Colegas suspeitaram que Tyrone Hayes tinha surtos paranoicos, mas a Justiça confirmou que ele foi alvo de uma campanha difamatória por sua pesquisa sobre o efeito da atrazina em sapos FOTO: ANNIE TRITT
Sapo de fora não chia
Cientista é perseguido por fabricante de herbicida
Rachel Aviv | Edição 97, Outubro 2014
Em 2001, sete anos depois de entrar para o corpo docente da Universidade da Califórnia em Berkeley, Tyrone Hayes parou de falar sobre sua pesquisa com gente em quem não confiava. Ele instruiu os estudantes de seu laboratório, onde criava 3 mil sapos, a desligar o telefone se ouvissem um estalido, sinal de que um terceiro poderia estar na linha. Notou que outros cientistas pareciam ter uma lembrança diferente dos acontecimentos, então começou a levar um gravador para as reuniões. “O segredo para viver uma paranoia feliz e bem-sucedida”, ele gostava de dizer, “é ficar de olho em seus perseguidores.”
Três anos antes, a Syngenta, uma das maiores empresas de agronegócio do mundo, pedira a Hayes que realizasse experimentos com o herbicida atrazina, usado em mais da metade das plantações de milho dos Estados Unidos. Hayes tinha 31 anos e já havia publicado vinte artigos sobre endocrinologia de anfíbios. David Wake, professor no departamento de Hayes, declarou que o colega “talvez tenha sido o sujeito com mais potencial nesse campo”. Mas, quando Hayes descobriu que a atrazina podia retardar o desenvolvimento sexual de sapos, suas relações com a Syngenta se desgastaram e, em novembro de 2000, ele pôs fim à parceria com a empresa.
Hayes continuou a estudar a atrazina por conta própria, e logo se convenceu de que representantes da Syngenta o seguiam em conferências mundo afora. Ele temia que a empresa estivesse orquestrando uma campanha para destruir sua reputação. Reclamou que, sempre que dava palestras públicas, havia um desconhecido no fundo da sala tomando notas. Numa viagem a Washington, em 2003, passou cada noite num hotel diferente. Ainda mantinha contato com alguns cientistas da Syngenta e, depois de perceber que eles conheciam detalhes de seu trabalho e de sua agenda, suspeitou que estivessem lendo seus e-mails. Para confundi-los, pediu a um aluno que escrevesse mensagens falsas do computador de sua sala enquanto ele estava fora. Mandou cópias de dados e anotações para seus pais em caixas lacradas. Num e-mail para um pesquisador da Syngenta, ele escreveu que tinha “arriscado minha reputação, meu nome… há quem diga que a minha vida por aquilo que eu pensava (e agora sei) ser verdade”. Alguns cientistas já tinham feito experimentos que prenunciavam o trabalho de Hayes, mas ninguém observara efeitos tão extremos. Em outro e-mail para a Syngenta, ele admitiu que poderia parecer que estivesse sofrendo um “complexo de Napoleão” ou “delírios de grandeza”.
Por anos, apesar de seus feitos, Hayes se sentia como um intruso. Em ambientes acadêmicos, tinha a sensação de que os colegas operavam segundo um código de maneiras afetado: falavam de maneira formal, criando uma imagem de autoridades abnegadas, e raramente admitiam que não sabiam alguma coisa. Ele tinha crescido em Columbia, na Carolina do Sul, num bairro onde menos de 40% dos habitantes terminam o ensino médio. Até a 6ª série, quando foi aceito num programa para crianças bem-dotadas e foi estudar num outro bairro, ele nunca tinha falado com uma pessoa branca da sua idade. Ele e os amigos conversavam entre si a respeito de como “os brancos fazem isso, e os brancos fazem aquilo”, fingindo que sabiam. Depois que trocou de escola e seguiu cursos avançados, as crianças negras faziam troça dele: “Ah, ele pensa que é branco.”
Tyrone Hayes tinha fascínio pela ideia de metamorfose, e passou boa parte da adolescência capturando girinos e sapos e cruzando espécies diferentes de gafanhotos. Criava larvas de sapos no alpendre da casa dos pais, e examinava como lagartos reagem a mudanças de temperatura (usando um secador de cabelos) e de iluminação (colocando os bichos na casinha do cachorro). Seu pai, instalador de carpetes, olhava para os experimentos, balançava a cabeça e dizia: “Há uma linha tênue entre o gênio e o idiota.”
Hayes ganhou uma bolsa para Harvard e, em 1985, iniciou o que chama de “os piores quatro anos” de sua vida. Muitos dos outros estudantes negros tinham frequentado escolas particulares e vinham de famílias afluentes. Ele se sentia deslocado e despreparado – foi posto em período probatório –, até que se aproximou de um professor de biologia que o estimulou a trabalhar em seu laboratório.
Com 1,60 metro e magro, Hayes se destacava vestindo roupas espalhafatosas, como Prince. O jornal estudantil Harvard Crimson, numa matéria sobre uma festa no campus, escreveu que ele estava mais para a “atmosfera rock-’n’-ready da Danceteria”, uma casa noturna de Nova York famosa na época. Até pensou em largar o curso, mas começou a sair com uma colega de turma, Katherine Kim, uma estudante de biologia de origem coreana do Kansas. Casou-se com ela dois dias depois da formatura.
Eles se mudaram para Berkeley, onde Hayes entrou no programa de biologia integrativa. Terminou o doutorado em três anos e meio e foi imediatamente contratado pelo departamento. “Ele era uma força da natureza – incrivelmente talentoso e trabalhador”, conta Paul Barber, um colega que agora é professor na Universidade da Califórnia em Los Angeles. Hayes se tornou um dos poucos professores titulares negros no país. Estava à frente do laboratório com maior diversidade racial do departamento, atraindo estudantes que eram os primeiros de suas famílias a frequentar uma universidade. Nigel Noriega, um ex-doutorando, disse que o laboratório era uma “zona de conforto” para estudantes que “estavam sufocados em Berkeley” por se sentirem alijados da cultura acadêmica.
Hayes havia se acostumado aos constantes elogios dos colegas, mas, quando a Syngenta pôs seu trabalho em dúvida, voltou a se atormentar com ansiedades antigas. Acreditava que a empresa estivesse tentando isolá-lo de outros cientistas e “jogar com minhas inseguranças – o medo de não ser bom o suficiente, de ser considerado uma fraude por todos”, contou. Disse a colegas que suspeitava que a empresa tinha “grupos de discussão” para explorar suas vulnerabilidades. Roger Liu, que trabalhou no laboratório de Hayes por uma década, como estagiário de iniciação científica e como doutorando, disse: “No começo, fiquei bem preocupado com sua segurança. Mas não conseguia discernir onde terminava a realidade e começava o exagero.”
Liu e vários outros ex-alunos disseram desconfiar das acusações de Hayes até o meio do ano passado, quando uma reportagem na Environmental Health News (em parceria com a 100Reporters) publicou documentos internos da Syngenta. Centenas de circulares, anotações e e-mails tinham vindo a público depois do acordo judicial feito pela empresa, em 2012, em duas ações coletivas movidas por 23 cidades do Centro-Oeste que a acusavam de “ocultar a verdadeira natureza perigosa da atrazina” e de contaminar a água potável. “O trabalho de Tyrone nos deu a base científica para o processo”, disse Stephen Tillery, o advogado que defendeu as causas.
Hayes dedicara os quinze anos anteriores ao estudo da atrazina, e nesse meio tempo cientistas do mundo todo ampliaram seus achados, sugerindo que o herbicida está associado a defeitos de nascimento em humanos e animais. Os documentos da empresa mostram que, enquanto Hayes estava estudando a atrazina, a Syngenta estava estudando Hayes, como ele suspeitava. O departamento de comunicação da empresa havia esboçado uma lista com quatro objetivos. O primeiro era “desacreditar Hayes”. Num caderno espiral, a gerente de comunicação da Syngenta, Sherry Ford, que se referia a Hayes pelas iniciais, escreveu que a empresa poderia “evitar que os dados de TH fossem citados mostrando que ele não era confiável”. Ele era assunto frequente de conversa em reuniões da Syngenta. A empresa buscava formas de “explorar as falhas/problemas de Hayes”. “Se envolvido em escândalo, os verdes vão abandonar TH”, escreveu Sherry Ford. Ela observou que Hayes “cresceu num mundo [Carolina do Sul] que não o aceitava”, “precisa ser adulado”, “não dorme”, estava “marcado pela vida toda”. “Quais as motivações de Hayes? – pergunta básica”, registrou.
A Syngenta, que tem sede na Basileia, na Suíça, vende mais de 14 bilhões de dólares por ano em sementes e pesticidas, e financia pesquisas em cerca de 400 instituições acadêmicas no mundo todo. Quando Hayes concordou em fazer experimentos para a empresa (que na época era parte de uma corporação maior, a Novartis), os estudantes de seu laboratório disseram estar preocupados com o fato de que empresas de biotecnologia estavam “comprando universidades”; segundo eles, o financiamento da indústria comprometeria a objetividade da pesquisa. Hayes garantiu-lhes que seus honorários, 125 mil dólares, fariam do laboratório um centro mais rigoroso. Ele poderia empregar mais estudantes, comprar equipamento novo e criar mais sapos. Embora o laboratório tivesse bom financiamento, o amparo federal à pesquisa estava se tornando cada vez mais instável e, tal qual muitos acadêmicos e administradores, ele buscava novas fontes de renda. “Entrei nisso como se fosse um pintor fazendo um serviço”, Hayes me disse. “Você encomenda a tarefa, eu cumpro o combinado e você faz o que quiser com os resultados. É sua responsabilidade, não minha.”
A atrazina é o segundo herbicida mais usado nos Estados Unidos; suas vendas no país ficam em torno de 300 milhões de dólares por ano. (O glifosato, produzido pela Monsanto, é o herbicida mais popular.) Introduzida em 1958, os custos de produção são baixos e ela controla uma ampla gama de ervas daninhas. Um estudo da EPA, a Agência de Proteção Ambiental americana, descobriu que sem a atrazina a safra nacional de milho diminuiria 6%, causando uma perda anual de quase 2 bilhões de dólares. Mas o herbicida se degrada lentamente no solo e com frequência escoa em riachos e lagos, onde não é prontamente dissolvido. A atrazina é um dos poluentes mais comuns da água potável; estima-se que 30 milhões de americanos estejam expostos a pequenas quantidades da substância.
Em 1994, a EPA, preocupada com os efeitos da atrazina na saúde, anunciou que instauraria uma revisão científica do produto. A Syngenta reuniu um painel de cientistas e professores – por intermédio de uma empresa de consultoria chamada EcoRisk – para estudar o herbicida. Hayes acabou integrando-se ao grupo. Seu primeiro experimento mostrou que os girinos machos expostos à atrazina desenvolviam menos músculos em torno das cordas vocais, e ele formulou a hipótese de que a substância podia reduzir os níveis de testosterona. “Tenho perdido muito sono por causa disso”, escreveu a um membro do painel da EcoRisk, no verão de 2000. “Estou ciente das implicações e evidentemente quero me assegurar de que foi feito e confirmado tudo que é possível.”
Depois de uma teleconferência, ele se surpreendeu com a forma como a empresa criticava o que lhe parecia serem aspectos corriqueiros do trabalho. Hayes queria repetir e validar seus experimentos, e reclamava que a empresa estava limitando seu avanço e que cientistas independentes publicariam resultados semelhantes antes dele. Decidiu abandonar o painel, enviando uma carta em que dizia que não queria ser “furado”. “Temo que minha reputação seja prejudicada se eu mantiver essa parceria com a Novartis e a consequente baixa produtividade”, escreveu. “Parecerá a meus colegas que colaborei com um plano para esconder dados importantes.”
Hayes repetiu os experimentos com fundos de Berkeley e da National Science Foundation. Depois, escreveu ao painel: “Embora não queira alardear isso até ter todos os dados analisados e decodificados, sinto que devo avisá-los de que algo muito estranho está acontecendo com esses animais.” Após dissecar os sapos, ele percebeu que alguns não podiam ser claramente identificados como machos ou fêmeas: tinham tanto testículos como ovários. Outros apresentavam múltiplos testículos deformados.
Em janeiro de 2001, funcionários da Syngenta e membros do painel da EcoRisk viajaram a Berkeley para discutir os novos achados de Hayes. A Syngenta pediu uma reunião particular, mas Hayes insistiu na presença de seus alunos, de alguns colegas e da mulher. Ele havia mantido um contato fraterno com o painel – apreciara as longas corridas em companhia do cientista que o supervisionava – e, numa grande sala no Museu de Zoologia de Vertebrados de Berkeley, começou a reunião como se fosse o anfitrião de uma conferência acadêmica. Estava de gravata nova e havia encomendado almoço para todos.
Depois do almoço de confraternização, a Syngenta apresentou um palestrante convidado, um consultor de estatística, que listou diversos erros no relatório de Hayes e concluiu que os resultados não eram estatisticamente significantes. A mulher de Hayes, Katherine Kim, disse que o sujeito parecia estar tentando “fazer Tyrone parecer o mais idiota possível”. Wake, o professor de biologia, comentou que os participantes do painel da EcoRisk pareciam cada vez mais desconfortáveis. “Eles tinham experiência suficiente para saber que as questões que o consultor de estatística estava levantando eram triviais e ridículas”, disse. “Algumas imperfeições foram apresentadas como se fossem o fim do mundo. Sou pesquisador em meios acadêmicos há quarenta anos, e nunca passei por nada semelhante. Eles queriam pegar Tyrone.”
Mais tarde Hayes enviou e-mails para três dos cientistas, dizendo: “Fui insultado, me senti encostado na parede e, na verdade, senti que havia uma movimentação desonesta e antiética.” Quando ele explicou o que tinha acontecido a Theo Colborn, a pesquisadora que popularizou a teoria de que produtos químicos industriais poderiam alterar hormônios, ela aconselhou: “Não volte para casa duas vezes pelo mesmo caminho.” Colborn estava convencida de que haviam grampeado sua sala e que representantes da indústria a seguiam. Ela ainda disse a Hayes que “olhasse sempre para trás” e tivesse cuidado com quem deixasse entrar no laboratório. “Você tem que se proteger”, avisou.
Hayes publicou seu trabalho sobre a atrazina na revista Proceedings of the National Academy of Sciences um ano e meio depois de deixar o painel. No texto, sustentou que o que chamava de “hermafroditismo” nos sapos fora induzido por exposição à atrazina em níveis trinta vezes mais baixo do que a EPA permite na água. Ele supôs que a substância poderia estar ligada ao declínio de populações de anfíbios, um fenômeno observado no mundo todo.
Numa mensagem que mandou na véspera da publicação, ele felicitou os estudantes de seu laboratório pela “postura ética” ao continuarem o trabalho por conta própria. “Nós (e nossos princípios) fomos testados, e acredito que não apenas passamos como superamos as expectativas”, escreveu. “A ciência é um princípio e um processo de busca da verdade. A verdade não pode ser comprada e, portanto, a verdade não pode ser alterada por dinheiro. Ser professor não é uma carreira, mas o propósito de uma vida. As pessoas com quem trabalho diariamente são exemplo disso e me lembram dessa promessa.”
Ele e seus alunos continuaram o trabalho, viajando para regiões agrícolas do Centro-Oeste, coletando sapos em lagoas e lagos, e expedindo 300 baldes de água congelada para Berkeley. Em artigos na Nature e na Environmental Health Perspectives, Hayes relatou que tinha encontrado sapos com anormalidades sexuais em locais contaminados por atrazina em Illinois, Iowa, Nebraska e Wyoming. “Agora que percebi onde nos metemos, não posso parar”, escreveu a um colega. Hayes começou a chegar ao laboratório às três e meia da manhã e lá permanecia por catorze horas. Ele tinha dois filhos pequenos, que às vezes o ajudavam colando códigos coloridos em frascos.
De acordo com e-mails trocados na empresa, a Syngenta estava preocupada com a pesquisa de Hayes. O departamento de comunicação compilou um banco de mais de 100 “apoiadores externos”, incluindo 25 professores, que poderiam defender a atrazina ou agir como “porta-vozes contra Hayes”. Sugeriu ainda que a empresa “comprasse ‘Tyrone Hayes’ como termo de busca na internet, de maneira que, sempre que alguém procurar por Tyrone, a primeira coisa que verá será o nosso material”. Mais tarde a proposta foi expandida para incluir as combinações “anfíbio hayes”, “atrazina sapos” e “feminização de sapos”.
Em junho de 2002, dois meses depois da primeira publicação de Hayes sobre a atrazina, a Syngenta soltou um release afirmando que três estudos haviam fracassado em replicar o trabalho dele. Numa carta ao editor da Proceedings of the National Academy of Sciences, oito cientistas do painel da EcoRisk escreveram que o estudo de Hayes dava “pouca importância à avaliação de causalidade”, omitia detalhes estatísticos, empregava o termo “dose” de forma errada, fazia referências vagas e ingênuas, além de ter errado na grafia de uma palavra. Eles disseram que a declaração de Hayes de que seu artigo tinha “implicações significativas para a saúde ambiental e pública” não fora “cientificamente demonstrada”.
Steven Milloy, um colunista de ciência freelancer que dirige uma organização sem fins lucrativos à qual a Syngenta deu dezenas de milhares de dólares, escreveu um artigo para a Fox News intitulado “Freaky-Frog Fraud” [O logro do sapo ogro], que atacava o artigo de Hayes na Nature, dizendo que não havia uma relação clara entre a concentração de atrazina e o efeito nos sapos. Milloy caracterizou Hayes como um “cientista lixo” e descartou suas conclusões “esfarrapadas” como “apenas mais um dos truques de Hayes”.
Críticas desmedidas de experimentos científicos se tornaram parte do que se conhece como campanha da “pseudociência”, um esforço de grupos de interesse e indústrias para retardar o ritmo da regulamentação. David Michaels, secretário-assistente de Trabalho para Segurança e Saúde Ocupacional, em seu livro Doubt Is Their Product [A Dúvida É Seu Produto] (2008), escreveu que as corporações desenvolveram estratégias sofisticadas para “manufaturar e magnificar a incerteza”.
Nos anos 80 e 90, a indústria do tabaco resistiu à regulamentação questionando as pesquisas científicas sobre o tabagismo passivo. Muitas empresas adotaram essa tática. “A indústria aprendeu que debater a ciência é mais fácil e mais eficaz do que debater a política pública”, escreveu Michaels. “Em vários campos da ciência, ano após ano, conclusões que poderiam embasar a regulamentação são sempre contestadas. Dados com animais são considerados não relevantes; dados de humanos, não representativos, e dados de exposição [das pessoas ou de cobaias a produtos], não confiáveis.”
No verão de 2002, dois cientistas da EPA visitaram o laboratório de Hayes e revisaram seus dados sobre a atrazina. Thomas Steeger, um deles, disse a Hayes: “Sua pesquisa tem potencial de afetar o equilíbrio de risco e benefício de um dos pesticidas mais controvertidos nos Estados Unidos.” Mas uma organização chamada Center for Regulatory Effectiveness [Centro para Eficácia Regulatória] solicitou que a EPA ignorasse os achados de Hayes. “Hayes matou e continua a matar milhares de sapos em testes inválidos, sem valor comprovado”, dizia a petição. O centro argumentou que os estudos de Hayes violavam a Lei da Qualidade de Dados, aprovada em 2000, que exige que decisões regulatórias se apoiem em estudos que atendam a altos padrões de “qualidade, objetividade, utilidade e integridade”. Quem dirige o centro é um lobista da indústria e consultor da Syngenta, Jim Tozzi, que propôs a redação da Lei da Qualidade de Dados para a congressista que a apresentou.
A EPA acatou a Lei da Qualidade de Dados e reviu sua Avaliação de Risco Ambiental, deixando claro que distúrbios hormonais não seriam um motivo legítimo para restringir o uso de uma substância até que “protocolos de teste apropriados tenham sido estabelecidos”. Steeger disse a Hayes que estava incomodado com a circularidade da crítica do centro. “A posição deles me lembra o argumento apresentado pelo filósofo [George] Berkeley, que atacou o empirismo dizendo que a confiança na observação científica é uma farsa, já que o elo entre observações e conclusões é intangível e, portanto, não mensurável”, escreveu num e-mail.
Mesmo assim, Steeger parecia resignado às frustrações da ciência regulatória e jogou água de leve no idealismo de Hayes. Quando este reclamou que a Syngenta não relatara com presteza seus achados sobre hermafroditismo, Steeger respondeu que era “lamentável mas não incomum que os que pedem o registro [de produtos] se ‘aboletem’ sobre dados que podem ser considerados adversos à percepção pública sobre seus produtos”. Ele escreveu que “a ciência pode ser manipulada para atender certos objetivos. O que você pode fazer é praticar a ‘suspensão de descrença’”. (A EPA diz que “não há indicação de que informações tenham sido retidas de forma imprópria nesse caso”.)
Depois de consultar colegas em Berkeley, Hayes decidiu que, em vez de ficar parado assistindo à Syngenta achincalhar seu trabalho, ele faria uma “manobra preventiva”. Apareceu em reportagens na revista Discover e no jornal Chronicle de São Francisco dizendo que a pesquisa científica da Syngenta não era objetiva. Ambos os artigos focavam sua biografia pessoal, começando pela cor da pele e chegando ao penteado: na época, ele usava o cabelo trançado. Hayes não disfarçou a vaidade.
A objetividade científica exige aquilo que o filósofo Thomas Nagel chamou de uma “visão a partir de lugar nenhum”, mas Hayes continuou a chamar atenção para si, fazendo comentários jocosos como “Tyrone só pode ser Tyrone”. Ele apresentou a Syngenta como vilã, mas não chegou a se encaixar no papel de herói. Era hiperativo e um pouco agitado – sempre parecia apressado ou a ponto de esquecer de fazer algo –, e encarou com empenho juvenil a ideia de derrubar os poderosos.
Os ativistas ambientais elogiaram o trabalho de Hayes e o ajudaram a atrair a atenção da imprensa. Mas estavam preocupados com seu estilo contundente. Um dos fundadores do Environmental Working Group [Grupo de Trabalho Ambiental], uma organização de pesquisa sem fins lucrativos, lhe disse para “encerrar o que estiver fazendo e aproveitar para realmente elaborar um projeto”, ou “você vai levar um pé na bunda”. Steeger comentou que o estilo belicoso o distrairia de sua pesquisa. “Você tem tempo e dinheiro para entrar em batalhas em que está em franca minoria e, para ser sincero, deslocado socialmente?”, perguntou. “A maioria das pessoas preferiria abreviar o tempo no purgatório; não conheço ninguém que entre por vontade própria no inferno.”
Hayes trabalhara a vida toda para construir sua reputação científica e agora ela parecia à beira do abismo. “Não posso lhe explicar em termos razoáveis o que isso significa para mim”, disse a Steeger. Ele fez o que pôde para provar que os experimentos da Syngenta não tinham replicado seus estudos: eles utilizaram uma população diferente de animais, criados em tipos diferentes de tanques, mais agrupados, em temperaturas mais frias e com outra tabela horária de alimentação. Em pelo menos três ocasiões ele propôs aos cientistas da Syngenta partilhar os dados. “Se realmente queremos testar a reprodutibilidade [do experimento], vamos compartilhar animais e soluções”, escreveu.
No início de 2003, Hayes foi cogitado para um cargo na Nicholas School of the Environment, na Universidade Duke. Ele visitou o campus três vezes e a universidade chegou a chamar um corretor imobiliário para mostrar casas para ele e sua mulher. Quando a Syngenta descobriu que Hayes poderia se mudar para a Carolina do Norte, onde fica sua sede de proteção de lavouras, Gary Dickson – vice-presidente de avaliação global de risco da empresa, que um ano antes estabelecera uma dotação de 50 mil dólares, financiada pela Syngenta, para a Nicholas School – entrou em contato com um diretor em Duke. De acordo com documentos revelados nas ações coletivas contra a empresa, Dickson informou o diretor das “atuais relações entre o dr. Hayes e a Syngenta”. A empresa “queria proteger nossa reputação em nossa comunidade e entre nossos funcionários”.
Havia vários candidatos para o cargo na Duke e, quando soube que não foi escolhido, Hayes concluiu que a influência da Syngenta havia pesado. Richard di Giulio, um professor da Duke que recebera Hayes em sua primeira visita, disse ter se irritado com a suposição do colega: “Uma modesta doação de 50 mil dólares não teria poder sobre uma contratação. Não há hipótese.” Mas acrescentou: “Não me surpreende que a Syngenta lamentasse a vinda de Hayes para a Duke, já que estamos a uma hora de estrada deles.” Ele comentou que o conflito de Hayes com a Syngenta era um exemplo extremo das brigas que costumam ocorrer na ciência ambiental. Com a diferença que o “debate científico transbordou para a vida emocional de Hayes”.
Em junho de 2003, Hayes foi a Washington às próprias expensas para apresentar seu trabalho numa audiência da EPA sobre a atrazina. A agência tinha avaliado dezessete estudos. Doze experimentos haviam sido financiados pela Syngenta, e todos exceto dois mostravam que a substância não tinha efeitos no desenvolvimento sexual de sapos. Os experimentos restantes, de Hayes e de pesquisadores de duas universidades diferentes, indicavam o oposto.
Numa apresentação em PowerPoint, Hayes revelou uma mensagem pessoal que lhe fora enviada por um dos cientistas do painel da EcoRisk, um professor na Texas Tech. “Concordo que o que importa é que todos os envolvidos encarem (e parem de minimizar) o fato de que laboratórios independentes demonstraram que a atrazina atuou na diferenciação das gônadas de sapos. Não há como negar.”
A EPA descobriu que todos os dezessete estudos sobre a atrazina, incluindo o de Hayes, apresentavam falhas metodológicas – contaminação de controles, variabilidade nos pontos de medição, criação imperfeita dos animais – e pediu que a Syngenta financiasse um experimento abrangente o bastante para produzir resultados mais definitivos. Darcy Kelley, integrante da comissão de conselheiros científicos da EPA e professora de biologia na Universidade Columbia, disse que, na época, “não achava que a EPA havia tomado a decisão correta”.
Os estudos de cientistas da Syngenta exibiam falhas que “realmente punham em dúvida sua capacidade de conduzir os experimentos. Eles não conseguiam replicar efeitos tão fáceis como somar dois mais dois”. Ela achava que os experimentos de Hayes eram mais respeitáveis, mas sua demonstração do mecanismo biológico que causava as deformidades não a convencia.
A EPA aprovou o uso continuado da atrazina em outubro de 2003, mesmo mês em que a Comissão Europeia decidiu retirá-la do mercado.[1] A União Europeia costuma ser mais atenta aos riscos ambientais, preferindo a cautela à incerteza. Nos Estados Unidos, questões científicas pendentes justificam adiamentos em decisões regulatórias. Desde meados dos anos 70, a EPA publicou restrições ao uso de apenas cinco substâncias industriais entre as mais de 80 mil dispersas no ambiente.
A indústria tem um papel determinante no processo regulatório norte-americano – ela pode processar os reguladores se houver erros nos dados científicos – e as análises de custo-benefício são centrais nas decisões: atribui-se um valor monetário a doenças, deficiências e vidas abreviadas, e ele é comparado aos benefícios de se manter uma substância em uso.
Lisa Heinzerling – conselheira-chefe para políticas do clima na EPA em 2009 e administradora associada do departamento de políticas públicas em 2009 e 2010 – disse que os modelos de custo-benefício parecem “objetivos e neutros, uma forma de nos livrarmos do caos da política”. Mas os algoritmos complexos “acabam sendo permissivos em relação a riscos tremendos”. Ela acrescentou que a influência do Departamento de Gerenciamento e Orçamento, que fiscaliza decisões regulatórias importantes, ampliou-se nos últimos anos. “Uma decisão passa por anos de revisões científicas e análises de custo e benefício, e por fim sucumbe no último estágio”, disse. “Isso tem um efeito terrível, desmoralizante na cultura da EPA.”
Em 2003, uma comissão de desenvolvimento de produtos da Syngenta na Basileia aprovou uma estratégia para manter a atrazina no mercado “pelo menos até 2010”. Numa apresentação em PowerPoint, o gerente global de produtos da Syngenta explicou que “precisamos da atrazina para assegurar nossa posição no mercado de milho. Sem ela não podemos defender e ampliar nosso negócio nos Estados Unidos”. Sherry Ford, a gerente de comunicação, escreveu em seu caderno que a empresa “não deveria começar a eliminar a atz [atrazina] até sabermos mais sobre” outro herbicida da Syngenta, o paraquat, que também tem provocado controvérsia, por causa de estudos mostrando que pode estar associado ao mal de Parkinson. Ela observou que a atrazina “desvia a atenção de outros produtos”.
A Syngenta instituiu “reuniões de atrazina” semanais depois que a primeira ação coletiva foi iniciada, em 2004. Às reuniões compareciam toxicologistas, o conselho da empresa, a equipe de comunicação e o chefe de assuntos regulatórios. Para abafar a publicidade negativa trazida pelo processo judicial, o grupo discutia como poderia invalidar a pesquisa de Hayes. Sherry Ford documentava comportamentos bizarros (“Não tirou o casaco”) ou frases ditas por ele (“Esta linha está grampeada?”). “Se TH quisesse se sair bem, e se tivesse os meios”, escreveu, “ele os teria mostrado quando foi solicitado.” Ela comentou que Hayes estava “se envolvendo demais com os verdes” e procurava maneiras de fazê-lo “revelar suas verdadeiras simpatias”.
Em 2005, Sherry Ford elaborou uma longa lista de tópicos para desacreditá-lo: “Ter seu trabalho auditado por terceiros”; “Pedir a periódicos a exclusão de artigos”; “Plantar armadilha com vistas a estimulá-lo a entrar na Justiça”; “Investigar financiamento”; “Investigar mulher”. As iniciais de diferentes funcionários da Syngenta estavam registradas depois de cada item, supostamente porque haviam sido encarregados de tratar do assunto. Outro conjunto de ideias, discutido em várias reuniões, era providenciar “contestação sistemática em todas as apresentações de TH”. Uma das consultoras de comunicação da empresa disse num e-mail que ela queria obter o cronograma de palestras de Hayes, assim a Syngenta poderia “começar a atingir plateias potenciais com a Planilha Erro versus Verdade”, que forneceria “provas irrefutáveis contra suas teorias imundas”. (A empresa diz que muitos dos documentos revelados nos processos judiciais dizem respeito a ideias que nunca foram implementadas.)
Com o objetivo de redirecionar a atenção para os benefícios financeiros da atrazina, a Syngenta pagou a Don Coursey, um economista que é professor titular da Escola Harris de Políticas Públicas, na Universidade de Chicago, 500 dólares por hora para estudar em que medida a proibição do herbicida afetaria a economia. Em 2006, a empresa fez chegar a Coursey dados e uma “pilha de estudos”, e editou o artigo, apresentado como um texto de trabalho da Escola Harris. (Coursey acabou revelando que havia sido financiado pela Syngenta.) Depois de entregar um esboço, Coursey recebeu um e-mail recomendando-lhe que trabalhasse mais para obter uma “clara exposição de suas conclusões a partir de sua análise”. Ele mais tarde anunciou seus achados num evento do Clube Nacional da Imprensa em Washington e disse à plateia que havia um “recado básico: a proibição nacional da atrazina terá um efeito absolutamente devastador sobre a economia norte-americana do milho”.
Antes professor-associado, em 2003 Hayes foi promovido a titular, um feito que o fez embarcar numa leve depressão. Passara a década anterior medindo sua autoestima a partir de uma série de marcos acadêmicos, todos alcançados. Nesse momento se sentia carente de objetivo. Sua mulher lhe disse que poderia vê-lo acomodado à vida de um “cientista normal, mediano, bem-sucedido”. Mas a ideia de “escrever artigos e livros que todos apenas trocamos uns com os outros” não o entusiasmava.
Ele passou a proferir mais de cinquenta palestras por ano, não só para audiências científicas, mas em institutos de políticas públicas, departamentos de história, clínicas de saúde feminina, escolas de ensino médio; para profissionais de preparo de alimentos e fazendeiros. Quase nunca recusava um convite, não importava a distância. Dizia às plateias que estava desafiando as instruções de seu orientador de doutorado, que lhe havia dito: “Deixe a ciência falar por si.” Ele tinha um faro para contar histórias – escolhia frases como “cena do crime” e “quimicamente castrado” – e parecia se deleitar com detalhes sobre os conflitos de interesse da Syngenta, apresentando teorias como se estivesse contando fofoca aos amigos. (A Syngenta escreveu uma carta a Hayes e seu diretor em Berkeley, apontando imprecisões: “Conforme formos descobrindo erros em suas apresentações, voltaremos a entrar em contato, podem esperar.”)
Em suas palestras, Hayes percebeu que sempre havia um ou dois homens na audiência mais bem vestidos do que os outros cientistas. Eles faziam perguntas que pareciam ter sido armadas para constrangê-lo: por que ninguém consegue replicar a sua pesquisa? Por que você não compartilha seus dados? Um ex-aluno, Ali Stuart, disse que “onde quer que Tyrone fosse, tinha esse cara que fazia perguntas que tiravam sarro dele”.
Hayes havia chegado a considerar que alguns dos cientistas que trabalhavam com a Syngenta eram seus amigos, mas passou a se dirigir a eles de modo desafiador. Escrevia e-mails em massa, informando as palestras programadas e oferecendo dicas sobre como desacreditá-lo. “Você não pode se aproximar da presa pensando como um predador”, escreveu. “Você precisa se transformar em caça.” Descreveu uma viagem à Carolina do Sul e sua sensação de estar fora do lugar quando “um amigo de infância foi me encontrar para contar quem tinha sido morto, quem estava no crack, quem foi preso”. “Aprendi a falar como vocês (melhor do que vocês… como admitem), escrever como vocês (mais uma vez melhor)… mas vocês não conhecem ninguém como eu… quero ver passarem um dia no meu mundo”, escreveu. Depois de ver uma mensagem na qual um lobista o caracterizava como “negro e bastante articulado”, ele começou a assinar seus e-mails como “Tyrone B. Hayes, Ph.D., a.b.m.”, numa referência a articulate blackman [homem negro articulado].
A Syngenta estava preocupada com os e-mails do cientista e encomendou a um prestador de serviços um “perfil psicológico” de Hayes. Em suas anotações, Sherry Ford o descrevia como “bipolar/maníaco-depressivo” e “paranoico esquizo & narcisista”. Roger Liu, aluno de Hayes, disse que achava que ele escrevia as mensagens para aliviar a ansiedade. Hayes muitas vezes mostrava os e-mails aos estudantes, que gostavam de seu senso de humor rebelde. Segundo Liu, “Tyrone tinha todos esses tietes no laboratório torcendo por ele. Eu era o único dizendo: ‘Cara, não provoque. Não cutuque a fera’”.
A Syngenta intensificou sua campanha de imagem em 2009, depois que ativistas, alardeando “novas descobertas”, desenvolveram o que a empresa chamou de “nova linha de ataque”. Naquele ano, um artigo na Acta Paediatrica, revisando registros nacionais para 30 milhões de nascimentos, descobriu que as crianças concebidas entre abril e julho – quando a concentração de atrazina (misturada com outros pesticidas) na água é mais alta – apresentavam risco maior de nascer com defeitos genitais.
O autor do artigo, Paul Winchester, professor de pediatria na Escola de Medicina da Universidade de Indiana, recebeu uma intimação da Syngenta, exigindo que entregasse todos os e-mails que havia escrito sobre a atrazina na década anterior. A estratégia de comunicação da empresa foi descrever o estudo como “ciência picareta” que não passava no “teste da gargalhada”. “Não está em questão se comprovei ou não as hipóteses. Claro que não provei! Epidemiologistas não tentam provar nada – eles procuram problemas”, disse Winchester.
Alguns meses depois do artigo de Winchester, o New York Times publicou uma pesquisa que sugeria que os níveis de atrazina com frequência ultrapassam o limite máximo permitido na água potável. O artigo mencionava estudos recentes nas revistas Environmental Health Perspectives e Journal of Pediatric Surgery, que demonstravam que mães que vivem perto de fontes de água com atrazina apresentavam maior probabilidade de ter bebês abaixo do peso ou com um defeito no qual intestinos e outros órgãos ficam salientes.
No dia em que o artigo saiu, a Syngenta planejou “examiná-lo linha por linha e encontrar todas as: 1) imprecisões e 2) deturpações. Transformar isso num gráfico simples”. A empresa conseguiria “alguém de fora confiável para fazer o mesmo”. Elizabeth Whelan, presidente do Conselho Americano de Ciência e Saúde, que pediu 100 mil dólares à Syngenta naquele ano, apareceu na rede de televisão MSNBC e declarou que a reportagem do Times não se escorava em ciência. “Sou uma profissional de saúde pública”, disse. “Fico muito incomodada, mesmo, ao deparar com a capa da edição de domingo do New York Times trazendo uma matéria sobre um risco falso.”
O departamento de comunicação da Syngenta escreveu artigos de opinião sobre os benefícios da atrazina e sobre a debilidade científica de seus críticos, e então os enviou para “aliados externos” que concordaram em “assinar” os textos, publicados no Washington Times, no Rochester Post-Bulletin, no Des Moines Register e no St. Cloud Times. Quando alguns textos na “linha de produção de opinião” ficaram agressivos demais, um consultor da empresa avisou que “o uso de uma certa linguagem nessas peças pode sugerir sua procedência, o que deve ser evitado a qualquer custo”.
Depois da reportagem do New York Times, a Syngenta contratou uma consultoria de comunicação, a White House Writers Group, que já representou mais de sessenta das empresas que saíram em listas dos 500 da Fortune. Num e-mail para a Syngenta, Josh Gilder, um diretor da firma e antigo redator de discursos para Ronald Reagan, escreveu: “Precisamos começar a lutar nossa própria guerra.”
Avisando que a proibição da atrazina seria “devastadora para as economias” de regiões rurais, a empresa tentou criar uma “situação em que a nova liderança política da EPA fique cada vez mais isolada”. A firma organizou “jantares exclusivos com pessoas influentes de Washington” e tentou “induzir membros do Congresso” a contestar a argumentação científica que a EPA arrazoaria numa revisão da atrazina prestes a ser divulgada. Numa circular descrevendo essa estratégia, o White House Writers Group afirmou que, “no que diz respeito à ciência, é importante ter em mente que os principais atores em Washington não entendem de ciência”.
Em 2010, Hayes comunicou ao painel da EcoRisk por e-mail: “Acabo de dar início ao que será o evento acadêmico mais extraordinário desta batalha!” Estava saindo outro artigo seu na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, no qual ele descrevia como girinos machos expostos à atrazina se tornavam fêmeas funcionais com fertilidade deficiente. Ele avisou à Syngenta que era melhor dar um gás na sua campanha de imagem. “É legal saber que na economia interna da empresa posso proporcionar emprego a tanta gente”, escreveu. Ele citou tanto o rapper Tupac Shakur como o rei africano Shaka Zulu: “Nunca deixe um inimigo para trás ou ele se levantará para pular no seu pescoço.”
O chefe de segurança global de produtos da Syngenta mandou uma carta ao editor da Proceedings of the National Academy of Sciences e ao presidente da Academia Nacional de Ciências, manifestando a preocupação de que um “artigo com tantas falhas óbvias tenha conseguido espaço numa revista científica tão reputada”. Um mês mais tarde, a Syngenta apresentou uma queixa ao reitor de Berkeley, afirmando que os e-mails de Hayes violavam as Regras de Conduta Ética da universidade, sobretudo o Respeito por Terceiros.
A Syngenta publicou mais de oitenta das mensagens de Hayes em seu site e incluiu algumas em sua carta ao reitor. Em uma delas, com o assunto “Estão prontos?”, Hayes escreveu: “Chu*a!” Em outra, disse a cientistas da Syngenta que depois de uma conferência tinha saído para beber com seus “amiguinhos republicanos” que queriam saber sobre um número que ele tinha usado em seu artigo. “Enquanto vcs estiverem atrás de mim, sei que sou f*dão”, escreveu. “Aliás, o garoto de vocês esqueceu em cima da mesa a lista de perguntas!”
Berkeley se recusou a tomar medidas disciplinares contra Hayes. O advogado da universidade lembrou em carta à Syngenta que “todos os lados têm responsabilidade igual de agir de forma profissional”. O professor David Wake disse que leu muitas das mensagens e as achou “bem engraçadas”. “Ele os trata como moleques de rua, e eles se veem como capitães da indústria”, disse. “Quando se vê perseguido, ele ataca de volta.”
Michelle Boone, professora de ecologia aquática na Universidade de Miami, que fez parte da comissão de conselheiros científicos da EPA, disse: “Todos acompanhamos o drama de Tyrone Hayes, e algumas pessoas dirão: ‘Ele devia só fazer ciência.’ Mas a ciência não fala sozinha. A indústria tem recursos ilimitados e poder de ataque. Tyrone é o único a chamar a atenção para o que estão fazendo.” Porém, acrescentou, “acho que algumas pessoas sentem que ele perdeu a objetividade”.
Keith Solomon, professor emérito na Universidade de Guelph, Ontário, que recebeu financiamento da Syngenta e integrou o painel da EcoRisk, disse que acadêmicos que recusam dinheiro da indústria não estão imunes à tendenciosidade: estão sob pressão para publicar, para conseguir efetivação e promoções. “Se faço um experimento e o comparo com dados aqui e ali, e não encontro nada, não será fácil publicar”, disse. “Os periódicos querem emoção. Querem que aconteçam coisas ruins.”
Hayes, que engordou mais de 20 quilos desde que foi efetivado em Berkeley, usava echarpes coloridas por cima do terno e brincos de prata do Tibete. No fim de suas palestras, arriscava uns versos: “Vejo abacaxis/lançados como ardis pra confundir./Vou dar de mim o melhor,/desarmar essa granada./Com ciência objetiva, ganhar essa parada.”
Em algumas de suas conferências, Hayes avisava que as consequências do uso da atrazina afetavam bem mais as pessoas de cor. “Se você for negro ou hispânico, é mais provável que viva ou trabalhe em áreas que o exponham a esse lixo”, dizia. Explicava que “de um lado estou tentando jogar dentro das regras da torre de marfim, e do outro as pessoas empregam um conjunto diferente de regras”. A Syngenta falava diretamente ao público, enquanto cientistas publicavam sua pesquisa em “revistas que não se encontram em qualquer banca”.
Hayes estava confiante de que na audiência seguinte da EPA haveria provas suficientes para proibir a atrazina, mas em 2010 a agência concluiu que os estudos indicando risco para seres humanos eram limitados demais. Dois anos depois, durante outra revisão, a EPA determinou que a atrazina não afeta o desenvolvimento sexual de sapos. Naquele momento, havia 75 estudos publicados sobre o assunto, mas a EPA excluiu a maioria deles por não atenderem às exigências de qualidade que a agência tinha estabelecido em 2003. A conclusão se baseava em grande parte num conjunto de estudos financiados pela Syngenta e liderados por Werner Kloas, um professor de endocrinologia na Universidade Humboldt, em Berlim. Um dos coautores era Alan Hosmer, um cientista da Syngenta cujo emprego, segundo uma avaliação de desempenho de 2004, incluía “defender a atrazina” e “influenciar a EPA”.
Depois da audiência, dois dos especialistas independentes que haviam participado da comissão de conselheiros científicos da EPA escreveram, em conjunto com quinze outros cientistas, um artigo (ainda não publicado) reclamando que a agência tinha repetidamente ignorado as recomendações da comissão, e que ela punha “a saúde humana e o ambiente à mercê da indústria”. “A EPA trabalha com a indústria para estabelecer a metodologia desses estudos, e muitas vezes o resultado disso é que a indústria é a única instituição que tem os meios para conduzir a pesquisa”, escreveram. O estudo de Kloas era o mais abrangente em seu gênero: os pesquisadores haviam sido examinados por um auditor externo; os dados brutos haviam sido entregues à EPA. Mas os cientistas escreveram que um conjunto de estudos com uma única espécie “não constituía um edifício suficientemente sólido para sustentar uma avaliação regulatória”. Citando um artigo de Hayes, que analisara dezesseis estudos sobre a atrazina, eles escreveram que “num estudo o melhor indicador das conclusões sobre os efeitos do herbicida atrazina era a fonte de financiamento”.
Em outro artigo, na Policy Perspective, Jason Rohr, um ecologista da Universidade do Sul da Flórida que integrou uma comissão da EPA, criticou a “lucrativa indústria da ‘ciência de aluguel’, que contrata cientistas para contestar dados”. Ele escreveu que uma revisão da literatura científica sobre a atrazina financiada pela Syngenta parecia ter deturpado mais de cinquenta estudos e havia feito 144 declarações imprecisas ou enganosas, das quais “96,5% pareciam beneficiar a Syngenta”.
Rohr, que já conduziu vários experimentos envolvendo a atrazina, disse, em conferências: “Costumo ser coberto de perguntas de sequazes da Syngenta que tentam desmerecer minha pesquisa. Eles procuram apontar furos em vez de observar os efeitos adversos das substâncias. Já tentei recrutar colegas que me disseram que não estão dispostos a mergulhar nesse tipo de pesquisa porque não querem ter a dor de cabeça de precisar defender a própria credibilidade.”
Deborah Cory-Slechta, outra ex-integrante da comissão de conselheiros científicos da EPA, disse que ela também achava que a Syngenta estava tentando sabotar seu trabalho. Professora do centro médico da Universidade de Rochester, Cory-Slechta agora estuda como o herbicida paraquat pode contribuir para doenças do sistema nervoso. “O pessoal da Syngenta costumava me seguir em palestras e dizer que eu não estava usando ‘doses relevantes para humanos’”, disse. “Eles tentavam intimidar meus alunos. Havia uma campanha para insinuar que minha pesquisa não era legítima.”
A Syngenta negou reiterados pedidos de entrevistas, mas Ann Bryan, a gerente sênior do departamento de comunicação externa, me disse por e-mail que alguns dos estudos que eu estava citando não eram confiáveis ou sólidos. Quando mencionei um artigo recente na American Journal of Medical Genetics, que traçava um liame entre a exposição de mães à atrazina e a probabilidade de que seus filhos tivessem um pênis anormalmente pequeno, testículos que não descem ou uma deformidade da uretra – problemas que aumentaram nas últimas décadas –, ela disse que o estudo tinha sido “revisto por cientistas independentes, que encontraram várias falhas”.
Ann Bryan sugeriu que eu falasse com o autor da revisão, David Schwartz, um neurocientista que trabalha para a Innovative Science Solutions, uma firma de consultoria especializada na “defesa de produtos” e estratégias que “permitem que você mostre seus melhores resultados”. Schwartz me disse que estudos epidemiológicos não podem eliminar variáveis capazes de influenciar seus resultados ou fazer afirmações sobre causas. “Fomos incrivelmente enganados por esse tipo de estudo”, disse.
Em 2012, em seu acordo nas ações coletivas, a Syngenta concordou em pagar 105 milhões de dólares para reembolsar mais de mil sistemas aquíferos pelo custo de filtrar a atrazina da água potável, mas a empresa nega qualquer infração. Bryan me disse que “a atrazina não causa e, na verdade, não pode causar efeitos adversos à saúde nos níveis a que as pessoas poderiam ser expostas no ambiente do mundo real”. Ela escreveu que se incomodava com a “insinuação de que nós tentamos desacreditar a todos. Sempre procuramos comunicar o que é corroborado pela ciência e corrigir os registros”. Afirmou ainda que “qualquer marca conhecida, ou mesmo qualquer questão conhecida, tem um programa de comunicação por trás. Com a atrazina não é diferente”.
Em agosto de 2013, Hayes interrompeu seus experimentos. Alegou que os custos de manutenção dos animais haviam aumentado oito vezes numa década, e que ele não tinha como continuar seu programa de pesquisa. Acusou a universidade de cobrar mais dele do que de outros pesquisadores do departamento. Em resposta, a direção do setor de manutenção de animais de laboratório enviou-lhe detalhadas planilhas que comprovavam que as tarifas que lhe são cobradas seguem as taxas-padrão do campus todo, que em anos recentes aumentaram para a maior parte dos pesquisadores. Em uma coluna no site da Forbes, Jon Entine, um jornalista classificado nos registros da Syngenta como um apoiador “externo”, acusou Hayes de se ater a teorias de conspiração e de liderar a “comunidade regulatória internacional numa caçada sem sentido” e “praticamente criminosa”.
No final de novembro, o laboratório de Hayes havia retomado o trabalho. Ele estava usando doações privadas para sustentar os estudantes em vez de pagar taxas pendentes; o laboratório acumulava dívidas. Na antevéspera do Dia de Ação de Graças, 28 de novembro, Hayes e seus alunos conversavam sobre seus planos para o feriado. Ele vestia um casaco de moletom laranja enorme, shorts de ginástica e tênis de corrida, e uma ex-aluna, Diana Salazar Guerrero, comia batatas fritas que outro estudante havia deixado sobre a mesa. Hayes insistiu para que ela participasse do jantar de Ação de Graças na casa dele e se mudasse para o quarto de seu filho, que agora estuda na Faculdade Oberlin, em Ohio. Diana havia acabado de pagar metade do depósito de aluguel de um apartamento, mas Hayes se preocupava com o sujeito com quem ela dividiria as despesas. “Tem certeza de que pode confiar nele?”, perguntou.
Hayes acabara de voltar de Mar del Plata, na Argentina. Tinha voado quinze horas e dirigido 400 quilômetros para falar meia hora sobre a atrazina. “Às vezes eu digo a ele: ‘Por que você não deixa para lá, Tyrone? Passaram-se quinze anos! Como tem energia para continuar?’”, disse Diana. Mas, com mais cientistas documentando os riscos da atrazina, ela presumiu que ele estaria inclinado a seguir em frente. “No início, era só esse cara maluco em Berkeley, e dá para jogar a pecha de maluco em qualquer pessoa de Berkeley”, disse. “Mas agora a maré está virando.”
Num artigo recente na revista Journal of Steroid Biochemistry and Molecular Biology, Hayes e outros 21 cientistas aplicaram os critérios de sir Austin Bradford Hill (que em 1965 delineou as condições necessárias para o estabelecimento de uma relação causal) nos estudos sobre a atrazina em diferentes classes de vertebrados. Eles argumentaram que indícios colhidos de forma independente reiteradamente mostraram que a atrazina perturba o desenvolvimento reprodutivo de machos. O laboratório de Hayes estava trabalhando em mais dois estudos que exploram como a atrazina afeta o comportamento sexual de sapos. Quando perguntei a ele o que faria se a EPA, que neste ano conduz outra revisão da segurança da atrazina, proibisse o herbicida, ele brincou: “Provavelmente ficaria deprimido de novo.”
Não faz muito tempo, Hayes leu uma descrição sua na Wikipédia. Achou desrespeitosa, mas não soube dizer se era um ataque da Syngenta ou se eram apenas internautas que o tinham em pouca consideração. Lembrou, desanimado, das discussões com especialistas financiados pela Syngenta. “Uma coisa é ser perseguido por uma discordância filosófica, outra por julgarem que estou sendo alarmista, quando não é o caso”, disse. “Mas eles nem mesmo tinham opiniões próprias. Alguém estava pagando para que tomassem uma posição.” Ele se perguntou se havia algo inerentemente maluco no ato de denúncia; talvez só os loucos persistissem. Ele estava pronto para a luta, mas parecia em busca de um oponente.
Um de seus primeiros doutorandos, Nigel Noriega, que dirige uma organização dedicada à conservação de florestas tropicais, me disse que até hoje ainda está se recuperando da experiência de sua pesquisa com atrazina, há uma década. Ele passou a ver a ciência como uma cultura rígida, “um clube próprio, uma sociedade de elite”, disse. “E Tyrone não atuava conforme os aspectos sociais apropriados a um cientista.” Noriega se preocupava com o fato de o público ter pouco entendimento do contexto que dá origem a descobertas científicas. “Não tem sentido supor que os cientistas sejam autoridades”, disse. “Um bom cientista passa toda a carreira questionando os próprios fatos. Uma das coisas mais perigosas que se pode fazer é acreditar.”
[1]O uso da atrazina na agricultura é permitido no Brasil.
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