Cockburn e seu cão Jasper; irreverente, ele gostava de invocar um antepassado que tomou a Casa Branca na guerra anglo-americana de 1812 FOTO: TAO RUSPOLI_MONACO REPS
O aristocrata radical
Alexander Cockburn fez história zombando do jornalismo americano
Claudia Antunes | Edição 73, Outubro 2012
Quando o jornalista Christopher Hitchens morreu, no final do ano passado, seu ex-amigo Alexander Cockburn publicou um obituário que o desancava de cabo a rabo. O texto criticava, naturalmente, o apoio de Hitchens às guerras de Bush, mas também a campanha dele contra madre Teresa de Calcutá e sua pregação ateísta (“um contestador hoje em dia seria alguém que argumentasse pela existência do Ser Supremo”). Quando Cockburn morreu, em julho último, alguns de seus inimigos vingaram-se com a mesma atitude atípica de falar mal de um recém-falecido. Nenhum deles, no entanto, o fez com o brilho dos dois desafetos britânicos formados em Oxford, que anteciparam a irreverência e a agressividade da era dos blogs.
A bem da verdade, a maioria dos obituários de Cockburn na imprensa americana teve um tom amigável. O historiador Robin Blackburn, que nos anos 60 trabalhou com Cockburn na londrina New Left Review, credita essa reação ao magnetismo do jornalista, auxiliado por seu rosto anguloso de ator shakespeariano. “Ele tinha um charme enorme. E, apesar de ser capaz de ataques devastadores, as pessoas em geral o perdoavam porque ele também era capaz de mudar de opinião e voltar atrás no que tinha dito.”
Esquerdista ao extremo, Cockburn atacava o Partido Democrata até mais do que criticava a direita americana. No entanto, foram democratas moderados, antigos estagiários dele no semanário The Village Voice e na revista The Nation, que lhe dedicaram as despedidas mais afetuosas. “Não me importa que ele tenha sido tão ‘controvertido’. Eu sempre gostei dele e sempre lhe serei grato”, escreveu o jornalista Michael Tomasky.
A coluna “Press Clips”, no Voice, foi a primeira trincheira de Cockburn nos Estados Unidos, para onde o escocês criado na Irlanda se mudou em 1972. Ele não inovava, claro, ao fazer sucesso no país analisando a mídia. Victor Navasky, da Escola de Jornalismo da Universidade Columbia, lembra que antes de Cockburn houve outros: A. J. Liebling, colunista da New Yorker; I. F. Stone, opositor do macarthismo que tinha o próprio semanário. Para Navasky, que contratou Cockburn na Nation em 1984, o que o diferenciava é que, sendo estrangeiro, ele “não tinha pontes a queimar nem vacas sagradas a respeitar”.
Cockburn ironizava os próprios editores no Voice, chamando-os de men in the empty suit [homens sem poder]. Em “Como ser um correspondente estrangeiro”,uma paródia de 1976, ele se inspira em C. L. Sulzberger, que era da família proprietária do New York Times e o principal colunista internacional do jornal. O trabalho de Sulzberger, diz Cockburn, resume “o ideal platônico da reportagem internacional, que é lançar salvas e salvas de clichês na bagagem lotada de preconceitos dos leitores”.
Ficou célebre um ensaio dos anos 80 sobre o News Hour, o noticiário noturno da emissora pública PBS. O programa tinha – e tem – a reputação de ser sóbrio e equilibrado. Na visão de Cockburn, no entanto, a ideia de que todas as questões tivessem dois lados igualmente válidos não só era falsa como visava semear o conformismo numa população que, depois do escândalo de Watergate, estava farta da corrupção do poder.
Para ilustrar sua tese, ele imagina a cobertura pelo News Hour da morte de Cristo, quando se discute se Pôncio Pilatos deve lavar as mãos ou impedir a crucificação. O âncora está em Roma e seu parceiro reporta, de Alexandria, a confusão na província distante. O primeiro entrevistado é um enviado do Império que acaba de voltar da Galileia: “Tive a oportunidade de assistir a um sermão desse pregador. Não tenho dúvida de que ele é uma ameaça à paz e deve ser crucificado.” O segundo é o apóstolo Pedro, que espera num estúdio em Jerusalém: “Ele é o Filho de Deus e anuncia o segundo advento. Se possível, gostaria de ler uns trechos relevantes do profeta Isaías”, começa Pedro, cortado pelo apresentador: “Infelizmente temos que interromper aqui. Acabou nosso tempo.”
Depois da morte de Cockburn, em 21 de julho, o jornal britânico The Guardian homenageou sua família de “aristocratas radicais, ou radicais aristocráticos”. Dois irmãos dele, Patrick e Andrew, são jornalistas, assim como era seu pai, Claud, que tinha o próprio jornal, The Week, e trabalhava para o diário comunista Daily Worker. Enviado para cobrir a Guerra Civil Espanhola, Claud lutou pela República. No livro Lutando na Espanha, George Orwell critica a cobertura feita por Claud da repressão dos stalinistas aos anarquistas e trotskistas em Barcelona.
Cockburn adorava o pai. O nome de sua coluna de política na Nation, “Beat the Devil” [Enganar o diabo], vinha do título de um romance de Claud, que virou um filme de John Huston [O Diabo Riu por Último]. Há quem atribua à fidelidade filial o fato de Cockburn nunca ter renegado o dito socialismo real. Mas sua cobertura dos dias finais da União Soviética está cheia de críticas à fossilização do regime – e ao “choque de capitalismo” defendido pelo então presidente russo Boris Yeltsin.
O jornalista não se mostrava preocupado em não parecer contraditório. Costumava evocar antepassados que serviram ao Império Britânico, entre eles um almirante, sir George Cockburn, que lutou na guerra anglo-americana de 1812 e capturou a Casa Branca. O avô paterno, Henry, era diplomata (renunciou aos 49 anos por se opor ao apoio de Londres à ocupação japonesa da Coreia). A mãe de sua única filha, Daisy, é a escritora Emma Tennant, filha de um barão.
Desde os anos 90, Cockburn vivia num sítio em Petrolia, na Califórnia, a cinco horas de San Francisco. De lá coeditava a publicação CounterPunch [Contragolpe]. Tomou posições que os amigos não engoliram, como negar que os combustíveis fósseis causem o aquecimento climático (segundo ele, a tese vem do lobby nuclear). Mas o nome de Chico Mendes frequentou suas colunas – um de seus livros, The Fate of the Forest [O Destino da Floresta], é sobre a Amazônia. Numa entrevista em 2007 para a tevê do Congresso americano, ele se define como um homem do campo. Percorre o sítio seguido pelo cachorro Jasper, mostra a égua Agnes e seus dois carros de modelos que os colecionadores chamam de “clássicos”, bebedores de gasolina: um Plymouth Belvedere Station Wagon 1962 e um Chrysler Newport 1968.
Poucas pessoas sabiam que Cockburn estava com câncer. Ele mandou a última coluna para a Nation dias antes de morrer, aos 71 anos. “Era meu tio e meu herói. Me ensinou a ouvir LPs, a atravessar um rio a cavalo e a dirigir um ‘clássico’ com amor”, tuitou a atriz Olivia Wilde, filha do irmão Andrew. Elizabeth Pochoda, ex-editora literária da Nation, foi mordaz como Cockburn: “Quem mais nos insultará tão bem quanto ele?”
Leia Mais