ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Orquestrando a revolta
A fanfarra do M.A.L. não corre quando a polícia bate
Juliana Cunha | Edição 82, Julho 2013
Naquela segunda-feira que parou São Paulo eles eram cerca de vinte músicos reunidos no Largo da Batata. No meio da multidão perdida, chamavam atenção por saberem exatamente para onde ir, o que fazer. Afinaram alguns instrumentos, remendaram outros e começaram a puxar tarantelas e funks com dizeres políticos. “Dança, Haddad, dança até o chão. Aqui é o povo unido contra o aumento do busão”, dizia o hit da bandinha.
A Fanfarra do M.A.L., Movimento Autônomo Libertário, nasceu em 2005 sob o insosso nome de Banda do MPL, o Movimento Passe Livre. Há dois anos resolveram se tornar independentes e passaram a tocar em quase todos os protestos apartidários da Grande São Paulo. Marcha da Maconha, Marcha das Vadias, Sopão da Gente Diferenciada. Ao todo, calculam ter musicado mais de 100 manifestações. O objetivo do grupo é ser uma banda “combativa e de luta”. “Combativa significa que a gente não corre quando a polícia bate”, explica André, 27 anos, mestrando em mudança social e participação política na USP-Leste. Ele e seus amigos não fornecem sobrenome a jornalista.
Quem não sabe o que fazer prefere ficar perto da banda. Ao meu lado, duas estudantes de 17 anos, estreantes no mundo das passeatas, se agarram aos músicos (metaforicamente) e ao imenso pano com o símbolo do MPL (literalmente) com a gana de quem precisa de uma liderança física.
Isso é tudo que o MPL não quer oferecer aos manifestantes. A própria ideia de uma banda puxando a passeata surgiu da birra do grupo com carros de som e alto-falantes. “Somos contra o carro de som para não criar hierarquia entre quem está ‘liderando’ e quem está ‘participando’ do protesto”, explica Caio Martins, membro do MPL de 19 anos e estudante de história da USP. Sem carro de som, cabe à banda garantir alguma unidade à massa humana que se aglomera. Ao longo do percurso, são eles que direcionam o rumo da multidão e fazem uma certa curadoria política dos gritos de guerra. Se o grito é nacionalista, antipartido ou anticorrupção, a banda não adere ao clamor popular e tenta mudar de música.
Já estamos longe do Largo da Batata, mas as meninas de 17 anos que conheci na concentração do ato seguem firmes em seu projeto groupie politizado. Elas e mais uma horda fazem de tudo para ficar perto da banda. A fanfarra é o “cobertor de segurança” desse grupo de neófitos, um objeto transicional, como as mantinhas a que se agarram as crianças. Serve para aplacar o trauma de ter que sair de seu mundo interior e ir para a rua. Serve como um resquício de liderança em um movimento sem líderes concretos. Para conter o assédio dos fãs, membros do MPL e amigos dos músicos formam um cordão humano, liberando espaço para os instrumentos. Entro e saio do cordão, acompanhando ora a banda, ora os neófitos. É como transitar entre dois mundos: de um lado o terreno da articulação e do discurso orquestrado, do outro o mundo da descoberta confusa e trôpega.
Se há confronto com a polícia, a banda é alvo fácil. “A gente tenta não parar de tocar para o medo das pessoas não aumentar”, explica Fred, estudante de artes plásticas da Unesp, de 19 anos. Quando a coisa realmente aperta, os músicos correm desajeitados, carregando os instrumentos que são abandonados em casas de amigos ou escondidos por comerciantes.
A fanfarra é composta por quinze músicos “orgânicos” e outros cinquenta participantes eventuais que se revezam entre surdos, caixas, trompetes, trombones, clarinetes, pratos, saxofones e latas de tinta “para que ninguém tenha a hegemonia sobre um instrumento”, explica Mateus, estudante de 16 anos de uma escola pública da Zona Sul.
No grupo não há nenhum músico de formação, mas um deles está tentando montar uma banda de jazz. Outro toca teclado em “uniões burguesas”, popularmente conhecidas como casamentos. Fogem do perfil “estudante da USP”, característico dos porta-vozes do MPL. Há desempregados e jovens da periferia. Mesmo os que estudam na USP frequentam a unidade da Zona Leste, onde a participação de alunos de baixa renda é maior que no campus da Cidade Universitária. A maior parte deles mora com os pais, estuda e vive de trabalhos eventuais.
Andamos a Faria Lima, a Juscelino Kubitschek, a Chedid Jafet, a Berrini, a Chucri Zaidan. Lívia Andrade e Paula Azevedo param em um posto de gasolina para comprar água e biscoitos. As duas têm bolhas nos pés e fazem piadas sobre pedir dispensa dos próximos dois anos de educação física. Com uma rica experiência de cinco horas de manifestação, se sentem seguras o suficiente para deixar que a banda passe enquanto enfrentam a longa fila da lojinha de conveniência da Berrini com a rua Flórida.
Na altura da ponte do Morumbi chega minha vez de largar o “cobertor de segurança”. Resolvo me integrar a um grupo de perdidos que puxa gritos desconexos sobre a Copa, corrupção e “pátria mãe gentil”. Alguém diz que devemos ir ao Palácio dos Bandeirantes. Andamos meio a esmo pelas ruas escuras e cheias de mansões do Morumbi. A maioria de nós nunca esteve naquele lugar. Um rapaz particularmente ingênuo pergunta a um policial: “Onde está o resto da passeata?” O policial ri. Dois guardas de moto partem na nossa frente desviando o trânsito e pedindo que os carros façam outro caminho. “Eles chegaram até aqui?”, pergunta uma senhora com cara de descrença. “Sim, e não sabem bem para onde vão”, responde o policial.
Quando chegamos ao palácio do governador, sofremos uma espécie de anticlímax. “A passeata” não estava lá. Um grupo menor que o nosso procurava confusão com os guardas e com a imprensa na entrada lateral do palácio. O termo para aquilo não é vandalismo, é não saber como terminar um ato. Se a polícia chega e joga umas bombas, esse pode ser um bom desfecho. Mas qual seria a outra opção para aquele grupo? Aos poucos, meus novos companheiros começam a se dispersar. O foco agora é encontrar o metrô, que, depois descobriríamos, ficava a mais de 4 quilômetros dali. Partimos por ruas das quais nunca ouvimos falar, amaldiçoando a cada passo aquele disfuncional bairro de rico.