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questões cinematográficas

Martírio – militância e arte (III)

Estabelecida a premissa de Martírio – a existência de um conflito entre guarani-kaiowás e ruralistas, sendo estes representados pela classe política brasileira, fica também definido o procedimento de incorporar ao filme gravações feitas por terceiros.

Eduardo Escorel | 15 dez 2016_11h37
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No prólogo de Martírio, através de narração em voz off, Vincent Carelli diz que 15 anos depois de ter gravado as grandes rezas dos guarani-kaiowá de diferentes aldeias, em 1988, face ao agravamento do conflito no Mato Grosso do Sul, ele voltou à região “para entender as dimensões” do movimento de retomada de terras feito pelos índios: “Assassinatos bárbaros se sucederam. A mídia trata os índios como invasores e o lobby ruralista no Congresso Nacional ameaça seus direitos”. Para atestar essas afirmações, segue-se rápida sucessão de múltiplas vozes superpostas. São trechos curtos de telejornais e discursos, nos quais se mencionam “invasões”, “reintegração de posse”, “guerra é guerra”,“queima da sede da fazenda” etc.

O prólogo dura pouco menos de 5 minutos. Começa sem narração. Após a reza gravada em 1988, segue-se reunião de lideranças indígenas, sem legendas, na qual a única palavra em português facilmente compreensível é “capitalismo”. É uma bela abertura, na qual Carelli não intervém durante a gravação. Mantém-se na posição de observador e, na montagem, para apresentar os guarani-kaiowá, confia na força das imagens e sons que registrou. (há uma minuciosa descrição da sequência de abertura de Martírio no excelente artigo de André Brasil, “Retomada: Teses sobre o Conceito de História”, publicado no catálogo do forumdoc.bh.20 anos, disponível aqui.

O prólogo termina com a gravação, feita pela TV Senado, de um discurso da senadora Kátia Abreu. Ela acusa, em tom inflamado, o movimento indígena de ser “manipulado, organizado, contra a produção brasileira”. Setor que, segundo a senadora, não quer medalhas pelo PIB, não quer subir no pódio pelo PIB: “nós só queremos paz”, conclui. E a edição deixa o final da palavra paz se superpor ao título do filme, em legenda branca sobre fundo preto.

Contrapostas dessa maneira, as palavras paz e martírio se chocam, uma não podendo coexistir com a outra. É um corte de efeito que causa impacto, repetido algumas vezes ao longo do filme para explicitar o antagonismo entre ruralistas e índios. Antagonismo que há também entre, de um lado, os registros feitos pelo próprio Carelli, assim como sua interação pessoal profunda com os guarani-kaiowá e, de outro, as variadas gravações impessoais da TV Senado, TV Câmara, de telejornais e de um video promocional, cujo valor documental é acatado sem questionamento.

Estabelecida a premissa de Martírio – a existência de um conflito entre guarani-kaiowás e ruralistas, sendo estes representados pela classe política brasileira, fica também definido o procedimento de incorporar ao filme gravações feitas por terceiros. São imagens que expressam, segundo Carelli, “a ideologia dos inimigos”. Mas, ao contrário da proximidade que mantém com os índios, ele guarda distância de ruralistas e políticos, sem interagir com eles. O inimigo, em Martírio, tratado como entidade estanque, monolítica, é, em geral, ridicularizado, e não investigado.

A adesão incondicional a um dos lados em conflito deixa clara a persistência do dilema de Carelli entre arte e militância, citado no primeiro post desta série. A inegável grandeza do seu trabalho de cineasta repousa na compaixão pelos índios, os guarani-kaiowá que no caso de Martírio o levam às lágrimas, depois de gravar um batizado, conforme diz na narração: “Parei o carro, desci e chorei convulsivamente. Chorei de emoção diante da beleza dos seus mantras; do carinho com que tratam seus aliados; da sua alegria de viver para além da penúria material em que vivem; do desprezo e do ódio que os cercam; da violência que sofrem. Deste dia em diante, toda vez que deixo uma aldeia, e não foram poucas, sou tomado pela mesma comoção.”

Martírio 1

Em certas circunstâncias, porém, os compromissos da militância se sobrepõem aos do documentarista e, ao menos em um momento, levam Carelli a alimentar ilusões em nome da causa.

O projeto de “entender” as dimensões do movimento de retomada das terras, anunciado no prólogo de Martírio, acaba se revelando retórico. Os parâmetros da atuação militante, dados de antemão, acabam se impondo à busca de compreensão. Ao contrário do documentarista que procura descobrir algo ou revelar o que está encoberto pela face manifesta dos eventos, o militante, convicto de sua missão redentora, lança-se à ação determinado a intervir e sabendo como atuar.

Exemplo do compromisso militante de transmitir visão positiva dos fatos, mesmo diante de circunstâncias adversas, é o que ocorre em Martírio quando Celso Aoki – o antropólogo que junto com Myriam Medina Aoki, sua mulher, levou Carelli ao Mato Grosso do Sul pela primeira vez, em 1988, e voltou com ele à região 25 anos depois –, com objetividade e candor, diz a um pequeno grupo de índios acampados que a “presidente da República não quer saber de terra indígena. Ela não, ela não tá dando apoio pra o…pra população…quer deixar a FUNAI fraca para colocar outra, outros ministérios, outros órgãos, para decidir a terra de vocês. […] Se depender do governo…central…lá de Brasília, da Presidência, a coisa não tá boa, não. Então. A gente então não tem, então, uma palavra pra dizer a vocês, como resolver. Nem nós temos um jeito também de fazer, pra que a coisa fique menos demorada, pra que você possam voltar lá onde é o Tekohá mesmo, pra não ficar aqui nessa situação, assim, isolado.”

Nesse exato instante, Carelli intervém sem interromper a gravação. Toma a palavra e é enquadrado de perfil pela câmera. Com habilidade, sem contraditar Aoki, procura transmitir esperança, proclamando sua fé no utilidade das gravações: “Como o Celso tá falando, nós não somos autoridade. Mas, se depender das autoridades…vocês têm que tomar a frente. E é importante que as imagens, as falas de vocês cheguem na cidade. Quando a coisa apertou, que vocês escreveram a carta [referência à carta pública de outubro de 2012, na qual 170 guarani-kaiowá da comunidade Pyelito Kue, diante da iminência de serem despejados, anunciaram que resistiriam até a morte, o que foi interpretado como ameaça de suicídio coletivo], milhares de brasileiros escutaram. Nunca tinham ouvido falar em kaiowá. E isso sensibilizou. Tem muita gente boa. Isso foi muito importante. Por que a ministra dos Direitos Humanos obrigou a Justiça a suspender a liminar; por que a voz de vocês chegou em todo lugar no Brasil. Aí o governo se sentiu pressionado. Então, essa comunicação de vocês com a gente, gente do povo, gente que não resolve, mas se a gente for muitos a gente vai ajudar vocês a pressionar.”

Levando em conta o próprio relato desolador de Martírio, além da evidência de suas imagens, é admirável que Carelli preserve tamanha confiança na capacidade dos guarani-kaiowá alterarem o desfecho do conflito secular que, até hoje, lhes têm sido francamente desfavorável. Por outro lado, parece claro que seu esforço para manter viva essa esperança afeta de forma decisiva seu trabalho de cineasta-documentarista.

A intervenção de Carelli, tomando a palavra de Aoki, em defesa do poder de pressão da voz dos guarani-kaiowá é interrompida no instante preciso em que ele acaba de dizer a palavra “pressionar”. A imagem seguinte é um plano geral da Praça dos Três Poderes, em Brasília. Repete-se, assim, um gênero de corte que busca causar impacto, como a passagem, já comentada, de “paz” para “martírio”, no final do prólogo.

(continua).

 

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