Eu ia dizer qualquer coisa poética quando Adoniran, meu gato, veio correndo e arrancou a orquídea do caule, falando que queria levar para dar de presente à mãe dele IMAGEM: SOBRAS_GERALDO DE BARROS©FABIANA DE BARROS_COMODATO INSTITUTO MOREIRA SALLES
O último inverno
Foi na Suíça ou na França? Eu havia ganhado um agasalho laranja ou azul?
Vanessa Barbara | Edição 133, Outubro 2017
Eu poderia começar fazendo um inventário das coisas que perdi: uma blusa verde com um broche de lagartixa durante uma viagem de trem. Uma pasta de dente sabor hortelã após um voo intercontinental. Um namorado, em 1982. Uma meia. Um comprimido de aspirina. Algumas lentes de contato. As chaves de casa – mas estavam dentro da sacola da feira, o que eu só descobri depois de trocar todas as fechaduras.
Lá se vão quase trinta anos e não me lembro de onde vem a frase: “Não quero morrer em Cordeirópolis”, que, por alguma razão, está anotada à margem de um caderno de francês. Com a minha letra. Outra coisa que jamais consegui confirmar é uma história que alguém me contou sobre um casal que, a título de experimento, ocultou do filho a palavra “maçã” até que ele completasse uns 6 anos de idade.
Também perdi o meu gato algumas vezes. Adoniran costumava se meter dentro de gavetas, armários, caixas vazias e uma vez passou uma semana escondido no sótão de casa. Certa noite, porém, ele escapou pela porta aberta e desapareceu. Eu tinha uns 10 anos. Meus pais garantiram que os gatos sabem o caminho de casa e sempre voltam, mas esperei várias semanas e nada. Alguns amigos da escola – não sei se inventavam para me consolar – me contavam histórias fantásticas de felinos que retornaram após anos desaparecidos, com cicatrizes de brigas e um olho faltando, histórias que tinham acontecido com o vizinho do primo de um conhecido deles, mas Adoniran não seguiu esse padrão. Passaram-se meses. Ganhei um irmãozinho de cabelos castanhos, um bebê gorducho que passava o dia mamando. Também encontrei uma lente de contato seca debaixo de uma cadeira da cozinha, mas nada de Adoniran.
Um dia ele voltou. Era um fim de tarde de verão quando meu pai abriu a porta de casa carregando um gato vira-lata preto de olhos verdes, uma bola de pelo zangada com um ar de empáfia e o olhar meio irritado de quem não veio neste mundo para cumprir ordens. Disse que o encontrou no jardim cavoucando umas margaridas. Minha mãe vinha logo atrás, estalando os dedos como fazia quando estava nervosa. Fiquei tão feliz que nem reparei que ele não tinha mais o tufo de pelos brancos na barriga, e que as orelhas não eram tão pontudas. Adoniran imediatamente tomou posse de um canto da sala e foi afiar as unhas nas pantufas da minha mãe, sem fazer caso para a minha euforia.
Depois desse dia, mesmo que, no fundo, eu soubesse que aquele gato não era Adoniran – e meus pais contavam com que eu não notasse a diferença –, continuei chamando-o por esse nome e vivia identificando traços de sua velha personalidade escondidos naquele outro animal: o jeito com que sentava no vaso de samambaias, o miado de protesto que soltava quando algo não estava de seu agrado, a mania de encarar o vazio. Gatos sabem o caminho de casa e sempre voltam, disseram os meus pais. Eu não queria perder Adoniran.
Todos os gatos que vieram depois tiveram o mesmo nome.
***
Quando meu marido chegou, eu estava parada no meio da sala com uma colher na mão. Aparentemente saí da cozinha e estava indo para o quarto, mas no caminho comecei a pensar em tatus-bola e todo aquele propósito do que fazer com a colher parece ter sido sugado ralo abaixo, desaparecendo em questão de segundos e deixando no lugar um espaço vazio, branco, assustador como uma sala sem móveis.
O início foi assim: eu estava contando uma história e de repente perdia o fio da meada. Tomava a dianteira numa reunião para defender algum ponto que achava importante, mas de uma hora para a outra não lembrava mais por que estava dizendo aquilo e o que pretendia falar na sequência. Comecei a anotar alguns tópicos para não deixá-los fugir, e aos poucos fui registrando as coisas mais triviais a fim de evitar que se perdessem pelo caminho. Por exemplo: se eu precisava ir até a área de serviço pegar uma chave de fenda, eram grandes as chances de, no caminho, me distrair com um prato sujo na sala e me desviar para lavá-lo, e na ida até a cozinha bater com o dedinho na quina e lembrar que era hora de cortar as unhas, mas no meio de tudo ser surpreendida pelo alarme de um carro na rua – de modo que eu me veria no banheiro com um prato sujo na mão e nenhuma ideia do que tinha ido fazer lá. Então quando surgia uma tarefa que exigia mais de três segundos para a execução – ou a mudança obrigatória de cômodo –, eu imediatamente pegava caneta, papel e anotava: “Chave de fenda.” Levava a folha sempre comigo, no bolso da frente da bermuda, de modo que numa manhã qualquer a lista podia ficar assim: “Lavar o rosto”, “Não sair sem aliança”, “Trocar o lixo do banheiro”, “Encher o filtro”, “Pegar guarda-chuva”, “Passar lápis no olho”.
Mas isso era só o início. Naquele dia, meu marido apenas tomou a colher da minha mão e puxou conversa como se nada de anormal tivesse acontecido, como fazemos com as crianças quando elas ameaçam chorar e temos que rapidamente distraí-las com um giz de cera ou um repolho. Parece que ele não queria fazer caso do incidente, ou quem sabe já tinha passado por algo parecido. Talvez não fosse a primeira vez que ele me encontrava parada no meio da sala com uma colher.
Os episódios de esquecimento foram se tornando constantes. Era como pensar numa coisa – por exemplo, o objeto que usamos para retirar um ovo da frigideira ou o ator que fez Homem-Aranha – e simplesmente não conseguir nomeá-la. Eu sentia que a informação estava lá, em algum lugar da minha mente, mas não sabia que caminho tomar para acessá-la. Abria uma porta e encontrava outras coisas armazenadas lá dentro como o nome daquela tia portuguesa que usava vestidos floridos (Cremilda) e o número do meu telefone antigo, ou teimava em pensar em batedeiras e abridores de lata. Fechava os olhos, prendia a respiração e tentava resgatar fisicamente a palavra do meio de um emaranhado de outras lembranças, mas não adiantava. A única saída era desistir e perguntar para alguém, correndo o risco de parecer muito estranha (“Aquele objeto furadinho, sabe? Com um cabo assim”). Só então recuperava a bendita escumadeira.
Em pouco tempo, todo mundo sabia que havia algo de errado com a minha memória. Ainda assim, no início, as coisas voltavam. Eu sentia que aquela informação existia; sabia que estava “na ponta da língua” e que bastava acionar um detalhe para que ela se acendesse. Mais tarde, isso também se foi. Aquela sensação de desconforto com a sala sem móveis parou de ser uma presença e virou ausência, e só através dos outros é que eu notava que havia grandes espaços vazios na minha memória.
Eles eram preenchidos por um material que parecia neve.
***
A erosão é inevitável e acontece num ritmo muito veloz. Do último asterisco para cá, perdi de novo a escumadeira e achei graça nessa mulher que faz listas para se lembrar de encher o filtro.
Como não faço ideia do que pretendia escrever daqui para a frente, decidi que, antes de me esgotar a compreensão das palavras, vou me lançar ao registro de um único episódio – aquele que eu gostaria que desaparecesse por último, e do qual ainda me restam algumas lembranças esparsas. Ele me bastará até que o último bocado de mim mesma se dissolva.
São as recordações do último inverno com o meu irmão.
***
Agora já não me lembro se foi na Suíça ou na França, só que aconteceu em meados dos anos 70. Eu tinha ganhado de Natal um agasalho lindo de cor laranja ou azul, vai saber, e umas botas quentes e confortáveis. Meu sonho de infância era conhecer a neve. Então lá fomos nós – eu, meus pais e o meu irmão menor – para um chalé que alugamos para a temporada, o que significa provavelmente que minha família era muito rica, ou que meu pai era um militar corrupto, ou que eu era uma modelo internacional.
Lembro bem da sensação de ver a neve cair pela primeira vez. A princípio, parecia caspa vinda do céu, ou um monte de pequenas penas brancas que alguém lançou de um edifício. A impressão que eu tinha era de que estávamos em outro planeta. Senti o frio na barriga de quem sobe um elevador panorâmico: quanto mais neve caía, mais rápido parecia que estávamos subindo. A neve cobriu as montanhas, as árvores, o telhado do chalé, as escadas, embrulhando tudo em um acolchoado branco. Quando fecho os olhos, ainda consigo evocar meus pés pisando nela, a sensação de ar limpo, o frio cortante que se enfiava através das camadas mais internas da minha blusa.
Naquele inverno, prestes a completar 19 anos, vi neve pela primeira vez. Também tentei aprender a esquiar – foi uma catástrofe. Meu irmão, sempre bom nos esportes, aprendeu quase imediatamente e conseguiu descer sozinho a montanha – os esquis maiores que ele, os óculos pousados na testa, o olhar confiante de quem só tem uns 9 anos. “É só jogar o corpo para trás, assim”, e ele saía deslizando na minha frente, enquanto eu permanecia parada, com medo de sair do lugar e cair de novo. Eu me esforçava ao máximo, respirando fundo a cada tentativa, mas era sempre tomada pelo pânico e caía. Depois de alguns dias, finalmente desisti e me contentei em ficar apenas à beira do lago, lendo um romance policial, ou observando o meu irmão, que agora ensinava as outras crianças e até chegava na frente de vários adultos.
Não me lembro se mais alguém veio na viagem conosco; talvez alguns tios e primos, ou então vizinhos, ou colegas de trabalho do meu pai. Sei que uma das experiências mais memoráveis (com o perdão da expressão) foi a de um piquenique ao ar livre perto de uma árvore que ainda tinha folhas, quando tomei uma xícara espumante de chocolate quente com pessoas cuja identidade me escapa. (Pensando bem, talvez fossem os meus pais.) O resto se perdeu. Não me lembro, por exemplo, se foi antes ou depois da nossa ida à cabana. Guardo memórias de coisas avulsas: um monte de sacos de aniagem, uma torneira difícil de abrir e o meu irmão com cara de assustado. Lembro de cair, de bater a cabeça e ter que passar uns dias de molho. Mas só tenho certeza disso porque ainda tenho a cicatriz.
Em um determinado fim de semana, meus pais resolveram passar uns dias de folga na cidade e me deixaram sozinha no chalé cuidando do meu irmão. Fazia tempo que não ficávamos juntos. Naquela época eu já estava na faculdade e não tinha mais tanto contato com o caçula, e de repente percebi que não o conhecia tão bem – ou foi só uma impressão que tive agora, cinquenta anos depois, quando a imagem dele vai sumindo da minha mente e eu não sei mais precisar se ele era destro ou canhoto.
Sugeri que fizéssemos uma caminhada até uma cabana abandonada que ficava do outro lado da estação de esqui, montanha acima, por entre as árvores. “Chegando lá nós podemos construir um iglu”, eu falei, querendo convencer o meu irmão a largar os esquis por um dia e passar a tarde comigo.
Pulamos a grade que delimitava o território da estação de esqui e subimos a trilha que ia em direção à floresta, andando devagar enquanto eu contava uma história de terror – só que eu era péssima nisso e ele só dava risada. Lembro que o vento ficou mais forte, a neve não tardaria a cair e eu hesitei, mas meu irmão pediu que continuássemos. Pelos meus cálculos, faltava pouco para chegar à cabana. “Certeza que a gente vai encontrar um monte de corpos lá”, falou o meu irmão, como se tentasse me animar. Segundo ele, o lugar era utilizado por espíritos do mal que atraíam pobres esquiadores perdidos. “Os meninos da estação é que me contaram”, explicava, “eles disseram que ninguém nunca voltou de lá.”
(Canhoto, definitivamente canhoto.)
Não lembro bem se a neve da trilha estava alta nem se havia esquilos no caminho, mas não esqueço do menino matraqueando animadamente, meio sem fôlego: “Você vai ver, a gente vai abrir a porta e vão rolar pilhas de cabeças cortadas com os olhos saltando, e um esqueleto meio vivo vai te agarrar pelos pés.” Havia muitas nuvens escuras no céu e eu apertei o passo porque achava que podia cair uma tempestade. Tirei da minha mochila dois daqueles chapéus de lã cujo nome me escapa, além de luvas e cachecóis. “Ninguém consegue sair de lá porque quando você bate a porta vem uma avalanche, então o pessoal fica preso lá e morre de fome”, o menino falou. Eu achei graça e fiquei imaginando que tipo de escola ele andava frequentando, ou que tipo de livros a mãe dele o deixava ler.
Vimos à distância um amontoado de pedras e uma pá fincada na neve, que o menino logo perguntou se podíamos levar para enterrar os corpos. “Não, não podemos enterrar ninguém porque vamos precisar comer uns cérebros”, eu respondi muito séria, e ele se empolgou. “Vai ter lá umas colherinhas de café daquelas bem miúdas e nós vamos nos revezar comendo uns suculentos miolos”, completei. “E daí vamos virar zumbis”, ele continuou, “e vamos morar no nosso iglu e caçar uns esquilos.” Deixamos a escumadeira fincada na neve e continuamos a subir.
A certa altura, ele enterrou umas bolinhas de gude ao pé de uma árvore, dizendo que era para deixar de presente para os próximos viajantes que passassem por lá, depois que a neve começasse a derreter.
É basicamente isso que eu me lembro daquele dia: da nossa conversa até chegar à cabana, enquanto as nuvens se adensavam no céu e o vento estendia sobre nós um lençol cada vez mais branco. Depois nós alcançamos o topo, passamos um tempo admirando a construção e começamos a montar o nosso iglu. Lá dentro da cabana, para a nossa surpresa – eu não lembro o que havia lá dentro, e se eu me recordasse agora decerto seria uma surpresa. Parece que tínhamos levado uns sanduíches de pepino. Eu descalcei as botas e deixei-as na entrada. O Adoniran largou a mochila e foi espiar os cômodos. Talvez tenha vindo uma tempestade; talvez nós tivemos que passar alguns dias lá, à base de sanduíches. Ou isso foi de um filme que eu vi. Não sei se a cabana estava realmente abandonada, tampouco me recordo do que aconteceu depois disso. Por mais que eu feche os olhos e me esforce para acessar essas memórias, só consigo ver paredes nuas, janelas sem vidros, formas indefinidas soterradas pela neve.
E uma orquídea – sim, lembro de uma orquídea. Parece que, dentro daquela cabana abandonada no gelo, a alguns quilômetros de distância da estação de esqui, havia um vaso com uma única orquídea que de alguma forma havia sobrevivido ao inverno. Eu fiquei de pé olhando aquele milagre, e já ia dizer qualquer coisa poética quando o Adoniran veio correndo e arrancou a orquídea do caule, dizendo que queria levar para dar de presente à mãe dele. O sorriso dele ia de ponta a ponta. É isso o que me sobrou para contar. E é tudo o que me resta.
Não sei dizer como voltamos de lá, nem se realmente voltamos de lá. Aquele foi o meu último inverno com ele – não que tenha acontecido alguma coisa naquele dia, ou talvez tenha realmente acontecido, mas porque é o último inverno que me resta na memória. Aos poucos tudo vai desaparecendo. Encontro pessoas que possivelmente já morreram, esqueço se sou casada, grito com as enfermeiras e não sei mais por quê. Quem eu fui no passado agora não existe mais. As pessoas que eu amava foram embora. Só o que me resta são as sensações do presente: a boca cheia de bolo de chocolate, o sol queimando a minha pele, uma música bonita que não me remonta a absolutamente nada. Já não sei mais se vou morrer sem ter visto a neve.
Como os gatos, nós nem sempre encontramos o caminho de volta para casa.
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