O autor de Moby Dick achou as ilhas desoladoras. No local, encontrou apenas a vida réptil: "Nenhuma voz, nenhum mugido, nenhum uivo são ouvidos; o principal ruído de vida aqui é um silvo." FOTO: VANESSA BARBARA_2016
No zoológico de Darwin
Notas de uma tumultuada expedição a Galápagos
Vanessa Barbara | Edição 119, Agosto 2016
Certa vez, durante uma expedição de campo, Charles Darwin avistou dois besouros raros e os segurou, um em cada mão. “Depois vi um terceiro, também raro, que eu não ousaria perder, de forma que logo botei na boca o que estava na mão direita. Ele expeliu um fluido extremamente ácido que queimou minha língua e precisei cuspi-lo; perdi-o, assim como ao terceiro exemplar.” Em outra ocasião, uma vespa pousou em seu rosto e encostou a tromba num de seus olhos, aparentemente para sorver a umidade. Segundo a sra. Darwin, “ele se levantou muito silencioso do sofá e ficou olhando para si mesmo no espelho até a vespa se mover”.
Foi com esse espírito de meter besouros na boca e observar vespas passeando no próprio globo ocular – e inspirada por outros pioneiros como o escritor Herman Melville – que fiz as malas para uma expedição de dez dias em Galápagos, um conjunto de ilhas vulcânicas no oceano Pacífico, a cerca de 900 quilômetros da costa do Equador.
Museu vivo da biodiversidade e da evolução, o arquipélago possui inúmeras espécies endêmicas, ou seja, encontradas apenas nessa parte do mundo, como tartarugas-gigantes, iguanas híbridas, lagartos-de-lava e pinguins tropicais. Sendo as ilhas isoladas e destituídas de predadores significativos, os animais se caracterizam pela docilidade e interação com os seres humanos, já observadas por vários exploradores.
Nos dias em que estive no arquipélago, tomei uma cusparada de um leão-marinho, colidi no mar com uma tartaruga, encarei a morte diante de um quelônio gigantesco, fui esnobada por um pinguim e nadei com tubarões. Em Galápagos, animais cruzam seu caminho, metem o focinho na sua cara ou continuam a cuidar de seus afazeres como se nada estivesse acontecendo, “tão mansos e desprevenidos que nem sequer entendiam o que significavam pedras atiradas em sua direção”, conforme registrou Darwin em seu diário A Viagem do Beagle, no qual relata os cinco anos passados a bordo da embarcação.[1]
Antes dele, em 1825, o capitão da Marinha lorde Byron (primo do poeta) afirmou que as ilhas Galápagos eram povoadas pelas “criaturas vivas mais feias” que ele já tinha visto. “É como uma nova criação; pássaros e bestas não desviam do nosso caminho; pelicanos e leões-marinhos nos encaram como se não tivéssemos direito de interromper sua solidão; pequenos pássaros são tão mansos que sobem em nossos pés; tudo isso em meio a vulcões ardendo por todos os lados.”
Este é um diário da minha modesta, porém tumultuada, expedição.
5 DE MAIO DE 2016, QUINTA-FEIRA_Na hora do almoço, meu marido e eu saímos de São Paulo rumo à Cidade do Panamá. Um dos inconvenientes de visitar Galápagos é chegar lá – nada que se possa comparar aos meses de enjoo que Darwin sentiu a bordo do Beagle, mas ainda assim trata-se de um périplo cansativo em bancos de aeroportos e corredores espremidos da classe econômica.
Não há voos diretos entre o Brasil e o Equador, portanto as opções são via Cidade do Panamá, Lima ou Bogotá. Fomos pelo Panamá, mas tendo por destino Guayaquil, onde resolvemos passar a noite. Desembarcamos no mesmo horário de um voo proveniente de Miami, o que diz tudo quanto à eternidade que levamos para transpor a imigração e a alfândega, enquanto animados equatorianos tentavam passar com suas três malas gigantes e uma tevê de LED na fila NADA A DECLARAR.[2]
As paredes do quarto do hotel, um Holiday Inn inaugurado há menos de três anos, haviam rachado consideravelmente após um terremoto de magnitude 7,8 ocorrido dezenove dias antes, com epicentro a mais de 300 quilômetros da cidade. Avisos nos corredores comunicavam que, apesar dos danos visíveis, a estrutura do edifício não havia sido comprometida. Dezenas de casas foram totalmente destruídas e outras centenas tiveram danos parciais. Uma ponte ruiu. Em todo o país, a tragédia deixou mais de 600 mortos, 6 mil feridos e pelo menos 26 mil desabrigados. Nas semanas que se seguiram, o Equador sofreria inúmeros rebotes, alguns de magnitudes de até 6,8, mas desta vez com danos bem menores.
Aproveitamos o fim da noite para concluir a bibliografia sobre Galápagos, para onde partiríamos na manhã seguinte. Em seu diário, Darwin chamou a região de “pequeno mundo à parte” e se disse espantado “com o número de seus seres nativos e com sua variedade limitada”. Por serem ilhas vulcânicas que nunca estiveram anexadas ao continente, as terras foram sendo povoadas por espécies que chegaram muito tempo atrás, via aérea ou marítima. É por isso que o arquipélago foi tão importante para a teoria da evolução: ao observar a gradação e a diversidade de estruturas num pequeno e intimamente relacionado grupo de animais – digamos, os tentilhões –, ficou cada vez mais claro para Darwin que só podiam ter vindo de um mesmo ancestral. Nas ilhas, as espécies se modificam e se adaptam de acordo com as condições de sobrevivência no local – os bicos dos tentilhões, por exemplo, ora eram mais longos e pontudos (para comer sementes de cactos), ora mais curtos e robustos (para quebrar nozes).
A distância do arquipélago ao continente serviu para consolidar essas mudanças evolutivas e manter as espécies razoavelmente isoladas de novos e constantes fluxos migratórios. Especula-se que mamíferos de grande porte e outros predadores terrestres jamais sobreviveriam a tão longa viagem, portanto as espécies que conseguiram aportar a Galápagos, sobretudo de aves e répteis, puderam se desenvolver sem maiores sustos predatórios. Da mesma forma, a distância entre as ilhas propiciou leves, porém perceptíveis, variações regionais.
Logo após deixar Galápagos, ele escreveu: “Vendo cada monte coroado com sua cratera e os limites da maioria dos rios de lava ainda distintos, somos levados a crer que, num determinado período, geologicamente recente, o oceano estava espalhado por aqui. Assim, tanto no espaço como no tempo, parecemos nos aproximar desse grande fato – o mistério dos mistérios –, a primeira aparição de novos seres na Terra.”
6 DE MAIO, SEXTA-FEIRA_Antes de embarcar para Galápagos, ainda no aeroporto, o viajante deve pagar 20 dólares [3] por um cartão de trânsito. Para agilizar o processo, é possível fazer um pré-registro no site do governo. Depois, o expedicionário segue para o controle de bagagens, no qual uma máquina de raio X inspeciona sua mala em busca de plantas, sementes, frutas, verduras, terra e produtos de origem animal. Na chegada à ilha, o turista já quita a taxa de entrada do Parque Nacional Galápagos (100 dólares), em dinheiro. No ano passado, 224 mil pessoas visitaram o arquipélago.
O aeroporto principal fica na ilha Baltra, também chamada South Seymour, [4] onde não existe nada além do terminal. Os viajantes tomam um ônibus para o píer, de onde saem balsas que em dez minutos (e por 80 centavos) cruzam o canal de Itabaca até a ilha Santa Cruz. Uma vez do outro lado, é preciso pegar um ônibus até o terminal rodoviário ou seguir de táxi até o centro (Puerto Ayora), um trajeto de quarenta minutos. Fomos de táxi até o hotel, a meio caminho entre o canal e o centro, na chamada “parte alta” da ilha.
A chegada a Galápagos causa impacto. “Nada poderia ser menos convidativo do que esse primeiro relance”, conta Darwin em seu diário, referindo-se à ilha San Cristóbal (Chatham), uma observação que também se aplica às demais ilhas do arquipélago. “Um campo rachado de lava negra basáltica, lançado sobre ondulações pedregosas e repleto de grandes fissuras, estava recoberto por arbustos mirrados e queimados de sol, mostrando poucos sinais de vida. A superfície seca e crestada, aquecida pelo sol do meio-dia, deixava o ar abafado, opressivo como em um forno.” O solo de Galápagos parece marciano, com rochas por toda parte, um ou outro cacto quebrando a paisagem e algumas árvores pequenas e quase sem folhas resistindo ao mormaço. “Descobri o inferno na Terra”, exclamou em 1535 o bispo do Panamá, Tomás de Berlanga, acrescentando: “É como se Deus tivesse feito chover rochas.” Já a paisagem na parte alta é outra, com vegetação tropical e densas florestas de uma árvore endêmica ameaçada, a Scalesia pedunculata.
O hotel, pequeno, ficava a doze minutos de carro do Centro. Logo de cara fomos recebidos por uma tartaruga-gigante-de-galápagos (Chelonoidis nigra) [5] que passeava junto à varanda. Ela e suas colegas vivem nas dependências da propriedade, que se orgulha de ser a primeira produtora de tortoise friendly coffee do mundo, ou seja, uma plantação sustentável de café planejada para não atrapalhar as rotas de migração das tartarugas-gigantes. O animal passou e foi cuidar de seus afazeres. Pouco depois, enquanto esperávamos um táxi, revimos esse mesmo exemplar, doravante referido como Afonso, e pudemos apreciá-lo mais de perto. Tratava-se de uma criatura de cerca de 1 metro de comprimento, com um par de olhos quase humanos, 130 quilos e 60 anos de idade. [6]
O passeio da tarde não fugiu do tema: na Estación Científica Charles Darwin, vimos dezenas de tartarugas-gigantes se alimentando preguiçosamente e dormindo com as patas traseiras espichadas ao sol. Elas possuem o pescoço bastante alongado em comparação ao de Afonso, o que nos fez acreditar que fossem subespécies distintas – provavelmente nosso vizinho de quarto pertence à Chelonoidis nigra porteri, ao passo que algumas das residentes na estação são da subespécie Chelonoidis nigra hoodensis. O novo ambiente fez com que esses jabutis desenvolvessem membros longos, pescoços compridos e aberturas arqueadas na carapaça. Apenas dez de quinze subespécies de tartarugas-gigantes sobrevivem, uma por ilha (Santa Cruz, San Cristóbal, Santiago, Pinzón e Española), e uma para cada um dos principais vulcões da ilha Isabela (Wolf, Darwin, Alcedo, Sierra Negra e Cerro Azul). Uma décima primeira subespécie foi extinta em 2012, com a morte do Solitário George, [7] o último exemplar de sua estirpe.
Ainda no centro de pesquisa, vimos duas subespécies de iguanas terrestres endêmicas (uma delas é a Conolophus pallidus), que me inspiraram uma observação da qual Darwin sentiria orgulho: a iguana terrestre parece um cachorro disfarçado de iguana numa fantasia de péssima qualidade. No caminho para a Playa de la Estación, vizinha ao centro de pesquisa, topamos com uma iguana marinha (Amblyrhynchus cristatus) botando ovos no meio da estrada, nas proximidades de uma bandeirinha que sinalizava um ninho já existente.
Quando o dia já estava terminando e parecia não trazer mais novidades, fomos até o mercado de peixes de Puerto Ayora, onde assistimos a um bando de pelicanos-pardos (Pelecanus occidentalis) e leões-marinhos (Zalophus wollebaeki) implorando aos pescadores por um petisco, totalmente alheios ao agrupamento de turistas eslavos ao redor deles. Foi meu primeiro contato com um leão-marinho subindo uma escada.
Mais tarde, deparamos com outro desses animais cochilando num banco perto do píer, uma cena que se repetiria à exaustão ao longo da viagem. Em Galápagos, é normal topar com leões-marinhos dormindo de pança para o alto em qualquer tipo de superfície disponível: em cima de botes, escadas, penhascos ou espalhados pelo cais. Um deles estava descansando numa rocha tão remota e improvável que só pode ter sido levado para lá durante a maré alta. Desta vez, quando chegamos perto, o animal cuspiu na nossa cara, sem motivo aparente. [8] Pouco depois ele se levantou ao ouvir o chamado de um colega que estava nas cercanias; desceu do banco, deu um bocejo, espirrou e saltou para a água, nadando rumo ao que parecia um ótimo rolê.
7 DE MAIO, SÁBADO_Às oito da manhã, embarcamos no Invicta II rumo à ilha Floreana (Charles), uma das mais impressionantes de todo o arquipélago. Após uma viagem de duas horas, encontramos mais uma paisagem árida de arbustos mirrados e dezenas de leões-marinhos dormindo. Subimos numa chiva – ônibus de transporte rural – rumo à parte alta da ilha, onde a vegetação foi se adensando, o clima ficou mais ameno e dezenas de tartarugas-gigantes vieram nos cumprimentar.
O local se chama Asilo de la Paz e é onde se localiza uma das poucas fontes de água doce de Galápagos, que abastece a população local até hoje, além da engenhosa Cueva de los Piratas, antigo reduto construído na pedra por piratas espanhóis. Nessa área ocorreu um dos casos mais bizarros da história do arquipélago.
Em 1929, o médico alemão Friedrich Ritter abandonou a família e a carreira para viver em Floreana com a amante e ex-paciente Dore Strauch, que sofria de esclerose múltipla. Ambos ocuparam uma área no oeste da ilha, onde estabeleceram plantações e criaram pequenos animais. Três anos depois, em setembro de 1932, vieram novos colonos, também alemães: o casal Heinz e Margret Wittmer, junto com o filho Harry, de 14 anos, do primeiro casamento de Heinz. A família se instalou nas cavernas dos piratas, e em poucos meses Margret, que estava grávida, teve um bebê. Em outubro, chegaram mais moradores: a autointitulada baronesa austríaca Eloise de Wagner-Bousquet com seus dois jovens amantes alemães, Rudolf Lorenz e Robert Philippson, além de um trabalhador equatoriano, Manuel Valdivieso. A ideia do trio era abrir um hotel de luxo.
Em pouco tempo a baronesa proclamou-se imperatriz do local, confiscou presentes enviados pelos turistas e espalhou notícias sensacionalistas pela imprensa internacional, até que conseguiu do governador um pedaço de terra muito maior do que o das outras duas famílias. Tempos depois, o empregado equatoriano fugiu e Lorenz começou a apanhar da amante, que agora preferia Philippson.
Veio um período de seca e as coisas pioraram ainda mais, até que em março de 1934 a baronesa e Philippson desapareceram sem deixar rastros. Lorenz é considerado até hoje o principal suspeito do crime, que talvez tenha sido acobertado por Heinz. Os corpos nunca foram encontrados. Quatro meses depois, numa sexta-feira 13, o barco que levava Lorenz de Santa Cruz a San Cristóbal naufragou. Seu corpo mumificado foi encontrado numa praia da ilha Marchena (Bindloe), totalmente fora da rota entre as duas ilhas. O naufrágio tampouco foi bem explicado – provavelmente o barco ficou à deriva e acabou sendo levado pelas correntes.
Em novembro, Ritter, que era vegetariano, morreu por intoxicação alimentar após comer frango estragado. As suspeitas logo recaíram em Dore Strauch, que abandonou a ilha em dezembro e voltou à Alemanha. Os sumiços e mortes de Floreana nunca foram elucidados.
Mas nada disso é mencionado durante o passeio ao Asilo de la Paz, um insólito curral onde vivem cerca de 100 tartarugas-gigantes em torno de piscinas rasas de concreto. Muitas delas tinham o casco muito alto e redondo, em forma de domo, como capacetes de soldados, e os semblantes simpáticos de velhinhas indo às compras. Pudemos assistir a alguns machos brigando, procurando medir qual era o pescoço mais comprido, e um pobre jabuti tentando copular com grande esforço, porém sem sucesso, enquanto soltava um som gutural vindo da Pré-História.
Em seu diário, Darwin relata ter encontrado duas tartarugas-gigantes de cerca de 90 quilos cada: “Uma estava comendo um pedaço de cacto e, quando me aproximei, olhou bem para mim e foi embora lentamente; a outra soltou um silvo profundo e encolheu a cabeça.” Trata-se de um movimento comum desses animais ao se sentirem ameaçados. Darwin se divertia em assustá-los só para vê-los soltar um silvo alto, encolher as patas e a cabeça, e desabar no chão como se estivessem mortos. “Esses enormes répteis, cercados pela lava negra, pelos arbustos secos e pelos enormes cactos, me pareceram animais antediluvianos.”
Ao desembarcar na ilha San Cristóbal, o cientista se perguntou que tipo de criatura podia viajar de forma tão metódica ao longo de trilhas tão bem demarcadas. Aos poucos, notou que as tartarugas-gigantes gostam de beber muita água e de chafurdar na lama. Como as nascentes em geral ficam no centro das ilhas, a uma altura considerável, e os animais vivem nas partes mais baixas, eles são obrigados a viajar longas distâncias (perfaziam até doze quilômetros em dois ou três dias) para matar a sede.
Na época de Darwin, havia 200 ou 300 habitantes em Floreana – sobretudo negros banidos por crimes políticos do Equador – que subsistiam da carne de tartaruga, o que reduziu em muito o número desses animais. Hoje a ilha possui 100 habitantes e cerca de 100 tartarugas-gigantes, ou seja, um jabuti per capita, um dos índices de desenvolvimento mais atraentes que já vi.
Antes de partir, fizemos um mergulho de snorkel nas geladas águas de Playa Negra e vimos dezenas de tartarugas-verdes (Chelonia mydas). Lindas, sérias e gulosas, disputavam com peixinhos pretos as algas do fundo do mar. Muitas tinham musgo no casco, algumas traziam anilhas de identificação nas patas traseiras e a maior delas media duas ou três vezes o meu tamanho. Enquanto eu a observava, fui levada por uma onda e acabei colidindo com outra tartaruga enorme – nenhuma de nós pediu desculpas.
8 DE MAIO, DOMINGO_Embarcamos no Queen Karen para um passeio à ilha Plaza Sur (South Plaza). E aconteceu algo verdadeiramente notável – peço desculpas aos senhores que sentem nojinho, mas mergulhar menstruada ao lado de tubarões-tigre é digno de honrarias. Duvido que Darwin tenha passado por isso. [9]
Não há evidências científicas de que os tubarões sejam particularmente atraídos por sangue de menstruação, ainda que sintam o odor, da mesma forma que percebem urina e suor. Seres humanos não constam entre suas presas preferidas, e é mais fácil ser atacado por um cão nas ruas do Mandaqui ou tropeçar dentro de um ônibus em carreira desabalada pela avenida Zumkeller do que ser mordido por um deles. De fato, o guia garantiu que não havia perigo em mergulhar, bastava se fingir de morto e não fazer nenhum movimento brusco. Ainda assim, quando se está a poucos metros de um tubarão-tigre (Galeocerdo cuvier), uma das espécies mais perigosas do mundo, e quando se percebe pelo canto da máscara que há mais alguns da mesma laia nadando de forma suspeita a seu redor, é difícil não lembrar de Robert Shaw sendo mastigado por um enorme tubarão-branco, que também comeu boa parte do barco no filme do Spielberg, além de uma mocinha e um pobre pescador que não ganhou o suficiente pela figuração.
Apenas continuei respirando em silêncio, imóvel, e esperei que o resto do grupo não me deixasse lá para morrer. Por sorte, os animais não se interessaram pelo material e se afastaram, me deixando livre para implorar ao guia que não fosse mais procurar tubarões. Ele não me ouviu e ainda vimos de perto exemplares do tubarão galha-branca oceânico (Carcharhinus longimanus), abundante no arquipélago.
Naquela mesma noite, descobri no Lonely Planet que nos últimos anos houve alguns ataques de tubarão em Galápagos, inclusive um incidente registrado num canal próximo às ilhas Plaza, em 2004. Era exatamente onde estávamos. Não sei dizer se houve sangue menstrual envolvido no episódio, mas, na dúvida, resolvi que espalharia que por pouco não morri e que os tubarões até chegaram a se preparar para dar o bote, mas fui salva por um bando de tartarugas-verdes.
Depois do almoço saímos para explorar Plaza Sur, empreitada pouco extraordinária, já que a ilha tem uma área de 0,13 quilômetro e altitude máxima de 23 metros. Trata-se de um pedaço de rocha repleto de cactos (Opuntia echios echios), pedras esbranquiçadas, tufos avermelhados de grama, arbustos esturricados e uma tonelada de leões-marinhos dedicando-se a sua atividade preferida: dormir. Também vimos dezenas de iguanas terrestres (Conolophus subcristatus) abrigando-se na sombra e iguanas marinhas (Amblyrhynchus cristatus) relaxando em rochas próximas ao mar.
As espécies marinhas são menores, escuras e vivem ao sol. “São criaturas horrendas, de uma cor preta suja, estúpidas e lerdas em seus movimentos”, descreveu Darwin. Na água, elas nadam com rapidez e desenvoltura, executando um movimento serpenteante do corpo e da cauda que as faz parecer pequenos e vorazes Godzillas. Possuem glândulas que filtram o excesso de sal ingerido, mais tarde expelido por espirros súbitos – vê-se a meleca branca endurecida no rosto delas. Suas garras compridas se adaptaram para a escalação da superfície rochosa de lava.
Já as iguanas terrestres são mais claras, e os machos podem apresentar uma cor amarela muito viva nas costas. “Como seus irmãos marinhos, são animais feios”, escreveu Darwin, acrescentando que, vistos de baixo, possuem uma “aparência particularmente estúpida.” Barriga, patas dianteiras e cabeça (exceto a coroa, em geral branca) são de um laranja sujo e amarelado; as costas, vermelho-amarronzadas. Quando não se sentem ameaçados, caminham sem pressa se arrastando pelo chão. O cientista inglês passou um longo tempo observando uma iguana terrestre cavando uma toca até que metade de seu corpo estivesse enterrado, então ele se aproximou e a levantou pela cauda. O animal “ficou imensamente espantado, e logo ergueu a cabeça para ver qual era o problema; então ficou olhando para mim como se quisesse dizer: ‘Por que você puxou a minha cauda?’”
No topo de um cacto, tivemos um vislumbre de um dos poucos exemplares de iguana híbrida que existem no mundo – cruzamento de iguana marinha macho e iguana terrestre fêmea, duas espécies que coabitam a ilha Plaza Sur. O réptil, negro com o pescoço esbranquiçado e algumas faixas claras pelo corpo, almoçava as folhas mais altas do cacto. Em 2003, contabilizaram-se apenas vinte desses animais.
Também visitamos um canto onde leões-marinhos machos se recuperavam após perder território. O local, com forte cheiro de urina e fezes, abrigava animais que se alimentavam e descansavam para depois voltar ao outro lado da ilha e tentar retomar a liderança. Ouvimos o chamado de jovens leões-marinhos exigindo a presença de suas mães, e acompanhamos uma fêmea amamentando à sombra de um cacto. São animais muito parecidos com cachorros, em aparência e estado de espírito – alguns passam o dia brincando na água, outros se mostram extremamente curiosos. Há relatos de seres humanos mordidos por leões-marinhos, inclusive em Galápagos. [10]
Por último, conhecemos os escandalosos caranguejos-vermelhos-de-galápagos ou aratus-vermelhos (Grapsus grapsus), e a imponente fragata ou tesourão (Fregata magnificens), que tem o bico curvo para roubar o que outras aves caçaram, daí seu apelido de pirata-do-mar. Simpatizei particularmente com a gaivota-de-cauda-bifurcada (Crea-grus furcatus), que chama a atenção pelos olhos e patas vermelhas, sendo a única gaivota do mundo com hábitos noturnos. Ela possui nas costas manchas brancas que, parecidas com guano, ajudam na camuflagem. São animais que se disfarçam de cocô.
9 DE MAIO, SEGUNDA-FEIRA_Hoje decidimos dormir até tarde e visitar a praia de Tortuga Bay, a 2,5 quilômetros de caminhada de Puerto Ayora. No caminho, vimos exemplares de sabiás-de-galápagos (Mimus parvulus), aves neuróticas que andam em bando, com um ar de quem esqueceu a chave de casa. Já os famosos tentilhões (em inglês, finches, e em espanhol, pinzones) também estão por toda parte.
A comida criolla não é muito diferente da nossa. Uma entrada típica é o encebollado de pescado (sopa de peixe com cebola), a que se segue um prato de arroz com menestra (feijão ou lentilha) acompanhado de encocado de pescado (peixe grelhado com leite de coco), ceviches, tortillas ou bolón de verde (uma bola feita de massa de banana-da-terra verde assada ou frita, misturada com carne ou queijo). Como acompanhamento, patacones (fatias de banana fritas, prensadas e fritas novamente). De sobremesa, bolo de banana, torta de chocolate e café. Há muito churrasquinho de rua. Em Puerto Ayora, vimos uma moça defumando carnes com a ajuda de um enorme e antigo secador de cabelo.
À noite, enquanto tomava sorvete, sofri um ataque vil de um lagarto-de-lava (Microlophus sp), que subiu pela minha perna, me encarou e deu um salto quando me levantei, assustada. A estranha criatura media cerca de 5 centímetros. A morte está à espreita o tempo todo em Galápagos.
10 DE MAIO, TERÇA-FEIRA_No Centro, pegamos um táxi aquático (80 centavos) para el otro lado, onde encontramos algumas das paisagens mais bonitas da ilha Santa Cruz. Após cerca de quinze minutos de trilha, cruzando por lagoas de água salgada e uma floresta de cactos, chegamos a Las Grietas – uma faixa de água cor de esmeralda ladeada por dois paredões de rocha vulcânica, com 10 metros de profundidade, 7 de largura e 100 de comprimento. A água é gelada, cristalina e um pouco salgada. A paisagem é impressionante.
Depois fomos até a Playa de los Alemanes, onde também é possível nadar no raso e fazer snorkel com arraias e peixes. Passamos algumas horas lendo e observando passarinhos. Os mais intelectuais pousavam bem ao nosso lado e ficavam tentando espiar a capa dos livros. Outros vinham em dupla e piavam baixinho para não incomodar. Quando a fome bateu, voltamos. Cabe aqui observar que na praça principal do vilarejo foi erigida uma estátua em homenagem às tartarugas-gigantes (que eu também tive vontade de trazer comigo).
Uma das curiosidades do Equador é que a alvorada e o crepúsculo são muito rápidos, já que o sol nasce e se põe quase que de forma perpendicular ao horizonte, levando poucos minutos para executar o trabalho completo de surgir ou sumir. Assim que escurece, quase sempre é possível se dedicar à observação do céu. Podem-se identificar, ao mesmo tempo e no mesmo firmamento, as constelações Ursa Major (típica do hemisfério Norte) e Crux (o Cruzeiro do Sul, típica do hemisfério Sul), cada qual em seu canto da abóbada. Se passássemos uma noite completa observando o céu, veríamos uma quantidade obscena de constelações, sem distinção de estações do ano.
11 DE MAIO, QUARTA_Embarcamos logo cedo no Contagious para as ilhas Pinzón (Duncan). Como a água estava gelada, em torno de 20 graus, aluguei um traje de mergulho, que se revelou inútil para me aquecer.
Em nosso ponto de mergulho, a Bahía Pingüino, observamos uma porção de arraias, as chamadas stingrays (Myliobatoidei sp.), além de uma espécie enorme de cavalo-marinho-do-pacífico (Hippocampus ingens) e uma tartaruga-verde. E finalmente ficamos cara a cara com um aristocrático pinguim-de-galápagos (Spheniscus mendiculus), única espécie ao norte da linha do Equador, que sobrevive graças às temperaturas das correntes de Humboldt (vinda da Antártida por meio da costa do Chile e do Peru, é uma água rica em nutrientes, com temperatura média de 15 graus) e de Cromwell (que escoa do oeste para o leste, vinda do oceano Pacífico, com águas bastante profundas a uma temperatura média de 13 graus). Ambas se encontram na região da plataforma submarina do arquipélago, provocando a ressurgência de águas profundas, mais frias e carregadas de nutrientes, que alimentam o ecossistema de Galápagos.
As ilhas estão numa posição privilegiada, justamente na intersecção entre pelo menos três grandes correntes oceânicas. Se levarmos em conta essa mistura de correntes ao sol equatorial que reina na superfície, podemos entender a biodiversidade única das ilhas, fora da água ou dentro dela. Também se explica o clima relativamente temperado do arquipélago, a despeito de sua localização equatorial.
A cada quatro ou sete anos, porém, ocorre o fenômeno El Niño, quando os ventos sopram com menos força e não conseguem impulsionar a corrente de Humboldt, resultando em estagnação das águas quentes da corrente do Panamá. Sem os nutrientes necessários, a cadeia alimentar é quebrada em um ponto crítico, o equilíbrio ambiental se perde e inúmeros animais marinhos morrem de fome. Entre as décadas de 80 e 90, o El Niño provocou a redução dramática da população de biguás-de-galápagos (Phalacrocorax harrisi), pássaros endêmicos que têm asas mas não voam, além de lobos-marinhos, iguanas e pinguins-de-galápagos. O fenômeno também dizimou quase inteiramente os recifes de corais, e costuma provocar alterações inesperadas na proporção de gênero das tartarugas-gigantes. Por outro lado, chove muito e a vegetação se desenvolve com vigor, a ponto de aumentar de forma drástica a população de flamingos (Phoenicopterus ruber) e tentilhões.
Depois do mergulho, almoçamos no barco e demos uma volta pelas ilhas Daphne, onde os biólogos Peter e Rosemary Grant passaram quase quatro décadas estudando o comportamento dos tentilhões, um trabalho que resultou no livro The Beak of the Finch [O Bico do Tentilhão], de Jonathan Weiner, ganhador do prêmio Pulitzer de não ficção de 1995. Além dessas aves, é possível observar uma variedade de espécies, como pelicanos-pardos, fragatas, andorinhas-do-sul (Progne modesta) e rabos-de-palha-de-bico-vermelho (Phaethon aethereus). O guia nos explicou que em Daphne os cactos são mais baixos porque não há predadores como tartarugas e iguanas.
De volta ao hotel, fui dar uma volta pela plantação de café com Rusty, o cachorro da propriedade, um vira-lata gordo e carinhoso, quando de repente me deparei com a morte. Na trilha de terra batida, vinha em nossa direção uma tartaruga-gigante de aproximadamente 150 quilos e cerca de 120 anos de idade. Ela parou no meio do caminho e deixou seu pesado plastrão cair por terra. Decidi esperá-la. Naquele fim de tarde, passei vinte minutos sentada no chão, imóvel, olhando para o tartarugão – doravante chamado Alfredo –, até ele criar coragem e vir até mim. A criatura dinossáurica se aproximou com a respiração muito pesada, à la Darth Vader, cheirou meu dedão, me encarou bem e eu quase fiz xixi na calça. Ele arrancaria facilmente minha mão, bem como boa parte do meu rosto, se quisesse. Não quis. Pensei em dinossauros comendo jipes e decapitando executivos na privada.
É estranho confessar que morri de medo de um quelônio que não tem nenhum histórico de ataques a seres humanos – a despeito de um vídeo sangrento no YouTube (Dangerous Tortoise Attack) e da famosa perseguição ao repórter da National Geographic, Paul Rose, que interrompeu um acasalamento nas ilhas Seychelles e pagou o preço pela petulância. [11] Ainda assim, estar a centímetros de uma criatura ancestral muito séria cuja cabeça é quase do tamanho da sua – e que de repente vai esticando o pescoço e fica mais alta que você sentada no chão – produz uma mistura de terror e arrebatamento, ainda mais quando o quelônio traz um raminho seco no canto da boca, claro sinal do que restou de sua última presa. Nesse ínterim, Rusty já tinha ido embora e eu nem podia oferecê-lo em sacrifício em meu lugar.
Ficamos ambos ressabiados, Alfredo e eu, até que ele enfim decidiu continuar seu caminho rumo a um aprazível lago de lama. Enquanto passava por mim, usou o casco para me empurrar ainda mais para a beirada da trilha.
12 DE MAIO, QUINTA-FEIRA_Hoje fizemos um passeio a Los Gemelos, duas crateras largas e profundas na parte alta da ilha, forradas de vegetação e cercadas por uma selva quase tropical de árvores de guayabillo (Psidium galapageium) e Scalesia pedunculata. As árvores, por sua vez, estão cobertas de uma planta hepática cor de café que muitos confundem com musgo, a Bryopteris liebmaniana. Um passarinho vermelho chamado de príncipe (Pyrocephalus rubinus) pode ser encontrado nessa região, bem como o papa-moscas-de-galápagos (Myiarchus magnirostris) e a coruja-dos-banhados (Asio flammeus). Oito espécies de tentilhões vivem na área, incluindo os tentilhões-pica-paus (Camarhynchus pallidus), que usam um graveto como ferramenta para cavar e apanhar larvas e pequenos insetos.
Em sua visita, Darwin surpreendeu-se com a ínfima quantidade de insetos. Queixou-se de não ter conseguido apanhar nenhum mais robusto ou de cores vivas – as flores e os pássaros também costumam apresentar coloração mais pálida e discreta. Fui picada por pernilongos pouquíssimas vezes, e só tive problemas com formigas durante as sessões de observação do céu.
Depois de conhecer as crateras, fomos passear pelo rancho El Chato, uma reserva onde vivem centenas de tartarugas-gigantes, algumas tomando banho em poças de lama e outras secando ao sol seus cascos encardidos. Estima-se que, durante os séculos XVII a XIX, cerca de 100 mil tartarugas-gigantes foram exterminadas em Galápagos, restando apenas uns 15 mil exemplares. Os sobreviventes levam uma vida sem complicações, alimentando-se de grama, folhas, cactos e frutas, e cochilando cerca de dezesseis horas por dia. Seu metabolismo lento e o grande espaço para armazenamento de água no corpo lhes permite sobreviver por mais de seis meses sem comer ou beber. Elas podem pesar até 400 quilos e vivem em média 100 anos, mas há registros de indivíduos que alcançaram os 170. Têm as patas curtas e gordas de elefantes e um pescoço bastante enrugado. Imaginar uma dessas boiando ao longo dos mil quilômetros de oceano que separam o arquipélago do continente é perturbador.
A origem do nome Galápagos está ligada ao formato da carapaça de alguns desses jabutis, que se assemelha à sela espanhola, ou galápago. Os animais que possuem esse tipo de cobertura são os que vivem em regiões mais secas, como as do Asilo de la Paz, na ilha Floreana – eles têm uma nítida concavidade na parte dianteira da carapaça que lhes permite espichar o pescoço para alcançar os cactos e outras plantas mais altas. Já os que habitam regiões mais úmidas, como as tartarugas do rancho El Chato, apresentam a carapaça redonda em forma de domo, o que as impossibilita de esticar o pescoço. Alimentam-se apenas de grama, mas também estão menos vulneráveis aos ataques de predadores, pois conseguem se encolher por completo dentro do casco.
Após o jantar em Puerto Ayora, encontramos inúmeros papéis colados nos postes do Centro, anunciando que alguém perdera um cachorro de pelúcia – um perrito de peluche llamado Guauguau, de gran valor sentimental.
13 DE MAIO, SEXTA-FEIRA_Deixamos a ilha Santa Cruz e pegamos a lancha pública Neptuno 1 até a ilha Isabela, a maior e mais jovem de todo o arquipélago. O que era para ser um percurso de duas horas se arrastou por quatro horas e meia: no caminho o barco bateu num tubarão, o motor pifou e precisamos ser resgatados por outra embarcação.
A ilha Isabela (Albermarle) tem 120 quilômetros de extensão e é maior do que todas as outras juntas. Apesar da dimensão, menos de 2 mil pessoas vivem na área, quase todas no vilarejo de Puerto Villamil, no sul. Formada pela junção de seis vulcões, Isabela foi descrita por Darwin como uma ilha coberta por rios de lava negra que, tendo escorrido pelas bordas de enormes caldeiras ou jorrado por orifícios menores de suas paredes, passaram a cobrir quilômetros de costa.
À tarde visitamos Las Tintoreras, um agrupamento de pequenas ilhas próximas a Puerto Villamil. Trata-se de uma exuberante baía com mar tranquilo de cor turquesa, conectada a uma fenda de água rasa e cristalina frequentada por dezenas de tubarões galha-branca. Num mergulho de snorkel, vimos leões-marinhos, arraias e estrelas-do-mar de várias cores. Inúmeros pinguins tomavam sol sobre as rochas – todos de cabeça erguida, como se fossem bons demais para aquele ambientezinho desagradável. Posso jurar que um deles me esnobou quando passei.
Também observamos de perto os famosos patolas-de-pés-azuis (Sula nebouxii), uma ave pelecaniforme de aparência cômica cuja dancinha de acasalamento envolve a abertura das asas longas e a exibição de suas patas azuis. A coloração vem de pigmentos carotenoides presentes na dieta de peixes, antioxidantes que têm papel importante no sistema imunológico. Patas azuis, portanto, indicam boa saúde e imunidade alta, uma característica perpetuada pela seleção sexual. Por isso os machos exibem tão enfaticamente seus pés para as fêmeas, levantando-os um após o outro.
Nosso hotel, que ficava de frente para uma travessia de iguanas e para a Playa de Isabela, tinha um quarto nababesco e um banheiro enorme. Devido ao racionamento de água na ilha, chuveiros e torneiras possuíam um sistema de autodesligamento após sete segundos de uso – para exercer sua higiene pessoal, o hóspede precisava ficar pressionando sem parar o botão com o cotovelo. Não era permitido aparentar pobreza e pendurar roupas molhadas na varanda. Isso sempre me aborrece.
14 DE MAIO, SÁBADO_Em nosso penúltimo dia, fizemos uma caminhada de 16 quilômetros, ida e volta, até o vulcão Sierra Negra, que se eleva à altitude de 1 124 metro e tem uma das maiores crateras do mundo, e ao vulcão Chico, seu vizinho mais modesto. Caminhar por cinco horas debaixo do sol equatoriano do meio-dia não teria sido tão exaustivo se o meu tênis não tivesse partido ao meio (os dois pés) devido à temperatura do solo, o que me obrigou a percorrer pelo menos a metade do caminho calçando um par de Havaianas. Em minha defesa, o tênis do guia também se despedaçou e foi preciso improvisar uma gambiarra com um barbante. Havia muitas rochas difíceis de escalar de chinelos, mas ainda assim não caí nenhuma vez, feito bastante digno para a minha pessoa. Fiquei com terra grudada até os joelhos, como se estivesse de meia marrom.
A paisagem que vimos durante o trajeto através de um campo meio marciano de lavas e rochas foi muito bem descrita pelo escritor Herman Melville, que visitou Galápagos em 1841. Referindo-se ao arquipélago em geral, ele pediu ao leitor que vislumbrasse pilhas de cinzas largadas aqui e ali num terreno baldio de subúrbio. “Imagine algumas delas como montanhas e o terreno baldio como o oceano, e você terá uma boa ideia do aspecto geral das Encantadas. [12] É mais um grupo de vulcões extintos do que de ilhas, com uma aparência do que o mundo seria após um incêndio criminoso”, escreveu.
O autor de Moby Dick achou as ilhas desoladoras. No local, encontrou apenas a vida réptil, o que para ele era sinal de tristeza e, para mim, de alegria histérica. “Nenhuma voz, nenhum mugido, nenhum uivo são ouvidos; o principal ruído de vida aqui é um silvo.” Em suma, ele não parece ter se divertido; talvez tenha levado uma cusparada de leão-marinho ou algum pinguim o tenha esnobado, o que é sempre um golpe para a autoestima de um escritor.
Após um passeio exaustivo, e com os pés cheios de bolhas, tomamos um banho demorado com o cotovelo no botão do chuveiro, almoçamos e fomos até o Centro de Crianza de Tortugas Gigantes Arnaldo Tupiza-Chamaidan, onde vivem 853 jabutis, sendo 4 recém-nascidos e 768 juvenis, divididos por idade. Em Isabela se encontram cinco das dez subespécies de tartaruga-gigante existentes no mundo, e o centro de criação procura reproduzi-las em cativeiro, proteger os ovos em estufas e liberar os animais na natureza quando estão prontos, por volta dos 6 anos. Li que eles possuem pistas de treinamento para que os animais aprendam a escalar pedras em sua marcha rumo às nascentes de água. No centro de criação, as jovens tartarugas-gigantes se alimentam três vezes por semana de nutritivas folhas de taioba (Xanthosoma sagittifolium) e capeba (Pothomorphe peltata), além de vespas coletadas no local.
Visitamos um dos currais claramente reservado a jabutis encrenqueiros: um indivíduo tentava puxar briga com todos, mordendo seus cascos, tentando abocanhar seus rostos, dando cabeçadas e tentando virá-los de ponta-cabeça. Às vezes um colega revidava, quando então testemunhávamos um sumô quelônio que durava alguns minutos e só terminava quando um dos animais estava prestes a capotar – então o perdedor desistia e voltava para seus negócios particulares. Às vezes ambos ficavam se medindo, totalmente recolhidos, e depois partiam para o ataque, dando coices e batendo os cascos ruidosamente. Eu poderia passar o resto da vida observando tartarugas-gigantes, o que, aliás, foi o que fiz até escurecer, emendando com um picolé de coco.
À noite, jantamos e assistimos a uma partida de futebol entre dois times locais, que se deu num insólito campinho iluminado, de formato quadrado, com arquibancadas abarrotadas de espectadores. Detalhe: um locutor narrava a partida num microfone.
15 DE MAIO, DOMINGO_Em nosso último dia em Galápagos, pegamos o barco Diana I até Los Tuneles, onde os fluxos de lava produziram formações geológicas em forma de arcos e túneis que se erguem sobre uma água azul, rasa e cristalina.
Caminhamos sobre os arcos de lava, observamos patolas-de-pés-azuis e atobás-de-nazca (Sula granti), e fizemos o último mergulho com leões-marinhos brincalhões. Mais tartarugas, mais estrelas-do-mar e uns peixes meio inchados com cara de mafiosos – e acabou. A viagem havia chegado ao fim, só nos restava acordar às quatro e meia da manhã do dia seguinte para pegar uma lancha pública, um táxi, um ferry, um ônibus, três aviões, outro ônibus, um metrô e um táxi até nossa casa.
Durante o caminho de volta, fiquei pensando na paixão de Charles Darwin pela observação de animais e na obsessão com que se dedicou às ciências naturais, transformando suas atividades diárias em conhecimento científico. Darwin as chamava de “observações triviais”, e disse a um amigo ser “um verdadeiro milionário em pequenos fatos estranhos e curiosos”. Por toda a casa havia indícios de seus experimentos; ele chegou inclusive a construir uma estufa e um pombal nos limites da propriedade.
O cientista se dedicou por muito tempo ao estudo das cracas, crustáceos marinhos que se fixam a substratos rochosos e também ao fundo de embarcações, e que ele chamava de “pequenos amigos”. A família achava tudo tão natural que, ao visitar a casa de outra criança, um dos filhos de Darwin perguntou ao menino: “Onde seu pai trabalha com as cracas dele?”
Ao contrário do que se imagina, o naturalista não desenvolveu a teoria da evolução imediatamente após voltar de Galápagos, em 1836, mas quase duas décadas depois, com a ajuda de observações, experimentos e leituras. Estava convencido de que a grandiosa história da natureza poderia ser explicada pelo acúmulo de pequenas coisas. Gostava de passar horas prestando atenção em alguma criatura, por menor que fosse e por mais desinteressantes que parecessem seus movimentos; o objeto de estudo podia parecer insignificante, mas os princípios que o fundamentavam eram o credo primário de sua vida científica – “pequenos atos e seus efeitos acumulados”. Pouco a pouco, foi refinando essa sua teoria de que o mundo natural resultava de repetidas ações pequenas e cumulativas.
A paixão de Darwin pelos animais não terminou após a publicação de A Origem das Espécies, em 1859. Mais tarde, esforçou-se para estabelecer que não havia “diferença fundamental entre o homem e os mamíferos superiores em suas faculdades mentais”. Em A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais (1872), ele provou isso com uma série de observações engenhosas sobre o comportamento animal, “desde cavalos que conheciam o caminho para casa, até formigas que defendiam sua propriedade, chimpanzés que usavam perucas como implementos, pássaros-jardineiros que admiravam a beleza de seus ninhos, e gatos que sonhavam com coelhos”, conforme conta a historiadora da ciência Janet Browne, em sua excelente biografia sobre Darwin. Os amigos e a família também se interessavam pelo tópico e forneciam ao cientista histórias curiosas sobre expressões animais. “O dr. James Paget conhecia um terrier que franzia a testa quando estava concentrado. Lady Lubbock descreveu as caras inteligentes apresentadas por seu cão pug. Jonathan Kreft, zelador de museu da Austrália, contou a ele sobre macacos tendo ataques de mau humor como uma criança, enquanto Alois Humbert viu um beija-flor ser persistentemente enganado por papel de parede florido”, escreve Browne.
Por algum motivo, os bichos tiveram um papel fundamental na vida e nos pensamentos de Darwin, que nos últimos anos de vida “apreciava sempre mais a companhia das minhocas. Passou um bom tempo pensando nelas durante os anos de 1880 e 1881”.
Há quem diga que ele tenha morrido no ano seguinte só para ficar mais próximo delas.
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[1] Cabe dizer que, ao contrário desta autora, Darwin não respeitava as diretrizes do futuro Nacional Galápagos: montou numa tartaruga-gigante (“Era muito difícil manter o equilíbrio”), praticou o bullying com uma iguana terrestre e confessou que gostava de assado de quelônio e sopa de jovens tartarugas.
[2] Cabe deixar aqui registrado, para deleite das inimigas, que nosso primeiro contato com humanos hispanófonos foi um sonoro Buonasera! – boa noite, em italiano – que soltamos no guichê de imigração do Equador.
[3] A moeda oficial do Equador é o dólar americano; seus principais times de futebol são o Emelec, o Barcelona de Guayaquil, o Nacional e o LDU; o país foi o primeiro do mundo a declarar, em 2008, que a natureza tem direitos previstos pela Constituição.
[4] Aqui é preciso fazer uma observação sobre os nomes das ilhas que compõem o arquipélago de Galápagos, cujo nome oficial é Archipiélago de Colón. São cerca de dezoito ilhas maiores, sendo que todas possuem duas denominações, uma em espanhol e outra em inglês. Santa Cruz, a mais populosa (com 12 mil habitantes), é chamada de Indefatigable – em homenagem a um navio britânico. Este diário registra os nomes em espanhol, que são os mais populares, seguidos da designação em inglês na primeira ocorrência.
[5] Geralmente no Brasil usa-se o termo “jabuti” para designar quelônios terrestres, ao passo que “cágados” são os quelônios de água doce e “tartarugas”, os quelônios marinhos. Neste diário, o termo “tartarugas-gigantes” foi adotado para designar esses jabutis em específico.
[6] Estimativas rigorosamente científicas da autora.
[7] A comoção se faz sentir até hoje. Em Puerto Ayora, inúmeras camisetas estão à venda nas lojinhas e há pichações nos muros: “Não mais solitário.”
[8] Provavelmente porque costuma desprezar pessoas como eu, que os confundem com focas. A principal diferença entre ambos é que os leões-marinhos têm orelhas e se deslocam melhor em terra, ou seja, conseguem escalar as coisas e, portanto, subir escadas.
[9] Toma essa, grande explorador.
[10] Não confundam o leão-marinho-de-galápagos (Zalophus wollebaeki) com o lobo-marinho-de-galápagos (Arctocephalus galapagoensis). Ainda que ambos sejam morfologicamente parecidos, o segundo é em geral menor, tem a cabeça grande, olhos protuberantes para caçar à noite, nadadeiras dianteiras largas e uma cobertura felpuda. Em inglês, os lobos-marinhos são chamados de sea lions, ao passo que os leões-marinhos são denominados Galápagos fur seals, ainda que não sejam focas. (Lembrando que focas não têm orelhas nem conseguem se deslocar bem em terra.) Ainda no campo das comparações com outros animais, em alemão as focas são chamadas de Seehund, ou cachorros-do-mar, o que faz todo o sentido.
[11] Para os que têm estômago forte, sugerimos também os vídeos Dangerous Killer Tortoise Attack (ataque a um bonequinho) e Deadly Tortoise Attack (ataque a um sapato).
[12] Melville explica que as ilhas Galápagos foram apelidadas pelos espanhóis de Encantadas por causa das correntes oceânicas que às vezes impediam os barcos de atracar no local, como se as próprias ilhas estivessem se distanciando.
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