Lincoln
O Oscar e nós
Se alguma alma ingênua, vagando na estratosfera, ainda duvidava do relacionamento íntimo existente entre política e cinema, para convencê-la de que não se trata de um boato, deveria ter sido suficiente ver o ex-presidente Bill Clinton ser aplaudido de pé antes de apresentar Lincoln como concorrente a melhor filme, na cerimônia de entrega do Globo de Ouro, realizada no início de janeiro. Nas suas breves palavras, ele fez o elogio da necessidade de conciliar princípios e determinação férrea, de um lado, com compromissos que também chamou de “acordos repugnantes” (unsavory deals).
Se alguma alma ingênua, vagando na estratosfera, ainda duvidava do relacionamento íntimo existente entre política e cinema, para convencê-la de que não se trata de um boato, deveria ter sido suficiente ver o ex-presidente Bill Clinton ser aplaudido de pé antes de apresentar como concorrente a melhor filme, na cerimônia de entrega do Globo de Ouro, realizada no início de janeiro. Nas suas breves palavras, ele fez o elogio da necessidade de conciliar princípios e determinação férrea, de um lado, com compromissos que também chamou de “acordos repugnantes” (unsavory deals).
Mas se depois disso a incredulidade tiver persistido, o interlúdio entre a mulher do presidente americano, Michelle Obama, e Jack Nicholson, no domingo à noite, visto por cerca de 43 milhões de telespectadores, apenas nos Estados Unidos, deveria ter sido suficiente para encerrar de uma vez por todas qualquer controvérsia a respeito, deixando claro que governo federal e indústria cinematográfica formam uma dupla indissolúvel na América.
Jack Nicholson e Michelle Obama, ele em Los Angeles, ela em Washington e tratando o ator apenas como “Jack”, anunciaram os concorrentes ao principal prêmio da noite e o vencedor – Argo, dirigido por Ben Affleck. Escolha que reafirmou, como se ainda fosse preciso, o que o Oscar sempre foi, uma auto-celebração de Hollywood. Em primeiro lugar, da sua própria capacidade de iludir, e em seguida, ao atribuir alguns dos principais prêmios a As aventuras de Pi, à sua aspiração máxima de continuar sendo uma fábrica de sonhos.
A hora mais escura, concorrente que provocou maior controvérsia, sendo objeto de vários artigos nos dias anteriores à premiação, recebeu apenas um Oscar – o de melhor edição de som, dividido com Skyfall.* Tentando conciliar fidelidade aos fatos nos quais baseia sua narrativa com os direitos legítimos da ficção, o filme dirigido por Kathryn Bigelow a partir do roteiro de Mark Boal ficou no limbo, vítima de contradição equivalente à que muitos críticos cobraram de seus autores – em circunstâncias especiais, é possível conseguir 40 milhões de dólares para fazer A hora mais escura, e tratar de questões contemporâneas controversas. E o filme pode até chegar a ser indicado. Mas receber prêmios da Academia está fora de cogitação.
Nesse sentido, o prêmio dado a Amor tem também algo de incongruente. Para Hollywood, dar um Oscar a um filme falado em francês, produzido na Europa – tudo bem, mas produzir um filme como o de Michael Haneke – nem pensar. Os territórios são claramente delimitados, sendo evidente que se trata de uma festa para um círculo restrito que concede acesso, pela televisão, a milhões de penetras, em seu próprio país e no exterior.
Falou-se em 1 bilhão de espectadores, o que tem aparência de ser um exagero. Inegável, porém, é que apesar de longa demais e pontuada por grosserias, a entrega do Oscar é um programa anual para milhões de pessoas.
Em The Power and the Glitter – The Hollywood-Washington Connection (O poder e o brilho – A conexão Hollywood-Washington, sem edição em português), publicado em 1991, Ronald Brownstein escreve: “Desde que existe uma Hollywood, todo presidente demonstrou estar ciente da sua existência, além de saber que Hollywood está ciente da dele, e que as figuras celebradas do palco e da tela, admiradas por milhões, o admiram […] A capital do poder e a capital do glamour estão ligadas de forma indissolúvel. […] Enquando Hollywood fizer parte da nossa vida cultural, fará parte, também, da nossa vida política.”
Domingo (24/2) tivemos a comprovação de que isso continua sendo verdade, ao menos no centro do poder mundial.
Enquanto isso, na periferia, ainda há quem faça questão de participar da festa alheia e, o que é mais grave, ministérios da Cultura que empenham recursos para isso.
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* A primeira versão do post acima foi corrigida. Onde estava escrito “A hora mais escura […] não recebeu nenhum Oscar” passou a ser “A hora mais escura, concorrente que provocou maior controvérsia, sendo objeto de vários artigos nos dias anteriores à premiação, recebeu apenas um Oscar – o de melhor edição de som, dividido com Skyfall.”
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