Silêncio branco – a viagem do capitão Scott
“Meu pé direito se foi, quase todos os dedos – há dois dias eu era o orgulhoso possuidor de ótimos pés.” A essa anotação, feita em seu diário pelo capitão Robert Falcon Scott, seguiu-se outra onze dias depois: “Não acredito que possamos esperar por qualquer coisa melhor agora. Aguentaremos firme até o fim, mas estamos ficando mais fracos, é claro, e o fim não pode estar longe. Parece uma pena, mas acho que não posso escrever mais. Pelo amor de Deus, cuidem da nossa gente.”
“Meu pé direito se foi, quase todos os dedos – há dois dias eu era o orgulhoso possuidor de ótimos pés.” A essa anotação, feita em seu diário pelo capitão Robert Falcon Scott, seguiu-se outra onze dias depois: “Não acredito que possamos esperar por qualquer coisa melhor agora. Aguentaremos firme até o fim, mas estamos ficando mais fracos, é claro, e o fim não pode estar longe. Parece uma pena, mas acho que não posso escrever mais. Pelo amor de Deus, cuidem da nossa gente.”
Nove meses depois, uma equipe de busca encontrou os corpos do capitão Scott e os de seus companheiros de expedição, Henry Bowers e Edward Wilson, além do diário deixado por Scott, cartas e fotografias.
O quarto integrante do grupo, Lawrence – Titus – Oates, nunca foi encontrado. Duas semanas antes da anotação final de Scott, sentindo que não podia continuar, propôs ficar para trás no seu sleeping-bag. Diante da recusa dos companheiros, tentou seguir com eles por mais um dia. Adormeceu com a esperança de não acordar mais. De manhã, ao despertar, com uma nevasca caindo, disse que “ia sair e talvez demorasse”. Saiu e nunca mais foi visto.
No diário, Scott escreveu: “Sabíamos que o pobre Oates estava caminhando para sua morte, mas apesar de termos tentado dissuadí-lo, sabíamos que era o ato de um homem corajoso e de um gentleman inglês. Todos nós esperamos chegar ao fim com atitude parecida, e com certeza o fim não está longe. Apesar de falarmos constantemente de conseguir chegar, não creio que nenhum de nós acredite nisso de coração.”
Dois meses antes desse desfecho trágico da expedição, o que parecia ser o pior possível aconteceu. De visão aguçada, segundo Scott, “Oates vislumbrou o que lhe pareceu um marco de pedras. Pouco depois, viram uma bandeira preta amarrada a um portador de trenó; por perto os restos de um acampamento; rastros de trenó e esquis indo e vindo, além de marcas claras de patas de cachorro – muitos cachorros. Isso contava toda a história. Os noruegueses se anteciparam e são os primeiros a chegar ao Polo. É uma decepção terrível, e lamento pelos meus leais companheiros”.
A bordo do Terra Nova, a expedição Antártica britânica partira do porto de Cardiff, no País de Gales, em direção ao Polo Sul, em julho de 1910. Depois de passar pela Nova Zelândia, chegaram a Ross Island, pero da Antártica, em janeiro de 1911.
Equipado também com uma câmera de filmagem, o fotógrafo Herbert Ponting (1870 – 1935) fazia parte da expedição. A inclusão de Ponting na equipe resultou da necessidade de ter prova documental – fotografias e imagens filmadas – da chegada ao Polo. Isso, além das imagens serem importante meio de financiamento da expedição, não só através do licenciamento dos direitos de exibição, mas também como grande atrativo visual de palestras.
Ponting abandonou a expedição junto com o meteorologista, pouco depois dos 5 integrantes da equipe partirem para o Polo Sul, em novembro de 1911. Voltou para a Inglaterra, levando o material filmado, já tendo vendido, junto com o capitão Scott, os direitos para a Gaumont. Antes do final do ano, as imagens filmadas por Ponting começaram a ser exibidos nos cinemas com o título Com capitão Scott ao Polo Sul, enquanto a travessia de mais de 1600 quilômetros, rumo ao Polo, ainda estava no começo.
No ano seguinte, duas outras matérias com imagens da expedição foram exibidas. E depois de anunciada, em fevereiro de 1913, a morte de Scott e seus companheiros de expedição, a Gaumont lançou no ano seguinte matéria com o título A imortal história do capitão Scott.
Tendo comprado os direitos de volta da Gaumont, Ponting teria feito mais de mil palestras, sincronisadas com projeção de fotografias e filmes, intervalos musicais e refrescos.
O grande silêncio branco (1924, 108’), em primorosa restauração feita pelo Arquivo Nacional do British Film Institute (BFI), lançado em DVD no ano passado, é a primeira versão consolidada das filmagens da expedição, feitas por Ponting, de 1910 a 1912. Também incluído no DVD está 90º South (1933, 72’), versão sonora comentada pelo próprio Ponting.
Depois de um plano do próprio Ponting girando a manivela da câmera, O grande silêncio branco começa com a chegada do Terra Nova, antigo baleeiro, à Nova Zelândia, no final de outubro de 1910. E inclui cena dos preparativos para o “assalto” ao Polo, em que na tenda que seria o túmulo deles, os próprios integrantes da expedição, com exceção do capitão Oates, demonstram como iriam cozinhar, comer e dormir na travessia da Antártica.
A decepção do capitão Scott e seus companheiros, ao descobrirem ter perdido a primazia, fora causada por cinco noruegueses, Olav Olavson Bjaaland, Hilmer Hanssen, Sverre H. Hassel, Oscar Wisting, liderados por Roald Amundsen que chegaram ao Polo Sul, em dezembro de 1911.
A caminho do Polo Norte, Amundsen recebeu a notícia de que o americano Robert Peary teria chegado àquele polo extremo. Mudando de curso, rumou para o sul. Com provisões para quatro meses, quatro trenós e 52 cachorros, a equipe partiu para o Polo Sul, em outubro de 1911, e chegou ao destino dois meses depois.
Depois de um jantar comemorativo, com direito a charutos, a equipe liderada por Amundsen armou uma tenda antes de partirem no dia seguinte: “içamos a bandeira norueguesa em um mastro de quatro metros, e pouco abaixo uma flâmula na qual o Fram (Adiante) [navio que os trouxera da Noruega] fora pintado. Dentro da tenda, numa pequena sacola, deixei uma carta dirigida a S.M. o Rei, dando notícia do que haviamos realizado. O caminho para casa era longo, e tantas coisas poderiam acontecer tornando impossível para nós fazer um relato da nossa expedição. Além dessa carta, escrevi uma epístola curta para o capitão Scott, quem, eu presumi, seria o primeiro a encontrar a tenda. Outras coisas que deixamos foram um sextante com um horizonte de vidro, uma maleta de hipsômetro, três bolsas para os pés feitas de pele de cervo, algumas botas (kamiks) e luvas.”
Além de ter ganho a corrida, Amundsen acertou ao prever que Scott seria o primeiro a encontrar a tenda, o que aconteceu três meses depois.
Além do diário e da carta para sua mulher, antes de morrer Scott deixou também uma mensagem aberta ao público: “Caso tivessemos vivido, eu teria tido para contar a história da audácia, resistência e coragem dos meus companheiros, que teria agitado o coração de todo inglês. Estas anotações precárias e nossos corpos mortos precisam contar a história, mas com certeza, com certeza, um grande e rico país como o nosso cuidará para que aqueles que dependem de nós sejam providos de maneira apropriada.”
O fracasso da expedição britânica à Antártica não impediu o Manchester Guardian de proclamar, na época, que “nada no nosso tempo, nem mesmo o naufrágio do Titanic, tocou toda a nação tão instantaneamente e tão profundamente quanto a perda desses homens”. Demonstração disso é o memorial ao capitão Scott, encomendado antes da Grande Guerra, mas inaugurado apenas em abril de 1925, em Plymouth – cerimônia também incluída como extra do DVD.
Em abril passado, no centenário do naufrágio, o Titanic marcou presença na mídia. A expedição britânica à Antártica e a morte do capitão Scott e seus companheiros, que em março também completaram cem anos, passaram em branco.
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The Great White Silence (1924, 108’), Herbert Ponting, BFI videos | preto e branco, tingido e “toned” | versão sonorizada com trilha musical original de Simon Fisher Turner | editado em dois formatos | O folheto que acompanha o DVD reúne artigos sobre o filme, o diretor e o processo de restauração.
Informações sobre as expedições de Scott e Amundsen estão disponíveis em edições eletrônicas: Journals: Captain Scott’s Last Expedition. Oxford World’s Classics. New York: Oxford University Press, 2005. E South Pole – Antartic Expedition in the Fram, 1910-1912, by Roald Amundsen, A Digireads.com Publication, 2004.
O Instituto Norueguês de Cinema editou um DVD do filme do Polo Sul de Amundsen.
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