necessidade de aumentar o tempo máximo de permanência do preso no Regime Disciplinar Diferenciado, o RDD, de um para três anos. A sugestão foi anexada a um projeto de lei com proposta semelhante que tramita no Congresso Nacional desde 2006, sem perspectiva de ir a votação em plenário.