"Os fatos nesse caso são melhores do que em qualquer outro em que eu tenha atuado", o advogado Jeremy Lieberman contou, no seu escritório em Nova York. "Se a Petrobras arriscar ir a julgamento, as chances de derrota para ela são enormes." FOTO: FERNANDEZ.GERSET_2016
O petróleo é deles
A história do processo de bilhões de dólares movido contra a Petrobras nos Estados Unidos
Roberto Kaz | Edição 118, Julho 2016
O advogado André de Almeida se lembra do frio que fazia em Nova York na segunda-feira, 8 de dezembro de 2014: “Era um dia cinzento, com muito vento, daqueles em que é melhor ficar em casa tomando chá.” Pela manhã, fez uma visita rápida ao Wolf Popper, escritório americano de direito ao qual havia se associado. “A ideia era abrir o processo na semana anterior, mas tivemos que acertar uns detalhes.” Almoçou num bistrô e decidiu aguardar no hotel até quatro da tarde, quando termina o pregão da Bolsa de Nova York. “Não queríamos dar entrada antes disso para não assustar o mercado.”
Meia hora depois chegava ao edifício de 27 andares onde fica a corte do distrito sul de Nova York. Na recepção, tirou o paletó de lã, apresentou o passaporte ao segurança e foi parado, em função da espiral de um caderno, no detector de metais. Constatado o problema, adentrou o saguão que abriga uma estátua da Justiça, e de lá seguiu para a divisão de novos processos. “Era uma sala de espera, com um guichê, em que os advogados eram chamados por ordem de chegada”, contou. Levava na pasta uma ação de 38 páginas contra a Petrobras. “A petição já havia sido feita, minutos antes, pela internet”, continuou. “Qualquer pessoa poderia ter ido no meu lugar buscar o protocolo, mas eu queria estar lá. Era um caso importante na história jurídica do país – e na minha vida profissional.”
Almeida entregou o processo, pegou o recibo e seguiu de metrô até a Grand Central – uma estação de trem garbosa no miolo de Manhattan. De lá caminhou por quinze minutos de volta ao hotel em que estava hospedado. “Eu estava trêmulo, checando o celular a cada minuto, porque sabia que a notícia ia explodir assim que fosse divulgada.” Diz ter ligado para sua mulher e falado: “Começou. Agora segura.” Logo depois o telefone começou a tocar.
O processo de número 14-CV-9662, que corre na Justiça de Nova York, é um calhamaço com mais de mil páginas em que a Petrobras é acusada de maquiar relatórios a fim de esconder um “esquema bilionário de lavagem de dinheiro”. O texto inicial, em inglês, foi produzido de julho a dezembro de 2014 pela equipe de Almeida e do escritório americano Wolf Popper. Aponta, com base em delações de Paulo Roberto Costa e Renato Duque, ex-diretores da Petrobras, que os contratos da estatal eram inflados – e que 3% do valor eram repassados a políticos alinhados com o governo federal. Até 2015, tal prática jamais foi trazida à tona em relatórios do Conselho de Administração da empresa. “A Petrobras, direta ou indiretamente, engajou-se num esquema de conduta em que, de forma intencional, ou descuidada, cometeu transações fraudulentas”, explica o texto. “Fez várias afirmações falsas […] e empregou métodos ilusórios e manipuladores no que diz respeito à compra e venda de ADSs”, continua o documento, referindo-se, com a sigla, às ações da empresa negociadas na Bolsa de Nova York. A descoberta do esquema pela força-tarefa da Operação Lava Jato – acrescida da alta do dólar, do controle sobre o preço da gasolina e da queda do barril de petróleo – fez com que o valor de mercado da empresa minguasse de 300 bilhões para 100 bilhões de dólares entre 2010 e 2015. Milhares de acionistas foram lesados.
Criada em 1953 por Getúlio Vargas, a Petrobras foi uma estatal puro-sangue até 1957, quando passou a ter parte de suas ações negociadas no mercado. A abertura maciça de capital, no entanto, só ocorreu no governo Fernando Henrique Cardoso: primeiro em 1997 – quando 180 milhões de ações foram vendidas na Bolsa de São Paulo – e depois em 2000 – quando a empresa passou a negociar papéis na Bolsa de Nova York. Para tanto, precisou emitir American Depositary Shares, as ADSs – nome dado às ações de empresas estrangeiras negociadas nos Estados Unidos. “A ideia do Fernando Henrique era fazer da Petrobras uma empresa internacional”, explicou o economista Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra Estrutura, uma empresa de consultoria especializada no mercado de óleo e gás. Hoje, mais de vinte companhias brasileiras – dentre elas Vale, Ambev e Bradesco – vendem ADSs. Na Petrobras, elas representam 41% do capital negociado em Bolsa.
O mercado de ADSs funciona da seguinte forma: primeiro a empresa emite um número específico de ações em seu país, mas as deixa congeladas na própria tesouraria. Em seguida contrata bancos que se encarregam de distribuir os recibos desses papéis nos Estados Unidos. É como se fosse um espelho da ação”, disse André de Almeida. Por serem negociados no exterior, os recibos acabam sujeitando a empresa às normas da SEC, a Comissão de Valores Mobiliários americana, que fiscaliza o mercado americano de capitais. A empresa torna-se imputável nos Estados Unidos.
O pregão que marcou a entrada da Petrobras na Bolsa de Nova York, em agosto de 2000, contou com a presença de Pelé, contratado por dois anos para promover a marca no exterior. “A Petrobras é o Brasil que deu certo, o Pelé também”, declarou o jogador, à época, justificando sua contratação. O primeiro dia de vendas atraiu 13 mil investidores, que pagaram 2,6 bilhões de dólares pelas ações americanas. O plano de internacionalização tinha dado certo.
Mas o divisor de águas no mercado exterior ocorreria em 2010. Quatro anos antes, já no governo Lula, a Petrobras anunciara o descobrimento de petróleo na camada do pré-sal. A extração, bem mais complexa e cara, em função da profundidade, exigia um investimento pesado. Para levantar recursos, agendou-se uma nova oferta, de 4 bilhões de ações. No dia 24 de setembro, Lula, o vice José Alencar, o ministro da Fazenda Guido Mantega e o presidente da Petrobras José Sergio Gabrielli vestiram jaleco laranja e capacete branco – uniforme da empresa – para abrir o pregão da Bolsa de São Paulo. Naquele instante, parte das novas ações já era negociada na Bolsa de Nova York.
Ao final da operação, a Petrobras arrecadaria 70 bilhões de dólares, tornando-se a segunda maior empresa do continente americano, atrás apenas da ExxonMobil em valor de mercado. O processo aberto por André de Almeida nos Estados Unidos começa o seu inventário de prejuízo aos acionistas justamente no ano de 2010.
André de Almeida é um homem alto de 40 anos*, que tem a fala mansa de quem nasceu em Minas Gerais. Formou-se em direito pela Pontifícia Universidade Católica mineira e concluiu um curso de extensão, na mesma área, pela Universidade de Georgetown, em Washington. Lá permaneceu por quatro anos, de início trabalhando na Organização dos Estados Americanos e depois num escritório especializado em direito societário.
Em 2001, já de volta ao Brasil, fundou o próprio escritório, o Almeida Advogados. Hoje tem 120 profissionais espalhados por São Paulo, Rio, Brasília e Belo Horizonte. A sede, na capital paulista, ocupa um andar alto de um prédio escuro na avenida Brigadeiro Faria Lima. Almeida fica numa sala com vista para o Jockey Club e para o Parque do Ibirapuera. Sua estante exibe um Código Civil e o livro Oil: Money, Politics and Power in the 21st Century, sobre a história da British Petroleum. No frigobar há duas garrafas de Chandon e, na parede, dois quadros – um com uma ilustração de Romero Britto e outro com o pôster do campeonato de ciclismo de 1991. “Fui bicampeão antes de advogar”, explicou.
Almeida contou ter começado a pensar no processo em março de 2014, quando foi deflagrada a Operação Lava Jato. Flertou com a ideia durante alguns meses, até que ocorreu a delação premiada do ex-diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa. “Até ali, havia informações sobre corrupção e perda de valor da empresa, mas os envolvidos, como o Pedro Barusco, ocupavam níveis gerenciais. Discutia-se se a Petrobras era vítima ou se havia sido conivente.” Com o depoimento de Costa, a suspeita mudou de termos. “Ele era diretor estatutário. Fazia parte da governança corporativa. Aquilo me deu certeza da nossa tese.”
Por conhecer a Justiça americana, achou que o processo teria mais chance de dar certo nos Estados Unidos. “Não existe no Brasil uma boa forma de processar coletivamente. Uma ação civil pública só poderia ser aberta por uma associação já existente. Seria necessário criar essa associação, o que tornaria o processo demorado, caro e malsucedido”, explicou. “Além disso, pela Lei das Sociedades Anônimas, teríamos que processar o controlador da empresa, que é a União. O caráter político da ação seria transmitido aos tribunais.” Optou por abrir uma class action em Nova York. “Eu nunca havia feito uma por conta própria, mas já tinha trabalhado com isso por muitos anos, quando morei por lá.”
A class action é uma ação coletiva, disponível no sistema americano, em que um indivíduo, sentindo-se lesado, abre um processo em nome de um grupo com o qual divide um interesse – no caso de uma empresa, um acionista que se sinta lesado pode dar entrada numa ação em nome dele e de todos os outros sócios minoritários. No tocante ao custo processual, o mecanismo é benéfico tanto para quem processa quanto para quem é processado: o que seriam dezenas, centenas ou milhares de requerimentos independentes acabam condensados numa única ação. No que toca ao montante indenizatório, contudo, é o pesadelo corporativo.
“A sentença coletiva tem um valor geometricamente potencializador, de acordo com o número de membros do grupo”, escreveu o jurista brasileiro Antonio Gidi, professor da Universidade de Houston, no livro A Class Action como Instrumento de Tutela Coletiva dos Direitos. “A desproporção entre o baixo custo do processo e o alto valor da sentença faz com que mesmo uma ação com uma pequena possibilidade de vitória seja economicamente viável para o grupo, e extremamente perigosa para o réu. A situação de desigualdade entre as partes persiste, mas agora de forma invertida; a empresa ré passa a estar em situação de desvantagem: deixa de ser opressora para ser oprimida.”
Tal equação (que une um custo baixo à possibilidade de um retorno exponencial) faz a ação coletiva movimentar uma indústria – a tal ponto que a despesa da acusação é totalmente bancada pelo escritório de advocacia. “O cliente representado tem um caráter figurativo”, contou-me o professor Gidi, por telefone. “O dono do caso é mesmo o advogado, que nos Estados Unidos tem um poder de quase vida ou morte.” Em outras palavras, a ação coletiva, além de um instrumento de defesa, é também uma aplicação financeira – em que escritórios gastam milhões de dólares na esperança de que esse valor volte multiplicado. Do cliente, exige-se apenas que divida eventuais ganhos com os advogados, em caso de acordo ou de vitória. Em caso de derrota no tribunal, os dividendos recaem sobre o escritório.
Em 2015, 189 empresas com papéis na Bolsa de Nova York foram processadas. No primeiro semestre de 2016 foram quase 100. Os casos sempre terminam antes do julgamento, com acerto entre as partes. Das mais de 4 mil class actions referentes a perdas acionárias abertas nos últimos vinte anos, nenhuma chegou a ser julgada. Ainda assim, acionistas recuperaram 87 bilhões de dólares em acordos extrajudiciais.**
Para dar entrada na corte americana, André de Almeida precisaria de um sócio local. Em sucessivas viagens a Nova York, apresentou o caso a seis escritórios. “Como fui presidente da Federação Interamericana de Advogados, foi fácil ser recebido”, contou. “Mas a maioria riu da minha cara no início, dizendo que seria impossível processar a Petrobras. Eles não acreditavam que os depoimentos seriam validados ou que as ações iriam adiante.” Após diversas visitas, diz que cinco dos seis escritórios acabaram se interessando. Optou pelo Wolf Popper, de estatura mediana. “Eu já havia trabalhado com dois sócios de lá.”
Selado o acordo, Almeida voltou ao Brasil para montar o caso. Por questão de ordem, passou a anotar os fatos mais relevantes em cadernos de capa preta, com folhas de tamanho A4. No dia 6 de setembro, escreveu, num misto de português e inglês: “Conference call com a Emily [Madoff, advogada do escritório Wolf Popper]. Several acts of corruption and arrests of 2 VPs [referia-se às prisões de Paulo Roberto Costa e Renato Duque na Operação Lava Jato]. Pricewaterhouse [Coopers, a auditora da Petrobras] refuses to sign the balanço.”
Atravessou o mês juntando notícias, relatórios e transcrições de depoimentos colhidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou a Petrobras. No dia 6 de outubro, anotou: “Trabalhei com a Natalie [Yoshida, do seu escritório] na leitura dos jornais para fazer a class action. Não usar a palavra ‘corrupção’ para não ser processado. Saí do escritório às duas da madrugada.” Em paralelo, passou a buscar investidores, no Brasil, que houvessem sido lesados pela compra de papéis americanos da Petrobras (a prática de adquirir ações da mesma empresa aqui e lá é comum, para que o acionista se previna da variação cambial). No final do mês, escreveu: “Estou preparando a minha ida a Nova York na semana que vem. Já temos seis clientes fechados, com perda superior a 20 milhões de dólares. Ainda é pouco para a class action.”
No passado, duas empresas brasileiras enfrentaram ações coletivas nos Estados Unidos. Em 2011, a Sadia fechou um acordo de 27 milhões de dólares, com os acionistas, para livrar-se de uma acusação de fraude cambial. No ano seguinte a Aracruz pagou 37,5 milhões. Ambas haviam sido processadas por ocultar os riscos que corriam ao investir no mercado de derivativos (tais investimentos haviam resultado, anos antes, em perdas de centenas de milhões de dólares).
Com a Petrobras, o cálculo do valor perdido pela empresa é complicado. A dificuldade reside em discriminar o que foi perdido em função da corrupção, de um lado, daquilo que foi causado por ingerência, desvalorização do real e queda do barril do petróleo, de outro. Seja como for, a segunda página do texto de Almeida na ação coletiva declara que “o esquema de propina e lavagem de dinheiro é estimado pelas autoridades num desvio de até 28 bilhões de dólares”.
“O processo da Petrobras é mais grave”, contou-me a advogada Érica Gorga, professora de direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, que publicou um estudo sobre os casos da Sadia e da Aracruz, e trabalhou como parecerista, para a acusação, no da Petrobras. “A Aracruz, por exemplo, foi a empresa brasileira que pagou o maior valor num acordo. Mas o prejuízo que ela havia gerado era de 2,5 bilhões de dólares, ao passo que o da Petrobras foi dez vezes maior.”
Gorga lembrou que as ações contra a Sadia e a Aracruz eram apenas cíveis. “Mas a Petrobras também está sendo investigada em outros processos, que podem render multas milionárias.” Ela se refere a duas investigações: uma criminal, que corre no Departamento de Justiça dos Estados Unidos, e outra administrativa, tocada pela Comissão de Valores Mobiliários americana, a temida SEC, que em 2008 multou a alemã Siemens em 800 milhões de dólares.
Mas o grande risco, em termos de perda financeira, é mesmo a ação coletiva. Oito anos atrás, a Enron, gigante americana de energia, pagou 7,2 bilhões de dólares aos acionistas para dar fim a uma class action (na virada do século, o presidente e os principais executivos da empresa haviam decidido não contabilizar as perdas financeiras, gerando balanços absolutamente irreais).
“O caso da Petrobras é pior que o da Enron em termos de prejuízo”, disse Érica Gorga. O consultor Adriano Pires complementou: “O da Enron fez um estrago fenomenal, mas esse ainda tem muitos imponderáveis além do dinheiro. Pensa no que pode causar em termos de imagem.”
O contador aposentado Peter Kaltman, que mora em Nova York, é especialista na estranha arte de protocolar ações coletivas. Em 2001 processou a Scientific Atlanta, que fabrica equipamentos para televisão. Em 2004 voltou-se contra a Key Energy Services, que presta serviços para a indústria do petróleo. Dois anos depois peticionou contra a Sunterra, companhia do ramo hoteleiro. Os três casos terminaram em acordos extrajudiciais. “Ele tem papéis de várias empresas”, contou-me André de Almeida.
Kaltman foi o marco zero da ação coletiva contra a Petrobras. Em outubro de 2014 – quando já corria a Operação Lava Jato –, o investidor comprou mil ações da empresa, por 11 mil dólares. Dois meses depois, estava sendo representado por Almeida, na abertura do caso. “O ideal é começar o processo com pouca envergadura, para não expor os fundos”, explicou-me o advogado. “Você busca um acionista qualquer que tenha pouquíssimas ações. Funciona como uma isca para o mercado.”
A partir daí, se inicia um período de sessenta dias em que investidores em situação parecida se apresentam à corte para disputar a liderança do caso. Advogados passam então a cortejar pessoas e fundos, na ânsia de encontrar quem tenha sofrido perdas monumentais. No geral, quanto maior o prejuízo do acionista, maior é a chance de ele e seu respectivo advogado serem escolhidos, pelo juiz, para liderar a ação. O escritório vencedor passa a definir a estratégia de acusação em nome de todos os acionistas – até mesmo daqueles que acabaram de perder o pleito.
Almeida tinha esperança de que os grandes fundos brasileiros com papéis americanos da Petrobras ingressassem no caso. “Nesses sessenta dias tive muitas reuniões”, contou-me. Mas já em 12 de dezembro – quatro dias depois de aberto o processo – escreveu, desgostoso, em seu diário: “Meu sócio foi ao BTG e diz que ninguém no Brasil vai ter peito para entrar com a ação.” Ainda assim, agendou um encontro na Amec, a Associação de Investidores no Mercado de Capitais, que representa bancos e seguradoras com mais de 400 bilhões de reais investidos no mercado acionário. Anotou: “Um dos bancos presentes, o Santander, gosta da ação, mas acha que não vai dar em nada. Os investidores foram céticos e nem um pouco simpáticos. Saí de lá desanimado.”
“Naquela sala tinham 40 bilhões de reais em perdas”, contou-me Almeida, em seu escritório, lembrando a cena, ocorrida na sede da Amec, em dezembro de 2014. “Estavam Itaú, Safra, BTG, Bradesco, HSBC. Se entrassem [e liderassem a ação], teriam autonomia para decidir os movimentos no caso”, esbravejou. “Mas tiveram uma posição covarde, por medo de retaliação. A Dilma tinha acabado de ser reeleita.” Ele diz que aquele foi “o pior dia” de sua vida profissional.
No dia 15 de janeiro, num tom confessional, Almeida anotou no diário que ainda tinha esperanças de liderar a ação: “Não por questão econômica. Passei a vida toda me preparando para esse momento.” Duas semanas depois, no entanto, escreveu que estava pessimista: “Minha maior perda tem 20 milhões [de dólares], achamos que não vai ser suficiente.” Ele diz que nesse período seu escritório no Rio foi invadido por um funcionário da Petrobras. “Ele gritava pelo meu nome.” Já o de São Paulo teve o telefone cortado. “Fizeram uma sabotagem nos fios, que ficam no térreo do prédio. Fiquei dez dias sem telefone.” Registrou dois boletins de ocorrência. “Também contratei segurança pessoal.”
Em 6 de fevereiro – quando terminava o prazo de sessenta dias para a adesão de acionistas – vários pedidos para liderar o caso foram protocolados. Um deles vinha do banco sueco Handelsbanken, que estimava suas perdas em 21 milhões de dólares. Outro vinha da holding alemã Union Asset Management, que alegava ter perdido 29 milhões. O fundo dos funcionários públicos aposentados do estado de Ohio declarou um prejuízo na ordem dos 50 milhões de dólares. Já o fundo britânico Universities Superannuation Scheme estimou o seu em 84 milhões. O maior rombo veio do Skagen-Danske Group, um conglomerado formado por três bancos, da Noruega e da Dinamarca, que afirmou ter perdido entre 222 milhões e 268 milhões de dólares.
Almeida entrou no páreo representando dois brasileiros – os investidores Roberto Gomes de Melo e Jacob Licht – cujas perdas, somadas, davam pouco mais do que 2 milhões de dólares. Escreveu no diário: “Dia D. Estou com a sensação de derrota. Acho que não vai dar. Ou será que dará?” Quando constatada a discrepância em relação às perdas de outros investidores, ele e os advogados do Wolf Popper entregaram um documento ao juiz, avisando que se retiravam do páreo. “Acabou o sonho. Fizemos o acordo com outros escritórios. Estamos fora. Game over”, anotou no diário.
Em abril deste ano, hospedei-me na casa de um amigo, em Nova York, onde estive para entrevistar alguns advogados. Certo dia ele recebeu uma carta – possivelmente entregue a todos os moradores do prédio – avisando-o de uma ação coletiva recém-encerrada. “Se você comprou suplementos manufaturados pela Rexall Sundown, está apto a receber dinheiro de um acordo decorrente de uma class action”, dizia o texto. A empresa, que vende vitaminas e produtos dietéticos, acabara de pagar 9 milhões de dólares para dar fim a uma acusação de propaganda enganosa. Mesmo quem jamais tivesse ouvido falar do processo estava apto a ser indenizado, mediante o preenchimento de um formulário.
“Na ação coletiva, todo mundo é representado, a não ser que manifeste a vontade de estar fora”, explicou-me Érica Gorga. Reside aí o gigantesco poder de fogo do mecanismo jurídico: ele engloba não apenas as pessoas que aderiram ao caso (e que o fizeram com o objetivo único de disputar a liderança da ação coletiva). Engloba, na verdade, toda e qualquer pessoa que tenha sido lesada pelo réu durante um período específico.
O advogado que conduz o processo, portanto, representa milhares de clientes – e não apenas aquele por quem foi contratado. Banca os custos visando ao montante a ser recebido no final. No caso da Enron, a firma Coughlin Stoia Geller Rudman & Robbins, que esteve à frente da ação, recebeu quase 10% do valor fixado no acordo – ou 688 milhões de dólares (normalmente o escritório fica com 25% do valor acertado, mas o percentual diminui quando a indenização é alta).
Daí que a partir de 6 de fevereiro de 2015 – quando terminou o período estipulado pelo juiz para que os escritórios aderissem ao caso contra a Petrobras –, os inscritos passaram a se trucidar abertamente para ver a quem recairia a liderança do litígio. O advogado Jeremy Lieberman, do Pomerantz – que representava o fundo britânico Universities Superannuation Scheme –, escreveu teses desqualificando tecnicamente o grupo europeu Skagen-Danske e o fundo de pensão dos aposentados de Ohio – que, em termos de perda, eram seus principais rivais.
O resultado se fez conhecer no dia 4 de março. Num documento de duas páginas, o juiz Jed Rakoff determinou que o fundo britânico representado por Lieberman tocaria a ação. A escolha se embasava em argumentos de ordem jurídica (como o fato de o escritório já ter liderado ações coletivas no passado) e monetária (o percentual cobrado – não revelado no documento – era menor do que os dos demais escritórios).
Lieberman soube da escolha por um telefonema que recebeu de sua secretária. “Achei que ela havia se enganado”, contou-me. “Éramos os azarões. Os dinamarqueses haviam perdido muito mais dinheiro. E eu ainda por cima tinha saído mais cedo, no dia da defesa oral, porque era shabat.” Confirmado que estava à frente do caso, celebrou: “Me senti o máximo.”
Jeremy Lieberman é um judeu ortodoxo de corpo rechonchudo, cabelo preto e barba rala. Tem 42 anos, sete filhos e mora na região do Queens, onde também fica sua sinagoga. Integra desde 2004 o escritório Pomerantz, pelo qual já advogou em mais de cinquenta ações coletivas. A maior delas, contra uma empresa de tecnologia chamada Comverse, resultou, seis anos atrás, num acordo de 225 milhões de dólares. Tornou-se sócio da casa.
O escritório, que ocupa o 20º andar de um edifício espelhado na parte central de Manhattan, tem decoração sóbria e paredes claras. Sobre a mesa, na sala de espera, há um catálogo onde se lê que “o espírito pioneiro” do fundador, Abraham L. Pomerantz, sobrevive em processos como o da Petrobras, “um dos maiores escândalos de corrupção e propina do século XXI”.
Lieberman trabalha numa sala surpreendentemente pequena e desarrumada. Quando o visitei, em abril, havia um guarda-chuva no chão e um quadro, também no chão, com a tela voltada para a parede. Já sua mesa, de madeira escura, estava soterrada por papéis e jornais, que quase faziam sumir uma placa dizendo, em inglês, que “uma mesa bagunçada é indício de um gênio”.
Era meio-dia de uma sexta-feira. Perguntei se Lieberman ouvira falar do caso da Petrobras antes do dia 8 de dezembro de 2014, quando a petição inicial foi protocolada por André de Almeida. “Não”, admitiu. “Era fim de ano, véspera de Natal, as coisas andavam devagar aqui no escritório. Naquela época eu não entendia a profundidade da fraude, e não sabia até que ponto o governo brasileiro estava envolvido.” Diz ter assuntado com advogados de outras firmas, que lhe perguntaram, surpresos, “se o caso valia a pena”. De toda forma, como seguro morreu de velho, achou prudente protocolar uma petição quatro dias mais tarde (a prática é comum em class actions; por receio de perder uma oportunidade de lucros, escritórios entram em processos sem saber ao certo do que tratam).
Assim, no dia 12 de dezembro daquele ano, Lieberman entregou um pedido praticamente idêntico ao de Almeida, com a diferença de que representava outro acionista, Jonathan Messing, que detinha 80 mil dólares em papéis da Petrobras. “Mandamos e-mails para alguns clientes que poderiam ter ações da empresa, e o senhor Messing nos respondeu”, explicou.
Uma vez inscrito, passou a estudar o caso. Logo entendeu que a briga, ali, seria de cachorro grande – e que, se quisesse ter chance de vitória, precisaria representar um cliente de porte. Viajou então à Inglaterra para encontrar os diretores do Universities Superannuation Scheme, um fundo universitário de 65 bilhões de dólares – o maior do Reino Unido –, que gerencia a pensão de 300 mil pessoas. “Eles já eram clientes nossos de casos passados, mas nunca tinham liderado uma class action antes”, contou-me. O acordo foi firmado.
Meses depois, a dupla formada pelo fundo e pelo escritório seria escolhida para liderar a ação. Lieberman diz ter mais de quarenta pessoas trabalhando no caso: “Já gastamos milhões de dólares.”
Quando um escritório de advocacia é apontado líder de uma ação coletiva, ele fica incumbido de entregar um novo texto à corte, atualizado, representando o interesse de todos os membros da classe. A partir desse momento, a petição inicial – no caso da Petrobras, aquela protocolada por André de Almeida – passa a ser uma espécie de rascunho do caso.
O texto de Lieberman – cinco vezes maior do que o de Almeida – foi apresentado no dia 25 de março do ano passado. Começava por mencionar que naquele mês “aproximadamente 1 milhão de brasileiros” haviam tomado as ruas do país, “pedindo o impeachment da presidente Dilma Rousseff”. Os protestos, explicava, haviam sido desencadeados “pelo enorme esquema de corrupção na Petrobras, onde Rousseff serviu como conselheira entre 2003 e 2010”. Mencionava também que tal esquema diluíra em quase dez vezes o capital da empresa, “que em 2009 era a quinta maior do mundo, com um valor de mercado de 310 bilhões de dólares”.
Depois, Lieberman descrevia vários casos de corrupção desvendados pela Operação Lava Jato. Citava as prisões do tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, e dos executivos da Petrobras Paulo Roberto Costa, Renato Duque, Pedro Barusco e Nestor Cerveró. Mencionava a compra superfaturada da refinaria de Pasadena e as obras, também superfaturadas, das refinarias Abreu e Lima e do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro. Falava do cartel formado pelas empreiteiras Odebrecht, Camargo Corrêa e Queiroz Galvão – que, de acordo com o depoimento de Paulo Roberto Costa, aumentavam o preço das obras em 20%, de forma a que 3% desse valor fossem repassados a políticos aliados.
Na argumentação, com mais de 200 páginas, Lieberman ainda mencionava que “a diretoria executiva – incluindo [os ex-presidentes da empresa] José Sergio Gabrielli e Graça Foster – havia sido repetidamente avisada das fraudes”. Para incriminar Gabrielli, citava a delação premiada do doleiro Alberto Youssef – que dizia ter pago propina “por ordem direta” do ex-presidente da Petrobras. Para acusar Graça Foster, mencionava os e-mails enviados em 2011 pela ex-gerente da área de Abastecimento, Venina Velosa da Fonseca – que diz ter avisado Foster, quando ela ainda era diretora de Gás e Energia, de irregularidades no setor de comunicação da estatal.
O conhecimento de tais fatos, argumentava Lieberman, fez com que uma série de declarações e balanços supostamente verdadeiros, publicados pela Petrobras entre 2010 e 2015, contivessem informações deliberadamente falsas (a palavra “falso” aparece 95 vezes no texto). Para ampliar o escopo da ação, Lieberman decidiu processar também a PricewaterhouseCoopers, responsável, desde 2012, por auditar as contas da Petrobras. De quebra, ainda requereu que dezoito executivos da petroleira respondessem como réus – entre eles Gabrielli, Foster, Renato Duque e Paulo Roberto Costa (um advogado americano me disse que Dilma Rousseff – que presidiu o conselho da Petrobras – não foi incluída na lista por receio de que o processo, assim, fugisse do escopo civil, virando um assunto para o Departamento de Estado).
“Os fatos nesse caso são melhores do que em qualquer outro em que eu tenha atuado”, Lieberman me contou, com ar de vitória, quando o encontrei em Nova York. “A presidente está sendo impedida, os executivos estão indo para a cadeia, o Tribunal de Contas da União tem aplicado várias multas. Se a Petrobras arriscar ir a julgamento, as chances de derrota para ela são enormes.”
Perguntei-lhe como se sentiria se o processo terminasse por levar a empresa à falência (algo pouco provável, na verdade, visto que 28 bilhões de dólares representam cerca de um quarto da dívida atual da Petrobras, de 130 bilhões de dólares). “Vou me sentir mal se ela quebrar, claro”, respondeu. “Quero que ela dê certo. Mas quem são as vítimas nessa história?” Fez uma pausa, e tratou de responder à própria pergunta: “São os acionistas, os brasileiros e os empregados. Queremos mostrar que se você quer investir nos Estados Unidos, precisa seguir as regras. O Mauro Cunha, por exemplo, entendeu.”
Mauro Rodrigues da Cunha é presidente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais. Integrou o conselho administrativo da Petrobras de 2013 a 2015, como representante dos investidores minoritários.
“Minha participação nesse órgão me deu acesso a informações muito importantes”, Cunha declarou, em 2015, à Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou a Petrobras na Câmara dos Deputados. Referia-se ao embate travado com o conselho no começo de 2014, quando houve uma reunião para aprovar o balanço anual. “As demonstrações financeiras de 2013 não representavam adequadamente a realidade econômico-financeira da Petrobras”, explicou, aos deputados, justificando por que votara contra a aprovação das contas.
Um mês depois, Guido Mantega – então presidente do conselho – sugeriu, em reunião registrada em ata, que houvesse um “rodízio entre os participantes dos comitês”. Nesse novo desenho, Mauro Cunha foi forçado a deixar o comitê de auditoria para integrar o de meio ambiente. À CPI, contou que “o comitê [de auditoria] passou então a ser formado pelos senhores Sergio Quintella [vice-presidente da Fundação Getulio Vargas], Luciano Coutinho [que presidia o BNDES] e Miriam Belchior [então ministra do Planejamento] — ou seja, todos indicados pelo controlador, e, em sua maioria, funcionários do controlador”. Alegou que tal indicação limava “a independência do órgão exatamente no momento em que essa independência se revelava mais importante para a Petrobras”. Concluiu: “O comitê foi aparelhado.”
A ação coletiva contra a Petrobras menciona Mauro Cunha na 62ª página. Lembra que em abril de 2015, não apenas ele, mas também os conselheiros José Monforte e Silvio Sinedino contestaram o balanço do ano anterior – o que não impediu que o documento fosse aprovado e divulgado aos acionistas. Nele, a empresa contabilizava 6,2 bilhões de reais em perdas referentes a “gastos adicionais capitalizados indevidamente na aquisição de ativos imobilizados” – eufemismo encontrado para se referir ao esquema de propina revelado pela Operação Lava Jato. O cálculo, apoiado na delação de Paulo Roberto Costa, tomou por base 3% do valor dos contratos. Em seu voto, Cunha disse não ver sentido “em lançarmos esses valores baseados nas delações premiadas de pessoas inidôneas”. Reclamou também que o balanço, de 319 páginas, fora distribuído no mesmo dia da votação, sendo aprovado “mediante apresentações de PowerPoint, sem ter sido possível a qualquer conselheiro a leitura das demonstrações”.
Quando encontrei Mauro Cunha, no último mês de maio, na sede da associação, em São Paulo, ele se recusou a falar da Petrobras, lembrando que perdeu “saúde e cabelo” durante o período em que foi conselheiro. “A barba também não era branca.” Alertou, no entanto, que o descontrole do mercado de ações no Brasil – somado à falta de um recurso jurídico que proteja os investidores, como a class action – pode acabar gerando um êxodo acionário do país. “A gente está conseguindo exportar o nosso mercado de capitais, por conta da fraqueza da nossa jurisdição. Se não protegermos os investidores, eles vão passar a comprar os ativos brasileiros no exterior.”
Hoje, além da Petrobras, outras cinco companhias brasileiras – Braskem, Vale, Bradesco, Gerdau e Eletrobras – enfrentam ações coletivas nos Estados Unidos. Nenhuma delas é ré em algo do tipo no Brasil.
A Petrobras tem tomado medidas internas no intuito de recuperar o prestígio no mercado. Em novembro de 2014 criou a Diretoria de Governança, Risco e Conformidade, a cargo do executivo João Elek Junior, que foi encarregado de evitar novas irregularidades. Um mês depois, a estatal montou também um comitê especial – que conta com o auxílio de três escritórios externos de direito e auditoria – para investigar suspeitas de fraude. Presidido por Ellen Gracie, ex-ministra do Supremo Tribunal Federal, o comitê já gastou 370 milhões de reais.
Já na corte americana, a Petrobras é defendida pelo escritório nova-iorquino Cleary Gottlieb Steen & Hamilton, que tem filiais em mais de dez países e é constantemente citado entre os mais poderosos dos Estados Unidos. A sede do Cleary, em Nova York, ocupa onze andares altos de um edifício com vista para o One World Trade Center, no centro financeiro da cidade. Na entrada, há uma fila separada para os clientes da casa.
Roger Cooper é o principal advogado na defesa da Petrobras. Numa quinta-feira, 25 de junho de 2015, ele e Jeremy Lieberman se confrontaram diante do juiz Jed Rakoff, na corte do distrito sul de Nova York. A cada um foram dados cerca de vinte minutos para a arguição oral. Cooper estava acompanhado de mais um advogado e de dois executivos da estatal. Começou pela defesa da ex-presidente Graça Foster.
“A acusação se baseia na alegação de que uma pessoa chamada [Venina Velosa da] Fonseca levantou suspeitas de irregularidade a respeito de certos pagamentos no departamento de comunicação da Petrobras”, explicou Cooper, enfatizando que tal departamento nada tinha a ver com o cartel formado pelas empreiteiras. “Na verdade, o valor que se reclama em relação a essas irregularidades é simplesmente de 18,8 milhões de dólares, o que de forma alguma se aproxima do tipo de valor que a acusação alega ter sido empregado no esquema de propinas.” Cooper contou também que a denúncia de Fonseca fez com que o então presidente da estatal, José Sergio Gabrielli, montasse um comitê para investigar tais irregularidades.
Em seguida, Cooper defendeu que a participação de certos indivíduos no esquema, como Paulo Roberto Costa, não poderia ser generalizada a ponto de resultar em punições para toda a empresa. “Eles não estavam envolvidos na produção dos balanços e comunicados enviados ao público”, explicou. “Agiram em interesse próprio, e contra o interesse da companhia.” Enfatizou que a Petrobras não teve benefício algum com o cartel. “O efeito no balanço foi pior para a companhia, que foi obrigada a pagar valores mais altos pelos ativos. Se o esquema não tivesse ocorrido, ela teria pagado 3% a menos.”
Lieberman pôde então replicar. Contou que Venina da Fonseca e Graça Foster tiveram várias conversas, entre 2008 e 2014, sobre o esquema de fraudes. “As investigações sobre a Refinaria Abreu e Lima surgiram com base nas suspeitas dela”, disse, referindo-se a Fonseca. Lembrou que apesar de o comitê montado por Gabrielli ter apontado um aumento de 4 para 8 bilhões de dólares no custo das obras da refinaria, a diretoria continuou a endossá-las. “Novamente, meritíssimo, isso são fraudes levadas ao nível mais alto da hierarquia. Não se trata de uma ou outra maçã podre, mas de toda a raiz da empresa sendo corroída pela fraude.”
Depois, respondeu ao argumento de que a Petrobras não teria se beneficiado. “Meritíssimo, 51% da companhia pertencem ao governo federal. O esquema certamente ajudava o governo”, explicou. “O interesse dos políticos corruptos que governavam o país na época e das pessoas corruptas comandando a companhia era um só. […] Eles não tinham nada a ganhar ficando limpos.” Rechaçou também o cálculo, feito pela Petrobras, de que as perdas referentes ao esquema de corrupção seriam de 6,2 bilhões de reais.
Na tréplica, Roger Cooper diria que o descontrole fiscal referente à Refinaria Abreu e Lima decorreria de ingerência, “o que não o coloca no mesmo nível de uma fraude acionária”. Usaria o mesmo argumento, citando um relatório do Tribunal de Contas da União, para descrever a compra superfaturada em 792 milhões de dólares da refinaria de Pasadena. “Talvez tenham pagado muito, mas não há alegações de propina.” Lieberman contra-argumentou, citando a recomendação, feita pelo TCU, para bloquear os bens de Gabrielli: “Você só bloqueia os bens de uma pessoa quando há algo ilegítimo.” A sessão – convocada para que o juiz tomasse decisões preliminares sobre o caso – foi encerrada depois de uma hora e meia. (Em dezembro de 2015 – portanto seis meses depois do embate entre os advogados, Nestor Cerveró admitiu, em delação premiada, que a compra de Pasadena rendera 15 milhões de dólares em propina.)
Na manhã de um domingo, no último mês de maio, Roger Cooper me recebeu por meia hora na sede do Cleary Gottlieb, em Nova York. Estava acompanhado de Lewis Liman e Francesca Odell, outros dois advogados envolvidos no caso. No encontro, confirmado um dia antes, Cooper repetiu a tese de que a Petrobras é vítima – e não o algoz – da história. Disse que nenhum balanço da empresa foi contestado no Brasil pela Comissão de Valores Mobiliários ou pela sua equivalente nos Estados Unidos, a SEC. Reclamou que alguns dos fundos que integram a acusação continuaram a investir na Petrobras mesmo depois de iniciado o processo. E afirmou que a empresa não pretende fazer acordo.
Desde que a ação coletiva foi aberta, em dezembro de 2014, o juiz Jed Rakoff fez uma série de determinações. Baseou-se na data de publicação de balanços da Petrobras para delimitar o período exato coberto pelo caso – que passou a incluir todo acionista que negociou papéis americanos da empresa entre os dias 22 de janeiro de 2010 e 28 de julho de 2015. Determinou, também, que o processo seria dividido em dois grupos: um lesado pela desvalorização das ações – que caíram 80% no período – e outro, bem menor, lesado pela compra de títulos da dívida pública. Em agosto de 2015, Rakoff negou o pedido de Lieberman para incluir, na ação, quem foi lesado pela compra de papéis da Petrobras na Bovespa. Em fevereiro deste ano, julgou que a PricewaterhouseCoopers não agiu de má-fé quando aprovou os balanços anuais. A auditora continua como ré, mas apenas em função dos pareceres sobre a venda de títulos.
A pedido da acusação, Rakoff expediu cartas rogatórias – um instrumento jurídico de cooperação entre dois países – pedindo que a Justiça brasileira colhesse depoimentos do doleiro Alberto Youssef, do lobista Fernando Baiano, do ex-senador Delcídio do Amaral e dos ex-executivos Paulo Roberto Costa, Renato Duque, Jorge Zelada, Pedro Barusco e Nestor Cerveró. Também pediu, por meio das cartas, que fossem recolhidos documentos nas empreiteiras Andrade Gutierrez, Odebrecht, Galvão Engenharia e Camargo Corrêa.
A Petrobras fez uso do mesmo mecanismo jurídico, pedindo a Rakoff que enviasse cartas rogatórias à Inglaterra – onde está a sede do banco HSBC – e à Suíça – onde fica o Credit Suisse. A ideia – que se parece mais com uma tentativa de redução de danos – é diminuir o tamanho do grupo de acionistas, excluindo do processo quem tenha comprado ADSs nesses países (a lei americana permite que ações da Bolsa de Nova York sejam negociadas por bancos e fundos alhures, mas não defende quem as compra fora dos Estados Unidos).
Mauro Cunha não foi citado em nenhuma carta rogatória. Dos vários conselheiros mencionados no processo, foi o único a ser diretamente intimado a depor nos Estados Unidos. O pedido partiu de Lieberman, sob o argumento de que Cunha detinha “informações críticas” sobre a Petrobras. Gabrielli, Foster e alguns ex-diretores da estatal tentaram impedir seu depoimento, alegando, em carta ao juiz, que a intimação de um estrangeiro desafiaria a Constituição americana: “A corte deveria hesitar antes de ordenar tal ato.” Como Cunha nasceu nos Estados Unidos, o argumento foi negado.
Em março, Graça Foster e José Sergio Gabrielli também endereçaram cartas à corte negando cada parágrafo da acusação (documentos parecidos foram enviados por ex-diretores como Guilherme Estrella, que chefiava a área de Exploração, e Almir Barbassa, que estava à frente de Finanças). Na resposta de Foster, de 88 páginas, há 592 repetições da frase “Foster nega as alegações”. Na de Gabrielli, a construção sintática aparece 579 vezes.
Para além do processo coletivo, a Petrobras ainda enfrenta 29 processos individuais nos Estados Unidos – abertos por quem escolheu se desvincular da ação em grupo, na esperança de negociar um acordo próprio e garantir, assim, um retorno financeiro mais alto. Os reclamantes, variados, vão de fundos de pensão – como o dos empregados da cidade de Nova York – a fundações – como a Bill e Melinda Gates –, passando, claro, por toda sorte de banco. (Os processos individuais, também julgados pelo juiz Jed Rakoff, orbitam em torno da ação coletiva, como pequenos peixes que nadam ao redor de um tubarão para comer os restos; serão julgados com base no que for decidido na class action.)
Há, por fim, dois projetos de ação, já anunciados, que aguardam em banho-maria. Na Europa, a Isaf (International Securities Associations and Foundations), que reúne investidores da Espanha e da Holanda, planeja processar a Petrobras na corte de Roterdã. No Brasil, a Associação dos Investidores Minoritários anunciou que vai abrir uma ação civil pública no Rio de Janeiro (em maio deste ano, um processo similar da mesma associação, contra Eike Batista, foi rejeitado em primeira instância). “Será um absurdo os acionistas americanos serem ressarcidos e os brasileiros, não”, defende o economista Aurélio Valporto, vice-presidente do grupo. “Os acionistas brasileiros já foram lesados pela roubalheira que levou a empresa ao estado de penúria atual, e serão duplamente lesados quando a empresa for desvalorizada por causa das indenizações americanas.” Valporto diz aguardar a resolução de entraves burocráticos no estatuto da associação antes de dar início ao processo. De certa forma, aguarda também as decisões do juiz Rakoff: “Não fizemos os levantamentos das perdas. Vamos usar o resultado da class action como parâmetro.”
Numa sexta-feira fria, em meados de abril, encontrei Jeremy Lieberman pela segunda vez, em seu escritório em Manhattan. Ele vestia um suéter preto de zíper e usava quipá – o que anunciava a chegada do shabat. Perguntei por que não cultivava uma barba farta, como tende a ser comum na comunidade ortodoxa. “Minha mulher não deixaria”, respondeu, rindo.
Naquele mês, as primeiras cartas rogatórias haviam sido enviadas ao Brasil. “Em algum momento devem chegar aos destinatários, mas talvez não antes que o caso seja julgado”, comentou, aludindo aos entraves burocráticos. Disse também que, em caso de acordo, imaginava algo na ordem das dezenas de bilhões de dólares. “Os cenários estão sendo considerados.”
Contei-lhe ter ouvido, do advogado Roger Cooper, que a Petrobras levaria o caso ao tribunal. “Não há nenhuma conversa entre vocês sobre um possível acordo?”, perguntei. A resposta de Lieberman foi um abrir de mãos, com as palmas para cima, e um sorriso contido, de boca fechada. “Até os balanços atuais são falsos”, disse, em seguida. “Mesmo quando eles tentam ficar limpos não é suficiente.”
A Petrobras preferiu não receber a piauí durante esta reportagem. Enviou uma nota, pela assessoria de imprensa, em que definia os pleitos da ação como “improcedentes”, e em que reiterava estar “se preparando para o julgamento marcado para o segundo semestre de 2016”. (Ainda assim, o novo presidente da estatal, Pedro Parente, declarou em junho ao Wall Street Journal que o histórico de ações coletivas nos Estados Unidos “mostra que você faz acordos”.)
Há dois temas principais a serem julgados no caso. O primeiro é se a empresa pode ser responsabilizada pelo crime cometido por um grupo de indivíduos – indivíduos esses, vale lembrar, que ocupavam posições estatutárias. O segundo é definir o valor exato a ser pago. “É difícil separar que parte da queda das ações deveu-se à corrupção, e que parte deveu-se à baixa do preço do petróleo”, enfatizou o advogado americano Robert Finkel, do escritório Wolf Popper, quando o encontrei em Nova York.
Em caso de vitória da acusação, a indenização será determinada pelo juiz Jed Rakoff. “Ele não tem rabo preso com ninguém; é uma espécie de Sérgio Moro daqui”, disse Lieberman, confiante. Se a sentença for por corrupção, a Petrobras terá de arcar com a íntegra da dívida. Se for condenada por ingerência, é possível que reparta o valor com suas seguradoras. Na hipótese de a estatal sair vencedora, ela não será ressarcida pelos custos processuais.
O julgamento está agendado para o dia 19 de setembro, uma segunda-feira, em Nova York.
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* Trecho corrigido em relação à versão impressa, que havia informado que André de Almeida tem 42 anos.
** Está errada a afirmação de que jamais houve julgamento de class actions envolvendo ações negociadas na Bolsa de Nova York. Na verdade, ao menos onze ações ─ de um total de mais de 4 mil ─ foram a julgamento e receberam um veredito.
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