José Alberto de Carvalho (sentado, de óculos e cabelo comprido) com os dez irmãos, a mãe e o tio padre nos anos 70, época em que notou a queda no tamanho das famílias brasileiras FOTO: ÁLBUM DE FAMÍLIA
O enigma e o demógrafo
Vida de professor mineiro é um espelho da virada populacional que ele ajudou a detectar e que explica boa parte do desemprego baixo, mesmo em época de crescimento fraco
Rafael Cariello | Edição 80, Maio 2013
José Alberto Magno de Carvalho, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e um dos fundadores da moderna demografia no país, morreu nesta terça-feira, dia 27, em Belo Horizonte. Tinha 79 anos. Semanas antes ele havia sofrido uma queda em casa, foi internado, e ainda no hospital sofreu uma parada cardíaca, com falência gradual de órgãos. “Todo mundo reconhece que ele é o pai da demografia brasileira”, disse Marcia Castro, que foi aluna de Carvalho e hoje é professora na Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard.
Carvalho foi um dos primeiros a identificar, no final dos anos 1970, uma reviravolta, para muitos inesperada, na dinâmica demográfica do país. Com base nos imprecisos dados disponíveis, notou que as mulheres brasileiras haviam passado a ter um número cada vez menor de filhos. O tamanho médio das famílias diminuía e, tudo indicava, continuaria a cair. “Foi uma surpresa”, ele disse à piauí, numa entrevista para o perfil abaixo, publicado em maio de 2013. “Na época, quase todo mundo acreditava que continuaríamos a conviver com um rápido crescimento populacional.”
Ele próprio e sua família serviam como exemplo daquela mudança. Carvalho nasceu em São Vicente de Minas, onde foi criado com outros dez irmãos. O demógrafo teve quatro filhos e sete netos. Era atleticano doente. Gostava de pescar, de tomar cachaça, de conversar e, sobretudo, de dar aula. Mesmo aposentado, continuou a frequentar a universidade. Só deixou de ser presença constante nos corredores da instituição quando a pandemia do coronavírus interrompeu as atividades letivas regulares. O afastamento o entristeceu. “Era uma unanimidade, como professor”, lembrou Cássio Turra, que foi aluno de Carvalho e hoje é professor do departamento de demografia da UFMG. “Ele fazia qualquer um se apaixonar pela demografia.” (Atualizado em 27 de outubro de 2020)
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Na manhã da Quinta-Feira Santa, em março, o professor José Alberto Magno de Carvalho levantou-se cedo para pescar. Munido de um caniço simples, sem molinete, levava dois tipos de isca – milho verde, guardado num pequeno pote de vidro, e uma espécie de massa de pão, feita com farinha de trigo, leite e fubá.
Caminhou despreocupado, como fizera na véspera, até o rio parcialmente represado que corre nos fundos da sede de sua fazenda, em São Vicente de Minas, um pequeno município de 7 mil habitantes distante quatro horas de carro de Belo Horizonte. Havia chegado à cidade, onde também nasceu e passou a infância, dois dias antes.
Carvalho, um senhor alto, magro, de voz grave e sobrancelhas grossas, é tratado por colegas e ex-alunos como um dos pais da demografia brasileira, a ciência encarregada de medir e estudar a dinâmica populacional humana. Participou da criação dos cursos de pós-graduação ligados à disciplina, nos anos 70, na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais, hoje reconhecida como um centro de excelência na área. No final dos anos 90, tornou-se o primeiro brasileiro – o único, até o momento – a ser nomeado presidente da associação mundial de demógrafos, a IUSSP (sigla em inglês para União Internacional para o Estudo Científico da População).
Aos 72 anos, contudo, o professor mineiro parece se orgulhar mais de sua origem e de seu time de futebol do que da carreira acadêmica. Quem deixa a estrada de asfalto para trás e toma o caminho de terra que conduz à Fazenda Saudade se depara, diante da casa térrea principal, com dois mastros imponentes. No mais alto tremula o estandarte do Clube Atlético Mineiro. Um pouco abaixo se avista a bandeira do Brasil.
Quando está ali, o demógrafo costuma passar as tardes de folga na varanda. De sua cadeira divisa um mar de montanhas que se perde no horizonte. Conta histórias longas, fazendo algum suspense. As pausas são sempre seguidas por uma admoestação ao interlocutor: “Vai escutando!” É também comum ele se referir, com vaidade mal disfarçada de modéstia, à própria disposição moderada e cautelosa, sobretudo quando descreve embates ideológicos. “Eu, como bom mineiro, nunca fui maniqueísta.”
No final dos anos 70, José Alberto de Carvalho ajudou a identificar uma reviravolta, para muitos inesperada, na dinâmica demográfica do país. Com base nos imprecisos dados disponíveis, notou que as mulheres brasileiras haviam passado a ter um número cada vez menor de filhos. O tamanho médio das famílias diminuía e, tudo indicava, continuaria a cair. “Foi uma surpresa”, lembrou, naquela manhã, enquanto colocava isca no anzol. “Na época, quase todo mundo acreditava que continuaríamos a conviver com um rápido crescimento populacional.”
Parte dos efeitos dessa mudança só começou a ser sentida nos últimos anos. Um número crescente de pesquisadores tem associado o comportamento atual da economia à redução na taxa de fecundidade das mulheres brasileiras. Para eles, a inflexão demográfica iniciada nos anos 70 explica, em grande medida, o desemprego baixo, mesmo quando o crescimento rateia, acompanhado de alta na renda e queda da desigualdade.
À tarde, o demógrafo deixou para trás a pescaria e o dolce far niente. Ia visitar a mãe. Aos 91 anos, ela ainda vive em São Vicente de Minas. Na casa simples, próxima à praça central e à igreja, dona Mariquinha, como é conhecida, recebia os numerosos membros da família, que aos poucos chegavam para a Semana Santa. Ela teve, ao todo, doze filhos, gestados entre os 18 e os 40 anos de idade. A primeira menina morreu pouco tempo depois do parto. José Alberto veio em seguida e se tornou o primogênito.
Sentada à mesa comprida de madeira coberta com uma toalha de plástico, dona Mariquinha tomava sem pressa uma xícara de café com leite, indiferente à algaravia dos filhos e netos. Falavam todos ao mesmo tempo na sala de jantar, onde um retrato da Santa Ceia pende da parede. Acomodado numa poltrona perto da janela, Carvalho fumava. A figura longilínea – mede quase 1,80 metro – e triste – suas sobrancelhas com frequência se unem numa expressão melancólica ou inquisitiva, formando um acento circunflexo, um telhado de duas águas sobre os óculos – fazia lembrar um dom Quixote sem barba.
Após dar duas batidinhas com a mão no meu braço, dona Mariquinha apontou para o filho e me disse, como quem confia um segredo: “Ele me ajudou a criar os outros.” Uma das irmãs, Ângela, pescou a conversa e completou: “O Zé Alberto foi o arrimo nosso.”
O demógrafo é casado, desde os anos 60, com Nazaré, uma senhora simpática e agitada, de 69 anos. Juntos, tiveram quatro filhos e sete netos. “E não vai passar disso”, Carvalho me assegurou, com sua voz de barítono. “Essa história de família grande acabou. Mesmo nos lugares mais pobres. Você vai a uma favela e ninguém tem mais de três filhos. Irmão, no futuro, vai ser uma coisa rara.” Tratava os parentes mais próximos e a mudança nos tamanhos das diferentes gerações de sua família como exemplares de seu objeto de estudo. “É a história do Brasil.”
A diminuição do número de filhos, ele disse, aconteceu primeiro entre os mais ricos, a partir de meados dos anos 60, chegando em seguida, com atraso inversamente proporcional à renda, ao restante da população.
A cadeia de eventos que liga a queda na taxa de fecundidade a seus efeitos sociais e econômicos atuais pode ser apresentada de forma esquemática. Nos anos 80, o número de filhos por mulher caiu de maneira dramática, mesmo entre as famílias pobres. Nos anos 90, pela primeira vez, o número absoluto de crianças parou de crescer, resultado da queda na fecundidade uma década antes. Ficou assim mais fácil, para o poder público, colocá-las quase todas na escola.
No final dos anos 2000, essa mesma geração chegou afinal ao mercado de trabalho; um número declinante de jovens, mais bem-educados, contribui hoje para a inédita escassez de trabalhadores pouco qualificados. O desemprego se mantém baixo, a renda aumenta e a desigualdade cai. Segundo essa lógica, o Brasil da era Lula começou a tomar forma duas décadas antes da chegada ao Planalto do ex-sindicalista, também ele integrante de uma família numerosa.
A queda no número médio de filhos por mulher representa a etapa final daquilo que os pesquisadores chamam de “transição demográfica”. “A transição é o feijão com arroz de todo demógrafo”, me disse Eduardo Rios-Neto em sua sala no prédio da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, em Belo Horizonte.
Rios-Neto, chefe do Departamento de Demografia, tem 57 anos e foi aluno de José Alberto de Carvalho. Tem olhos claros, rosto redondo e cabelo partido de lado. Naquela manhã, no início de abril, carregava três canetas no bolso da camisa de botões com mangas curtas. A aparência certinha de engenheiro não se estende à sua sala. Papéis e livros sobre as duas mesas do amplo gabinete pareciam ter sido revirados por ladrões ou pela polícia.
“A transição demográfica é um fato estilizado a partir de uma regularidade empírica; algo que você observa em quase todos os países”, ele disse. “Num primeiro momento, você tem mortalidade alta e fecundidade alta, com crescimento populacional próximo de zero.” É o caso da Europa antes da Revolução Industrial. “A mortalidade começa então a cair, numa velocidade maior do que a queda na fecundidade, o que eleva o ritmo de aumento da população. Depois cai a fecundidade e, no último momento, as duas taxas são baixas. É quando você passa a ter crescimento zero ou negativo.” É desse patamar, no qual já se encontram muitos países ricos, que o Brasil está se aproximando.
Demógrafos concordam hoje que tais etapas são comuns a quase todas as sociedades, mas o tempo de duração e a intensidade dos efeitos de cada uma delas variam. O caso brasileiro, no século XX, foi muito mais rápido do que aquilo que se conhecia, historicamente, em países ricos. “Nós fizemos em quarenta anos o que a Inglaterra fez em 120”, disse Carvalho.
Em grandes linhas, é o processo de urbanização e de modernização da sociedade que explica a transição demográfica. A partir da década de 30, com os avanços da medicina, ações de saúde pública e alguma melhora nos padrões de vida, a mortalidade começou a cair no Brasil. Ao mesmo tempo, as famílias continuavam a ter um número grande de filhos, superior, em média, a seis para cada mulher até os anos 60. Como resultado da alta fecundidade, acompanhada da queda na taxa de mortalidade, a população brasileira cresceu de maneira rápida entre os anos 40 e 70. Falava-se, à época, em “explosão demográfica”.
A razão de fundo para o que veio a seguir, a queda da taxa de fecundidade, é a racionalidade econômica: a partir dos anos 70, com a urbanização e as pressões de custo de vida associadas a ela, os casais no Brasil escolheram ter um número cada vez menor de filhos.
Mas outras razões, ligadas à modernização da sociedade, reforçaram os estímulos econômicos para a diminuição no tamanho das famílias. “A ‘mão invisível’ da economia não funciona no automático; ela tem que passar pela consciência das pessoas”, disse Maria Coleta de Oliveira, professora do Departamento de Demografia da Unicamp. “No caso do Brasil, acho que a organização do trabalho foi fundamental. A mulher é o pivô dessa história. Nas formas não capitalistas de trabalho, elas podiam entrar e sair da atividade produtiva, e ter mais filhos. Com o assalariamento, inclusive no mundo rural, isso acabou. Passaram a ter uma jornada fixa. As pressões para a restrição ao número de filhos aumentaram.”
Eduardo Rios-Neto também chamou atenção para o papel da tevê. Nos anos 90, ele participou, ao lado de outros demógrafos e cientistas sociais, de uma pesquisa que buscava captar a influência das telenovelas sobre o tamanho das famílias. “A queda na fecundidade tem a ver com o cálculo econômico, é óbvio. Mas descobrimos que a Rede Globo teve também um efeito de modernização e secularização da sociedade, a conta-gotas.”
As famílias que apareciam na tela nunca eram grandes, segundo ele por razões práticas. Era difícil escrever tramas para núcleos familiares maiores, e também não era fácil dirigir as crianças. O padrão televisivo teve impacto em todas as regiões e todas as classes sociais.
Tudo somado, a taxa de fecundidade despencou. Em 1980, as mulheres brasileiras ainda tinham, em média, 4,4 filhos ao longo de toda a vida. Em 1991, já eram apenas 2,7 filhos. No último Censo, feito em 2010, cada mulher tinha em média 1,9 filho, já abaixo da taxa de reposição da população, que é de 2,1 filhos por mãe.
Às nove e meia da manhã, na Sexta-Feira da Paixão, uma pequena multidão já se acomodava no interior ventilado da igreja que ocupa o centro da praça e da vida religiosa em São Vicente de Minas. A luz, intensa lá fora, invadia o ambiente filtrada por grandes janelas basculantes, pintadas com as cores translúcidas dos vitrais. Cerca de 400 pessoas sentadas, e outra centena em pé, esperavam a cerimônia de confissão comunitária.
Do lado de fora, o pedreiro João José da Silva, de 84 anos, fazia hora enquanto o padre não dava o ar da graça. Disse ir diariamente à missa. Naquele dia, havia ajudado a montar a cruz de quase 3 metros que bloqueava a entrada principal da igreja. Estava vestido com roupa de domingo: camisa polo para dentro da calça social e sapatos lustrosos.
Alguns minutos mais tarde, a procissão da Via Sacra já se aproximava da última estação, encenada diante da cruz erguida pelo pedreiro. Um homem vestindo uma túnica branca levava, à frente, um crucifixo de madeira preta. Atrás vinham o andor com a imagem de Jesus e uma banda de instrumentos de sopro. O surdo marcava o passo da toada lenta e fúnebre.
A mãe de seu João, ele disse, teve doze filhos. Ele próprio, viúvo há 22 anos, teve cinco, que lhe deram apenas dois netos. “Hoje o povo não quer mais família grande, não”, explicou. “Está evitando mesmo. Tem um, dois filhos, no máximo. Eles falam que ficou mais difícil de criar.”
O fenômeno, nacional, se repete mesmo numa cidade católica como São Vicente. O uso de métodos contraceptivos “artificiais” é, para a Igreja, pecaminoso, lembrou José Alberto de Carvalho numa conversa que tivemos, dias mais tarde, em Belo Horizonte. “O interessante”, ele disse, “é que, quando as mulheres decidiram ter um número menor de filhos, fizeram isso apesar das discussões teóricas, apesar das recomendações da Igreja e até mesmo da dificuldade de acesso à pílula anticoncepcional.”
Segundo o economista Samuel de Abreu Pessôa, pesquisador da Fundação Getulio Vargas, a queda na taxa de fecundidade provocou uma revolução no mercado de trabalho brasileiro.
Pessôa, um paulistano de 50 anos, alto e quase calvo, tem pelo menos duas coisas em comum com José Alberto de Carvalho. Confere importância central à dinâmica demográfica para explicar a história econômica, e aprecia cachaça. Ao me receber para o almoço em seu apartamento, num bairro de classe média em São Paulo, serviu uma tradicional marca de aguardente artesanal, produzida em Minas.
O que se vê agora no mercado de trabalho, ele disse, é uma espécie de imagem invertida da lógica que marcou a maior parte da história brasileira. Até os anos 80, o rápido crescimento populacional, associado ao pequeno investimento em educação pública, criou uma oferta constante de mão de obra pouco qualificada, mantendo os salários baixos.
Numa das apresentações que costuma fazer para clientes e colegas, Pessôa mostra um gráfico que representa a evolução do gasto estatal com educação no país ao longo do tempo. Esse investimento se manteve baixo entre as décadas de 50 e 70, justamente quando a população mais crescia, e só passou a subir de maneira contínua a partir dos anos 80.
Mesmo o pouco dinheiro destinado à escola favorecia os mais ricos. Na década de 50, cada estudante universitário recebia 75 vezes mais recursos que um aluno do ensino fundamental. O Estado barrava, assim, a melhor chance de mobilidade social para os mais pobres – e forçava a pobreza a reproduzir mais pobreza.
“Era um sistema totalmente maluco”, afirmou o economista. “Não é à toa que a gente virou essa sociedade com favelas, deterioração do espaço urbano e criminalidade. A gente fez de tudo para virar isso. Acho até que virou pouco. Com tudo o que a gente fez lá atrás, é surpreendente como vivemos numa sociedade calma.”
O inverso dessa lógica ocorre agora, com a queda das taxas de crescimento populacional e a convergência no padrão de família entre os mais ricos e os mais pobres. “A taxa de fecundidade dos pobres, ou seja, o número de filhos por mulher, está convergindo para a taxa de fecundidade dos ricos”, disse Pessôa.
“Isso está tirando um imenso poder de barganha dos ricos. Antes você tinha um monte de pobre pouco qualificado para trabalhar para você. Agora tem cada vez menos. O rico tem dois filhos, o pobre também, dá um pouquinho mais de educação, e aí falta empregada doméstica para trabalhar na casa do rico. O salário vai subir, e a desigualdade vai cair.”
Parte da queda na desigualdade se dá pelo efeito conjunto das decisões reprodutivas de todas as famílias, ao determinar o tamanho da geração seguinte de trabalhadores. No passado, quando havia poucos profissionais mais qualificados, o valor dessa educação extra que possuíam era recompensado, no mercado, com salários bem mais altos. O que os economistas chamam de “retornos” ao investimento em educação – o modo como as diferenças de escolaridade são traduzidas em renda – eram maiores. Esses retornos têm diminuído nos últimos anos.
“Isso tem a ver, ao mesmo tempo, com a questão demográfica e com o aumento da escolaridade média da população”, me disse Simone Wajnman, demógrafa da UFMG, em sua sala, em abril. Com menos gente com baixa escolaridade, e mantida a procura pelos trabalhos que esse grupo de pessoas desempenha, o salário de quem ganha menos tende a subir. Numa velocidade mais rápida do que a do salário de quem tem, por exemplo, o ensino médio completo.
Tal mudança, a que Samuel Pessôa se refere como histórica, não traz necessariamente crescimento econômico nem garante que o Brasil venha a se aproximar dos níveis de renda dos países ricos. “Mas certamente seremos um país mais justo, daqui pra frente”, ele disse, “talvez crescendo pouco e com nível de renda médio. É nessa direção que nós estamos indo. O que já é uma combinação infinitamente melhor do que aquela da minha infância.”
Quando criança, José Alberto de Carvalho morou com os pais e os irmãos na casa paroquial de São Vicente de Minas. “Eu nasci lá; era para eu ter sido muito católico”, me disse o demógrafo numa tarde da Semana Santa. Padre Chico, responsável pela paróquia, era irmão de dona Mariquinha. O pai, José do Carmo, trabalhava como funcionário administrativo da prefeitura. Recebia um salário mínimo por mês.
“Do ponto de vista social, a gente era de classe média, porque a mamãe era irmã do vigário”, explicou Carvalho. “Mas em termos de renda era muito apertado, até mesmo na comida. O prato do dia a dia era arroz, feijão, abobrinha e um pedacinho de carne de porco. Era muito controlado. O presente, no Natal, era um carrinho de madeira.”
Ângela, uma das irmãs de José Alberto, descreveu o cotidiano da família numerosa como “uma loucura”. “Mas tinha ordem. Nosso pai matava um frango, no domingo, e, a cada semana, a melhor parte era de um dos filhos. O pior é que às vezes ele ainda trazia quatro, cinco pessoas da missa e mandava servir para elas também. Mas nunca passamos necessidade.”
Era o final dos anos 40, início da década de 50, no interior de Minas Gerais. O convívio nos clubes da cidade, e até mesmo na igreja, era informalmente segregado. Havia bancos separados para negros e para brancos durante a missa. Por um breve período, houve até mesmo clubes exclusivos para simpatizantes da UDN, de um lado, e do PSD, de outro. “E o pessoal que era do PTB?”, perguntei, em referência à legenda que se situava à esquerda daquelas outras duas agremiações. “Aqui em São Vicente não tinha PTB, não”, respondeu o demógrafo, com um sorriso no rosto.
Como, segundo Carvalho, um dos grupos políticos reuniu o maior número de moças, enquanto o outro ficou com os rapazes, a separação foi desfeita. Mas permaneceu no que dizia respeito à cor da pele.
A exceção era a escola, garantem os irmãos. “Ali nunca houve discriminação”, afirmou Ângela. Carvalho frequentou o colégio primário, em São Vicente, até os 11 anos. Para continuar os estudos, entrou para o seminário dos irmãos maristas, em Mendes, no sul do estado do Rio. “Naquele tempo, eu não teria outra alternativa para continuar a estudar.”
O regime de internato era rigoroso. Carvalho chamou a atenção para duas restrições, em particular. Era proibido tomar água fora das refeições, e não se podia visitar a família durante as férias. “A gente ficava por lá mesmo, capinando. Dos 11 aos 18, meus pais me visitaram apenas duas vezes. Mas eu tenho a maior gratidão aos maristas, que me deram uma formação razoável, inclusive em termos éticos. Qualquer outra coisa seria cuspir no prato em que comi.”
Certo dia, no último ano de estudos, o aluno recebeu, em Mendes, a notícia de que seu pai havia sofrido “uma ameaça de derrame”. Permitiram, excepcionalmente, que o seminarista viajasse a São Vicente. Durante a breve estada em casa, ruiu qualquer vocação sacerdotal que o rapaz pudesse ter tido. Uma menina da cidade chamou a sua atenção. “O que era bonita essa moça!”, lembrou Carvalho, mais de meio século depois, unindo as sobrancelhas no alto do rosto. “Filha de dinamarquês com uma morena de Minas. Você imagina.”
O demógrafo disse ter ficado um ano em São Vicente, sem saber direito que rumo tomar, até que seu tio, o padre Chico, tivesse uma conversa séria com ele. Fez então vestibular para economia e se mudou para Belo Horizonte. De lá, ajudava a sustentar a família. Trabalhou como contínuo, num banco. Mais tarde, receberia uma bolsa da faculdade, destinada aos melhores alunos. Em 1964, “esse ano fatídico”, concluiu o curso. Pouco depois, foi contratado como professor na universidade. Ele e Nazaré decidiram se casar.
“Mas papai me fez o favor de morrer na véspera do meu casamento civil. O dinheiro que tinha para a lua de mel eu usei para pagar o enterro. Eu e a Nazaré nos casamos na igreja no dia seguinte à missa de sétimo dia. Mamãe, que não tem nem o curso primário, ficou viúva com pouco mais de 40 anos. Mas tinha que continuar a vida, não tinha? Eu era professor da UFMG. Trabalhava lá e mandava o dinheiro para cá. Vários dos meus irmãos estavam na adolescência. Foi uma saga.”
O esforço do demógrafo servia para tentar realizar o que seu aluno, Eduardo Rios-Neto, disse ser, em regra, “quase uma impossibilidade lógica”: “É praticamente inviável para um cidadão normal ou pobre fazer um grande investimento em educação se ele tiver, digamos, sete filhos.” Dos dez irmãos de Carvalho, apenas dois não chegaram à universidade. Ninguém é rico, alguns têm uma vida confortável, outros vivem de maneira remediada.
Na Quinta-Feira Santa, metade da família se reuniu na casa de dona Mariquinha. Já de noite, lembravam, em coro, um antigo sucesso da música caipira: Colcha de Retalhos. “Aquela colcha de retalhos que tu fizeste/ juntando pedaço em pedaço foi costurada/ serviu para nosso abrigo em nossa pobreza/ aquela colcha de retalhos está bem guardada.” Como no poema de Drummond, a lua e o conhaque botaram o demógrafo comovido como o diabo. Ele também cantava.
Num trajeto de carro entre a Fazenda Saudade e o centro urbano, Carvalho comentou as mudanças do seu tempo de infância e juventude para os dias de hoje. “A pobreza diminuiu. São Vicente mudou demais. Sempre teve uma certa indústria de laticínios, mas agora está desenvolvendo muito a área de serviços. Tem muito bar, restaurante, academia de ginástica.”
Nem todos estão satisfeitos com as mudanças, contudo. O fazendeiro Alaor Leite Guimarães, de 53 anos, mora não muito longe da casa de dona Mariquinha. Ao se encontrarem num final de tarde, em março, ele e Geraldo, um dos irmãos de Carvalho, comentaram sobre o infortúnio de um amigo em comum. O conhecido havia sido forçado a fechar a fábrica de doce de leite que mantinha. “Está difícil arrumar gente para trabalhar”, explicou Guimarães. Ele próprio encerrou a fabricação da cachaça Mula Manca, que funcionava havia dezoito anos na sua fazenda. “Acabou por falta de mão de obra. Quando você diz que é para ir para a roça, eles não querem. E olha que o salário da roça, hoje, é salário bom.”
O motivo do desinteresse, avalia Guimarães, são o excesso de regras trabalhistas e os “vales” criados pelo governo. “Tem vale pra tudo”, reclamou. Ao ouvir a queixa de um comerciante local sobre a dificuldade de “arrumar gente”, Carvalho deu outra explicação: “É claro que é difícil. Não nasce mais criança.” Descontado o exagero, proposital, os especialistas em mercado de trabalho têm usado argumentos próximos àquele destacado pelo demógrafo.
Em um artigo para os jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, no início do ano passado, o economista-chefe do Itaú Unibanco, Ilan Goldfajn, constatou que “algo interessante” acontecia no país. “O desemprego tem melhorado num contexto de piora da economia”, escreveu.
“O crescimento do PIB desacelerou para cerca de 2,7% no ano passado”, apontou, fazendo referência à evolução de tudo o que havia sido produzido no Brasil em 2011, quando ainda era recente a memória do espetacular salto de 7,5% em 2010. Uma freada desse tipo, argumentou Goldfajn, “normalmente levaria a um aumento do desemprego”. Mas não foi o que ocorreu, nem em São Vicente de Minas, nem na maior parte do país. “O que está acontecendo? O mercado de trabalho está se descolando do resto da economia? Quais as consequências?”, ele se perguntava.
Um ano depois, o crescimento da economia ficou ainda mais lento. Ao longo de 2012, o PIB subiu apenas 0,9%. Mas o desemprego, que no final de 2011 já tinha sido o menor desde 2002, repetiu o resultado em dezembro passado.
Já naquele primeiro artigo, Goldfajn afirmava que mudanças demográficas, com efeitos sobre a quantidade de gente que chega a cada ano ao mercado de trabalho, ajudavam a explicar o que ele chamou de “enigma do desemprego”. Uma ideia semelhante vinha sendo desenvolvida, havia algum tempo, por Naercio Menezes Filho, professor de economia na Universidade de São Paulo e no Insper, o Instituto de Ensino e Pesquisa.
Em um trabalho escrito em 2006, em parceria com Luiz Guilherme Scorzafave, da USP, Menezes Filho já se mostrava capaz de prever, com bastante antecedência, o cenário de virtual pleno emprego e de aumento dos salários, em especial para os trabalhadores pouco qualificados, que se confirmou nos últimos anos. A partir de dados estatísticos para vários estados brasileiros, colhidos no período entre 1985 e 2004, Menezes Filho estimou a tendência de comportamento da procura por mão de obra – ou seja, das vagas abertas pelas empresas. Calculou também a tendência de variação do número de pessoas oferecendo trabalho – determinada principalmente pelo ritmo de aumento da população, e também pela variação dos salários.
A tendência encontrada pelos pesquisadores, e projetada para o futuro, é de que o número de vagas de emprego aumente 1% para cada ponto percentual de aumento do PIB. “Assim, se o país crescer 20% em dez anos, o número de vagas também aumentaria mais ou menos 20%”, explicou Menezes Filho. “Os dados indicam que, em longo prazo, a variação da procura por mão de obra tende a acompanhar o crescimento do PIB.”
A grande mudança encontrada pelos dois autores foi do outro lado, o da oferta de mão de obra, uma decorrência da queda abrupta no crescimento da população brasileira desde os anos 80. Há três décadas, a parcela adulta da população crescia cerca de 3% a cada ano. Hoje, o aumento anual desse contingente, disse Menezes Filho, é de 1,2%. Juntando as duas informações – sobre o comportamento da demanda e da oferta de trabalho –, o professor do Insper afirma que a economia do país precisa crescer relativamente pouco, nos próximos anos, para manter uma situação de quase pleno emprego.
“Ponha aí um aumento de 1,5% na oferta de mão de obra”, disse o economista, supondo, por segurança, que a elevação dos salários leve mais gente a procurar emprego do que indica a tendência de 1,2% de crescimento demográfico. Bastaria ao país crescer mais de 1,5% para criar, segundo os autores do estudo, uma porcentagem equivalente de empregos. O resultado seria um mercado de trabalho ainda aquecido. “Sempre vai ter uma pequena flutuação, de curto prazo, por fatores idiossincráticos. Mas o desemprego não deve aumentar. A conta é bastante simples.”
O economista Fabio Kanczuk, também professor na Universidade de São Paulo, é mais cauteloso. Ele não discorda dos efeitos positivos da dinâmica demográfica sobre a taxa de desemprego. Mas chama a atenção para o comportamento do emprego no país, que, ele diz, “não está indo bem”. O ritmo de criação de vagas na economia, em relação ao total das pessoas já contratadas, tem caído desde o início de 2010.
“A desaceleração no ritmo de criação de vagas é muito forte nos últimos meses”, afirmou Kanczuk, no final de abril. “Não sei se vai continuar a se comportar desse jeito. Mas, se continuar caindo, não tem demografia que ajude. Uma hora aumenta o desemprego.” Ilan Goldfajn, do Itaú, faz ressalva semelhante. “Se a economia continuar crescendo pouco, o desemprego vai acabar aumentando”, ele disse. “Mas o que é pouco? Pouco é 3%? Não. Pouco agora é 1%.” Foi nesse piso que a mudança no crescimento populacional mexeu, e de maneira favorável aos trabalhadores.
A evolução demográfica do país, segundo Menezes Filho, também coloca em contexto menos voluntarista conquistas dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. O número de crianças, definidas como pessoas de zero a 14 anos, cresceu 8% no Brasil entre 1980 e 1985, me disse o economista numa tarde chuvosa em São Paulo. Já entre 1990 e 1995, essa fatia da população aumentou apenas 1%. Nos últimos cinco anos do século passado, ela finalmente começou a diminuir.
Uma quantidade praticamente estável de crianças certamente contribuiu, ele argumentou, para a ampliação do acesso à escola fundamental durante os anos de Fernando Henrique no poder. Essa mesma geração de crianças, dez anos mais tarde, começou a entrar no mercado de trabalho, já durante o governo Lula. Foi então que a fatia de brasileiros de 15 a 24 anos de idade repetiu a queda vertiginosa constatada no número de crianças da década anterior. Se entre 1995 e 2000 a população de jovens havia crescido 11%, dez anos depois, entre 2005 e 2010, aconteceu algo antes impensável. O número de jovens encolheu, cerca de 4%. Uma consequência dessa mudança na dinâmica demográfica é que há hoje muito menos gente procurando emprego.
Além disso, quem chega agora ao mercado de trabalho já tem um nível de escolaridade mais alto. “A porcentagem de jovens com menos de cinco anos de estudo passou de 47%, em 1981, para somente 10%, em 2011”, escreveu Menezes Filho em um artigo recente para o jornal Valor Econômico. A oferta de mão de obra pouco qualificada ficou mais escassa do que nunca, aumentando os salários dos mais pobres e ajudando a reduzir a desigualdade. “É uma mudança muito forte. Muito rápida. Sem igual, eu acho, em outros países”, me disse o economista.
Menezes Filho fez questão de reconhecer a contribuição de políticas públicas, nos últimos vinte anos, para os avanços sociais recentes no país. Mas também comentou, enquanto mudava as imagens na tela: “Tanto o Fernando Henrique quanto o Lula deram sorte.”
A “conversão” de José Alberto de Carvalho à demografia aconteceu quase que à sua revelia, por força da época e das circunstâncias. Nos anos 60, num contexto de Guerra Fria e temor de que a experiência da Revolução Cubana se repetisse em outros países da região, os Estados Unidos voltaram suas atenções à América Latina. Atividades de apoio científico, de aprimoramento técnico da burocracia e de formação de pesquisadores para ajudar a promover o desenvolvimento local foram estimuladas. Foi nessa época que a Fundação Ford, uma entidade privada que tem como objetivos a “consolidação da democracia” e a “redução da pobreza”, começou a fazer fortes investimentos na área de ciências sociais no Brasil.
“Você veja os paradoxos da história”, me disse Carvalho, à beira do rio. “A Fundação Ford financiou o Cebrap, formado por gente perseguida pela ditadura.” Entre os criadores, em 1969, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, desde então uma das mais importantes instituições de pesquisa em ciências sociais do país, estavam Fernando Henrique Cardoso e a demógrafa Elza Berquó. Ambos haviam sido afastados pelo regime militar de suas atividades na USP, no ano anterior.
O sociólogo Sergio Miceli, organizador do livro A Fundação Ford no Brasil, ressalta o divórcio entre os interesses do governo norte-americano, que apoiou o golpe de 64, e os jovens acadêmicos encarregados de tocar os negócios da instituição no Brasil. Foi também a fundação a responsável por financiar a ida de Carvalho, em 1970, para o doutorado em demografia, em Londres. Lá, foi orientado por William Brass, criador de métodos indiretos de estimação de variáveis populacionais, como a taxa de fecundidade, quando os dados são falhos, o que era o caso do Brasil naquela época.
Segundo a demógrafa da Unicamp Maria Coleta de Oliveira, os estudos populacionais em países pobres eram então uma área prioritária para o governo e as entidades multilaterais americanas. “No Brasil, havia investimento para pesquisa em demografia a dar com pau. Foi construída a ideia de que, se os países subdesenvolvidos não controlassem o crescimento populacional, eles não iriam romper as barreiras ao seu desenvolvimento.”
A relação entre variações populacionais e mudanças sociais se tornou um campo minado. “À direita, falava-se que a ‘explosão demográfica’ gerava pobreza, era prejudicial e que, se não houvesse planejamento e controle familiar, a fecundidade não ia cair”, me disse Carvalho. “Nós, os intelectuais de esquerda, dizíamos que não adiantava controle familiar. Que a fecundidade só cairia quando houvesse verdadeiro desenvolvimento econômico.” De um lado do espectro ideológico, a dinâmica demográfica era tratada como causa quase exclusiva das diferenças sociais. Do outro, como mera consequência, sem efeitos reais sobre as políticas públicas, os salários e o mercado de trabalho.
Por ironia, os primeiros sinais de que a fecundidade começava a cair no país apareceram em meados daquela década, no momento de auge do maniqueísmo a que se refere José Alberto de Carvalho. “Os dois lados ficaram estatelados”, contou. “A reação imediata foi questionar os dados. Como caiu, se não houve controle oficial nem ‘verdadeiro desenvolvimento’? Porque a gente não podia aceitar que havia desenvolvimento econômico em plena ditadura. Uma das primeiras hipóteses, na esquerda, foi a de que a miséria estava tão grande que teria havido uma queda generalizada da libido no Brasil.”
A hipótese de “diminuição da libido” foi apresentada, em 1980, pela professora Elza Berquó. Pioneira dos estudos demográficos no país, ela formou gerações de pesquisadores, em São Paulo. Criou uma tradição, que se mantém ainda hoje, de aproximação entre a demografia e a sociologia. Em contraste, o departamento capitaneado por José Alberto de Carvalho, em Minas, conferiu ênfase aos métodos quantitativos e sempre manteve proximidade com a economia. A professora, em seu artigo, apresentava também outras hipóteses para a queda da fecundidade, como a inserção da mulher no mercado de trabalho e a “incorporação”, pela classe trabalhadora, do cálculo econômico.
Em um texto recente, Carvalho reconhece que Elza Berquó, pouco depois, abandonou a sua “hipótese heroica”. Numa conversa no Cebrap, em abril, a demógrafa afirmou que tal ideia, para ela, nunca teve muita relevância. “É preciso lembrar que a queda na taxa de fecundidade foi uma surpresa muito grande. Aí surgiram hipóteses de vários tipos. Essa foi uma delas. Logo em seguida, saíram outros trabalhos, a gente fez outras análises e verificou outras explicações. Houve várias explicações.”
O professor mineiro argumenta que, no fundo, esquerda e direita tratavam os pobres como irracionais, incapazes de responder aos estímulos que a urbanização criava para que tivessem um número menor de filhos. “Os pobres surpreenderam os intelectuais brasileiros”, ele comentou, rindo.
A surpresa, afirmou sua colega paulista, se deveu ao fato de os pesquisadores trabalharem, então, “no escuro”. “É preciso não esquecer que o Censo demográfico de 1960 só foi publicado, em parte, no final da década seguinte”, disse Elza. “O regime militar nunca explicou o que houve com a perda de parte dos dados. Foi só com os resultados do Censo de 70 que nós pudemos ver o que estava acontecendo. Nós ficamos num vazio de informações entre 60 e meados dos anos 70.”
A demógrafa Maria Coleta de Oliveira, embora carioca, pertence ao grupo “paulista” dessa discussão. Ela diz que as dicotomias de quatro décadas atrás foram superadas. “Claro, a dinâmica demográfica impõe condições, não há dúvida. O que a sociedade e a economia vão fazer com essas condições é outra coisa.”
A professora Elza disse estar de acordo. “O fato de ter diminuído o número de jovens, em termos absolutos, ajudou a termos menos desemprego. Mas nós precisamos ver que empregos são esses. Mesmo com essa redução, o Brasil não tem mão de obra qualificada para várias especialidades. Não resolve o problema. Investiu-se muito pouco, a meu ver, em educação.”
O efeito equalizador da queda na taxa de fecundidade, dizem os pesquisadores, é duradouro. Há um outro impacto, contudo, a princípio também benéfico, que é transitório. É o chamado “bônus demográfico”, que compreende o período de tempo em que é máxima a participação das pessoas em idade para trabalhar no total da população. Por algumas décadas, a porcentagem de crianças cai numa velocidade maior do que o aumento da parcela de idosos. Em teoria, a geração de renda pelos que trabalham poderia então aumentar numa velocidade maior do que a dos gastos com os grupos que não trabalham – com efeitos positivos sobre o crescimento e a capacidade de poupança.
Ocorre que, com o envelhecimento da população, a porcentagem de idosos continuará a aumentar. Em algum momento, a participação dos adultos no total da população deve encolher. “O bônus demográfico brasileiro iniciou-se em meados dos anos 70 e terminará em dez anos, aproximadamente”, disse Samuel Pessôa. “Já gastamos mais de 80% dele. Agora, que entramos na fase em que a taxa de crescimento da população como um todo e também a da população em idade para trabalhar são baixas, somente conseguiremos crescer mais rapidamente se elevarmos a produtividade dos trabalhadores. A vida ficou mais difícil para o crescimento econômico, apesar de ter ficado mais fácil para a redução da desigualdade de renda.”
Para aumentar a produtividade dos trabalhadores, defende Pessôa, é preciso ter ganhos de qualidade, e não apenas de quantidade, no sistema público de educação. “Ninguém sabe como fazer isso no Brasil, hoje”, ele disse. O discurso é semelhante ao do professor mineiro. “Ou você investe nessa criançada, pouca para sustentar uma proporção crescente de idosos, ou teremos problemas”, me disse Carvalho num final de tarde, quando começava a chover forte em São Vicente de Minas. “O bônus é passageiro, e não o estamos aproveitando. Daqui a algum tempo, com o aumento do número de idosos, a Previdência Social será insustentável. É uma questão aritmética.”
O tema levou o demógrafo a falar de uma imposição que sofreu, há pouco mais de dois anos, e que ainda lhe causa irritação e tristeza. Por ser servidor público, ao completar 70 anos, no final de 2010, José Alberto de Carvalho foi obrigado a se aposentar do cargo de professor titular da UFMG.
Ele veio a ser contratado, em seguida, pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas ligada à universidade, uma entidade de direito privado. Para um cargo alto, de diretor-executivo, o que lhe dá trabalho e lhe confere uma sala confortável no prédio da Faculdade de Ciências Econômicas. O que, afinal, em nada diminuiu a ênfase de sua queixa. “É um absurdo. Não faz sentido. Você abre mão de quem tem experiência e aumenta os gastos ao contratar um novo funcionário.”
“Não é que ele tenha ficado insatisfeito com essa situação”, me disse Simone Wajnman, que acompanhou de perto a frustração do seu antigo professor. “Ele ficou doente! Era uma ideia inaceitável para ele, e é fácil notar o efeito nefasto que a aposentadoria produziu em sua vida. Até hoje, ele se apresenta como um professor compulsoriamente aposentado, e não como um professor aposentado. E não perde uma única oportunidade de fazer uma longa preleção sobre o absurdo dessa legislação, enfatizando, é claro, a questão demográfica envolvida.”
Só se ouve de Carvalho lamento semelhante quando o tema é a política. A chuva levantava um cheiro bom, de terra, na Fazenda Saudade, quando ele elogiou o processo de transição entre os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, no final de 2002. “Foi tão civilizada”, suspirou. “Mas, agora, está tudo piorando, com essa polarização.”
Da primeira vez que nos falamos, por telefone, o assunto já havia surgido. Fazia pouco tempo, então, que a disputa pela sucessão presidencial havia sido precipitadamente deflagrada. Em fevereiro, no ato em que se comemoravam os dez anos do PT no poder, Lula lançou Dilma como candidata à reeleição. “Nós não herdamos nada; nós construímos”, disse a presidente, em seu discurso. Numa espécie de resposta antecipada, o tucano Aécio Neves havia subido à tribuna do Senado, naquele mesmo dia. Segundo o pré-candidato à Presidência pelo PSDB, desde que chegou ao governo o PT está apenas “exaurindo a herança bendita” que o governo Fernando Henrique lhe legou.
A melhoria dos indicadores sociais no país encontra-se no centro do embate entre PT e PSDB. O professor emérito da UFMG expressou certo fastio em relação à disputa. “Os governos, em vez de reconhecerem a contribuição da demografia e irem além, ficam se autoelogiando, um querendo se comparar com o outro”, reclamou.
“Claro, temos que reconhecer que houve algum esforço. Mas eu diria que a contribuição da transição demográfica foi muito mais importante do que a atuação dos governos federais. O problema é que, se você reconhece a grande contribuição da demografia, surge a pergunta, incômoda: por que não se faz mais?”