De certa forma, somos todos otimistas, mas alguns afortunados são mais otimistas do que a média. O otimista é alegre, estimado, persistente diante das dificuldades e resistente aos fracassos ILUSTRAÇÃO: RLMARKOSSA
A propósito do otimismo
Não há motivo para acreditar que o aumento do conhecimento e o avanço da espécie caminhem juntos
André Lara Resende | Edição 76, Janeiro 2013
“Todas as religiões, quase todas as filosofias e até mesmo parte da ciência testemunham o esforço heroico, inesgotável, da humanidade para desesperadamente negar sua contingência.”
Jacques Monod
Daniel Kahneman, o psicólogo laureado com o Nobel de Economia, sustenta que, se nos fosse dada a oportunidade de escolher uma única característica para nossos filhos, não deveríamos hesitar: que sejam otimistas. Parece haver uma alta correlação entre o otimismo e a felicidade. O otimismo é um traço hereditário, tanto quanto a inteligência, a altura e a cor dos olhos. Que melhor presente para aqueles a quem queremos bem do que lhes transmitir a propensão para a felicidade?
Por duas vezes, em menos de um ano, ao terminar uma análise sobre os rumos da economia mundial, recomendaram-me a leitura de The Rational Optimist. As recomendações partiram de pessoas inteligentes, por quem tenho apreço. Não que eu esteja particularmente pessimista, mas devo andar soando muito pessimista. É verdade que tenho fama de pessimista. Nunca me importei com isso, considero quase um elogio. Refuto com mais indignação a acusação contrária, de um amigo fraterno, segundo a qual faço uso permanente de um par de óculos cor-de-rosa que não me deixariam ver a sombria realidade como ela é. O fato é que um otimista racional parece-me uma contradição em termos, soa como um oximoro.
Antes de encomendar o livro, procurei saber quem era o autor. Descubro que Matt Ridley é o quinto visconde de Ridley, tem doutorado em zoologia pela Universidade de Oxford, e que em 2011 seu livro ganhou o Prêmio Hayek, conferido à publicação que melhor representa a visão do mestre austríaco sobre a liberdade econômica. Aprendo ainda que ele era presidente do conselho de administração do Northern Rock, o banco inglês que quebrou com grande estardalhaço, imediatamente após a eclosão da crise de 2008. Sorri, e adiei a leitura que só recentemente decidi levar adiante.
Segundo Kahneman, em seu último livro Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar, a grande maioria das pessoas se acha mais competente do que realmente é, e percebe o mundo como mais benigno do que ele na realidade é. Têm assim a impressão de que seus objetivos são mais facilmente alcançáveis do que de fato são. Além disso, achamos que nossa capacidade de prever o futuro é muito maior do que é efetivamente possível. O viés otimista, segundo Kahneman, o mais importante dos vieses cognitivos, está presente em todos nós. De certa forma, somos todos otimistas, mas alguns afortunados são mais otimistas do que a média. O otimista é alegre e animado, estimado por todos, persistente diante das dificuldades e resistente aos fracassos. Tem probabilidade reduzida de passar por depressões e o seu sistema imunológico é menos vulnerável. Toma mais cuidado com a saúde, sente-se mais saudável e vive efetivamente mais. Além de mais felizes, os otimistas têm um papel desproporcionalmente importante na configuração do mundo em que vivemos. Suas iniciativas são determinantes, pois são primordialmente eles os inovadores e os empreendedores.
Esta é essencialmente a tese do livro de Ridley. Antes de ser uma defesa do otimismo, é uma defesa da livre-iniciativa, do livre-comércio, um libelo contra todo tipo de cerceamento das liberdades individuais. Ele lamenta que hoje tenha se tornado axiomático que o livre mercado não apenas estimula o egoísmo, mas o exige. Como sustenta, por exemplo, Michael Sandel em O que o Dinheiro Não Compra: a ideia de que a comercialização de todos os aspectos da vida é corrosiva do espírito público e de comunidade tem ganhado cada vez mais força nos últimos tempos.
Em The Rational Optimist, Ridley retoma a tese contrária, a dos filósofos do Iluminismo inglês, segundo os quais o comércio é indutor da confiança entre estranhos, fonte de virtude e criador de riqueza. Onde há comércio, tanto a criatividade como a compaixão florescem. Os governos e a burocracia é que são inerentemente antiliberais. São constituídos primordialmente para se apropriarem da riqueza gerada pela iniciativa privada. Segundo ele, há um padrão que resiste há mais de 6 mil anos: os comerciantes criam riqueza e os políticos a estatizam. Para Ridley, a abertura comercial leva à prosperidade e a opção pela autarquia, à pobreza – essa é a lição da história, tão gritante, que é difícil acreditar que se possa defender o contrário.
Compreende-se que o livro tenha sido premiado com o Prêmio Hayek. Ridley parece realmente um liberal progressista, não um conservador sob o manto do liberalismo, como é mais comum nos dias de hoje. Sustenta que os empresários, apesar de proclamarem o contrário, são sempre contra o mercado competitivo. Em conluio com a burocracia, criam todo tipo de barreiras à competição, organizam-se em oligopólios, tornam-se ineficientes e sem criatividade. Ridley é contra as patentes e a propriedade intelectual – o que é raro. Para ser coerente com o seu liberalismo, deveria se manifestar também contra as restrições à imigração, à liberdade de ir e vir, de decidir onde viver, talvez uma das mais básicas das liberdades. Mas seria pedir demais, concedo.
Não me surpreende que meus amigos tenham gostado do livro de Ridley. Num mundo cada dia mais esclerosado pela burocracia e soterrado de impostos, a defesa da livre-iniciativa e a desconfiança, à la Hayek, de todo tipo de intervenção governamental são compreensíveis. Mas a recomendação me foi feita não pela defesa da livre-iniciativa – apesar de alguma desconfiança, não sou visto por eles como antiliberal. Recomendaram-me, acredito, para que eu ouvisse as razões do otimismo. O argumento de Ridley a favor do otimismo parece-me, efetivamente, mais interessante do que a sua defesa da livre-iniciativa. Mais interessante porque menos convencional e aparentemente menos polêmico. Embora ele pretenda que o seu otimismo seja indissociável da livre-iniciativa econômica, os fundamentos de seu otimismo não dependem, como ele quer fazer crer, da aceitação da superioridade do livre mercado. Ao contrário, têm raízes profundas na mentalidade, tanto à esquerda quanto à direita, do homem moderno. Trata-se, essencialmente, da crença no progresso da humanidade. Nem seus argumentos, nem suas evidências são novos, mas, apresentados de forma ordenada e abrangente para sustentar a tese do progresso da humanidade, impressionam.
Os avanços dos últimos três séculos foram efetivamente extraordinários. Desde o Iluminismo, a superstição e a religiosidade opressiva foram relegadas a um segundo plano. O uso predominante da razão, como ferramenta de conhecimento do mundo, levou à mentalidade científica, à revolução industrial e tecnológica. A melhoria da qualidade de vida, desde o fim do século XVIII, não tem precedentes em toda a história da humanidade. Depois de resenhar as muitas esferas nas quais o progresso foi sistemático e contínuo nos últimos séculos, Ridley volta suas baterias contra os pessimistas, contra todos aqueles que insistem em anunciar que o fim dos bons tempos está próximo. Recorre a John Stuart Mill para lembrar que, infelizmente, “não é aquele que tem esperança quando há desespero, mas aquele que se desespera quando há esperança que é admirado por muitos, como sábio”. Segundo ele, hoje não faltam profetas do apocalipse, travestidos de sábios. Os ecologistas, aqueles que sustentam que os limites físicos do planeta estão próximos, são o alvo principal de suas críticas.
Ridley concede que os pessimistas talvez tenham razão num ponto: se o mundo continuar como é, terminará em desastre. Ocorre que o mundo não continuará a ser como é. Essa é a essência da noção de progresso. O verdadeiro perigo está na redução da velocidade das mudanças. Ridley sustenta que a humanidade se tornou uma “máquina coletiva de resolver problemas”. Uma máquina que resolve desafios através da mudança na forma de ser e agir, uma máquina que funciona através de inovações e invenções.
Segundo Ridley, essas inovações são estimuladas pelo mercado, pela escassez que eleva os preços e estimula o desenvolvimento de alternativas e os ganhos de eficiência. O argumento, mais uma vez, não é original. O progresso tecnológico, a seu tempo, se encarregará de tudo resolver. Ridley incorre, entretanto, num erro primário, mas infelizmente frequente. Serve-se da tese do mercado, do sistema de preços como transmissor de informações, para desqualificar o argumento dos riscos ecológicos. A grande maioria dos danos ecológicos, como a destruição da fauna, a poluição do ar, dos rios e dos oceanos, é exemplo de bens públicos, nos quais não há custo para o indivíduo que deles desfruta, mas há um custo coletivo. Os bens públicos são o caso clássico da chamada falha de mercado. Bens cujo custo coletivo do consumo não é passível de ter preços determinados pelo mercado. Em relação à questão dos limites físicos do planeta, da destruição do meio ambiente provocada pela ação humana sobre a Terra, confiar no sistema de preços de mercado – uma máquina efetivamente extraordinária de resolver problemas, como sustenta Hayek – não faz sentido. Qualquer aluno do curso básico de microeconomia deveria saber disso.
Em relação à questão ecológica, mais do que qualquer outra, para que a tese otimista seja defensável, é preciso que ela seja reformulada, não dependa exclusivamente do mercado e do sistema de preços. Os estímulos do sistema de preços não são os únicos responsáveis pela engenhosidade e imaginação humanas. A tese do otimismo só é defensável se desvinculada da defesa ideológica do mercado mesmo quando o mercado é reconhecidamente incompetente.
É possível argumentar que o ser humano é um animal excepcionalmente adaptável, que a partir do momento em que desenvolveu a capacidade de se comunicar verbalmente, e sobretudo por escrito, houve uma descontinuidade no seu processo darwiniano de adaptação ao meio ambiente. Tornou-se o único animal capaz de modificar o seu modo de ser e agir muito mais rapidamente do que faria através de sua mutação genética. A velocidade do processo de evolução cultural é muito maior do que a do processo de evolução biológica. Os “memes”, na terminologia do evolucionista inglês Richard Dawkins, são ainda mais eficientes do que os genes. Os memes, na polêmica mas ilustrativa analogia de Dawkins, seriam unidades culturais equivalentes aos genes, que dariam à evolução das ideias caraterísticas semelhantes ao processo da evolução biológica. A capacidade de adaptação do ser humano não pode ser subestimada. Portanto, se e quando ficarem claros os sinais de que os limites físicos do planeta estão efetivamente próximos, a imaginação e a engenhosidade humanas saberão se adaptar. A continuidade da trajetória de progresso ilimitado estaria garantida – essa é a versão ilustrada da tese otimista. A concepção de uma inventividade humana que responde exclusivamente a estímulos comerciais, e considera o mercado a principal fonte de transmissão cultural, sofre de um primarismo ideológico que desqualifica o argumento do otimismo. Recorro, assim como Ridley recorreu para questionar o prestígio dos pessimistas, a John Stuart Mill: a ideia de uma sociedade estruturada apenas pelas relações e sentimentos suscitados pelo interesse pecuniário é essencialmente repulsiva.
Para que o progresso da humanidade não seja interrompido, para que o ser humano seja capaz de se adaptar, de continuar a fazer avanços tecnológicos que o impeçam de esbarrar nos limites físicos do planeta, é preciso que os sinais sejam recebidos e compreendidos. É aqui que entra o pessimista. O pessimista é quem capta os sinais de perigo e soa o alarme.
Mas retomemos antes a tese otimista. O argumento do otimismo, quando não tacanhamente reduzido apenas aos estímulos de mercado, parte da evidência de que a humanidade progrediu e que o progresso se acelerou de forma acentuada nos últimos três séculos. A partir do século XVIII o progresso material, o aumento da população e da qualidade de vida, se acelerou. Esse progresso deve-se à especial capacidade de adaptação do ser humano, cuja engenhosidade, uma vez livre das amarras da superstição religiosa e do autoritarismo despótico, permite compreender, controlar e moldar seu ambiente, como nenhuma outra espécie. Como o conhecimento científico e o progresso são cumulativos, possivelmente exponenciais, não há limite para a evolução da humanidade, que apenas deu início à sua fase científico-tecnológica.
Ocorre que, se houve progresso até aqui, concluir que continuará a haver sempre progresso não é uma inferência lógica, como pretendem os otimistas, mas sim uma profissão de fé. Esse é o ponto central de Cachorros de Palha, o brilhante e perturbador livro de John Gray. Acreditar no progresso contínuo e ilimitado é uma fé, e, como toda fé, tem raízes religiosas. O humanismo liberal de hoje tem o mesmo poder de convencer e tranquilizar que tiveram no passado as religiões reveladas, mas sua crença central no progresso ilimitado não passa de uma superstição, tão ou mais distante da verdade sobre o animal humano do que qualquer religião. O progresso científico é um dado, mas o progresso da humanidade é um mito. O humanismo não é uma ciência, mas uma religião. Uma religião cujo dogma é o progresso da humanidade, a fé de que a humanidade pode e criará um mundo melhor do que o atual. Curioso é que o termo otimismo, cunhado no início do século XVII, não tinha o sentido atual, de uma visão esperançosa do futuro. Significava quase o oposto disso: o mundo, criado por um Deus todo benevolente, era ótimo, o melhor dos mundos possíveis, e, portanto, não poderia ser melhorado. É esse otimismo no seu sentido original que foi criticado por Voltaire, com bom humor, em Cândido, e por Schopenhauer, com mau humor, em O Mundo como Vontade e Representação, ao argumentar que o absurdo do otimismo salta aos olhos e o seu oposto – que vivemos no pior dos mundos possíveis – é mais defensável.
O que se entende hoje por otimismo é algo bem distinto: a esperança num futuro melhor. O otimista, no sentido contemporâneo, deveria ser mais corretamente chamado de esperançoso. As origens religiosas do otimismo na sua versão original são bem conhecidas, mas as raízes religiosas do otimismo moderno, do humanismo secular, são menos reconhecidas. Os positivistas franceses, Henri de Saint-Simon e Auguste Comte, criaram a Religião da Humanidade, uma visão do progresso da civilização baseada na ciência. A conotação religiosa da noção de progresso fica mais evidente quando se compreende que o otimismo humanista é a esperança de que a vida seja melhor no futuro. Essa é uma noção essencialmente cristã. Até o cristianismo, a história era entendida como cíclica, sem propósito nem direção. O cristianismo é que introduziu a noção de uma trajetória, de queda e redenção. O otimismo humanista adaptou a doutrina da salvação cristã, transformando-a num projeto de emancipação da humanidade. Como sustenta John Gray, a ideia de progresso é uma versão laica da crença cristã na Providência Divina.
O conhecimento é efetivamente cumulativo, possivelmente até mesmo exponencial, mas a vida humana não é uma atividade cumulativa. Não há garantia de que aquilo que avançou numa geração não vá ser integralmente perdido na próxima. Quem tiver dúvida não deve deixar de ler Stefan Zweig em O Mundo de Ontem. Intelectual sofisticado, judeu austríaco, nascido em 1881, Zweig conheceu o apogeu da Europa antes de 1914, um mundo interligado e civilizado, do qual Viena, sua cidade natal, era a expressão máxima. Um mundo que começou a ruir com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, desintegrou-se no período que se seguiu, até desembocar na Segunda Guerra Mundial. No início dos anos 40, Zweig exilou-se no Brasil. Ainda encontrou forças para escrever Brasil, País do Futuro, um elogio otimista ao país que escolheu para se refugiar, mas não resistiu ao desmoronamento de seu universo: em 1942, em Petrópolis, suicidou-se com sua mulher. Nada substitui a leitura do belo livro de Zweig, mas o tom de seu libelo contra o otimismo do século XIX pode ser avaliado por algumas frases: “O pior é que foi justamente o sentimento que mais valorizávamos – nosso otimismo compartilhado – que nos traiu. Nosso idealismo, nosso otimismo baseado no progresso, nos levou a mal avaliar e a subestimar o perigo. O século XIX operava sob a ilusão de que todos os conflitos poderiam ser resolvidos pela racionalidade. Mal sabíamos, no nosso comovente liberalismo otimista, que cada novo dia que vem raiar em nossa janela pode esmagar nossa vida.”
Para refrescar a memória da barbárie do século passado, como contraponto às evidências do livro de Ridley, recomendo a leitura dos primeiros capítulos de Pós-Guerra: Uma História da Europa desde 1945, do historiador inglês Tony Judt. Seu livro começa com o fim da Segunda Guerra Mundial, período posterior à morte de Zweig, uma época que nos acostumamos a considerar como a mais próspera de todos os tempos. Como afirma Gray, o que faz o século XX especial não é o fato de que ele tenha sido repleto de genocídios muito além dos campos de batalha, mas sim a escala dos assassinatos em massa. Sobretudo o fato de que foram premeditados e perpetrados em nome de projetos ambiciosos de melhora da humanidade. As evidências raramente são conclusivas, pois primeiro tomamos partido, depois as interpretamos. Pode ter havido avanços no século passado, mas não faltaram barbárie e sofrimento infringidos em nome do progresso.
A noção de progresso se apoia na crença de que o aumento do conhecimento e o avanço da espécie, ao menos no longo prazo, andam juntos, mas não há razão para acreditar que assim seja, apenas esperança. O mito de Prometeu, acorrentado por ter se apoderado do fogo dos deuses, assim como o de Adão e Eva, condenados pela tentação irrefreável, contêm uma verdade que nos é profundamente desconfortável: o conhecimento não nos libera de nossa condição de ser apenas mais um animal sobre a Terra. É por isso que Gray afirma que nos últimos dois séculos a filosofia se voltou contra a fé, mas não se livrou do principal equívoco do cristianismo: a crença de que os homens sejam radicalmente diferentes dos outros animais.
Abrimos mão da ilusão da individualidade preservada após a morte, da esperança religiosa na vida eterna, baseada na fé, mas insustentável diante do avanço da razão, e as substituímos pela ilusão do avanço eterno da humanidade. Ainda que assim fosse, que a humanidade efetivamente progredisse, seja lá o que se entenda por progresso da humanidade, que nos importa, a nós individualmente, condenados a envelhecer e a morrer? Por que motivo o progresso da humanidade deveria nos reconfortar de uma vida de sofrimentos, doença e morte? Por que deveríamos estar dispostos a nos oferecer em sacrifício no altar do progresso desse ser abstrato que denominamos “a humanidade”? Poder-se-ia argumentar que a compaixão, a capacidade de sentir com o outro, que faz de nós um animal social, que nos une, não apenas àqueles que conhecemos e que nos são próximos, mas até mesmo aos desconhecidos, a todos com quem compartilhamos a Terra, seria o amálgama de nossa identificação com a humanidade. Mas são coisas muito distintas. Uma coisa é a compaixão pelos nossos contemporâneos, mesmo em relação a suas condições de vida depois de nossa morte. Também a compaixão pelos que nos antecederam, cuja história conhecemos, faz sentido. Mas, se aceitamos a morte como definitiva, é difícil sustentar que o eventual progresso de uma entidade abstrata, com a qual nada compartilharemos, possa ser invocado para minorar nossa dor.
Precisamos desesperadamente encontrar um sentido para a existência. Despidos da religiosidade tradicional, já não podemos mais crer na sacralidade da vida. Passamos então a crer no progresso da humanidade. Infelizmente, trocamos uma bela e reconfortante ilusão por um mito arrogante. É essa arrogância que aparece no desprezo pelo planeta, que subordina toda biodiversidade ao nosso instinto predador, que nos faz acreditar sermos capazes de controlar nosso mundo e nosso destino.
Talvez não possamos prescindir de algumas ilusões. A esperança é com certeza uma delas. Talvez por isso o otimismo nos faça bem. Ter esperança de que as coisas vão melhorar quando estão mal, de que seremos capazes de realizar os desafios que nos impusemos, de que iremos em frente, mesmo sem saber o que significa ir em frente, parece fundamental para nossa saúde física e emocional. Mas é preciso ter esperança sem procurar razões para ter esperança. Aceitar a contradição entre nosso impulso vital, que é a esperança, e a razão, que é o instrumento de que dispomos para nos guiar num mundo perigoso. Um mundo implacável, do qual temos dificuldade de extrair um sentido. A razão deveria nos fazer cautelosos, sóbrios e humildes. A razão toma nota, faz o mapa de nosso entorno, soa o alarme, alerta para os riscos. Por isso é essencialmente pessimista, sempre atenta para o que pode dar errado, para os riscos do desconhecido. A esperança é humilde e essencialmente irracional. Há uma insuperável contradição entre a racionalidade e o otimismo. Uma contradição vital, da qual dependemos e não podemos prescindir. Quando pretendemos superar essa contradição, explicar o otimismo pela razão, traímos a razão. Quando a esperança se torna arrogante, traímos a esperança.