ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Setecentos dias na praça
Cineasta veterano da revolta no Egito tira férias nos protestos turcos
Petra Costa | Edição 82, Julho 2013
No dia 31 de maio deste ano, o egípcio Mohammed Hamdy chegou a Istambul de férias. No caminho do aeroporto para o hotel, viu uma concentração de pessoas na praça Taksim protestando contra os planos de construção de um shopping naquela área. A manifestação lhe pareceu pequena e localizada.
Pouco mais de dois anos antes, em 25 de janeiro de 2011, Hamdy tomava uma cerveja num bar de Manhattan quando viu na televisão a praça Tahrir e as ruas de sua cidade natal tomadas pela população, que enfrentava a polícia. Era o início da revolta que depôs o ditador Hosni Mubarak. Havia cinco anos, Hamdy tentava construir uma carreira como fotógrafo de cinema em Nova York, e sentia que estava assistindo à sua vida passar em suspenso, como uma mensagem no Skype que não consegue chegar ao destinatário. Os gritos da praça Tahrir o acordaram. Fez as malas e voltou ao Egito num avião comercial com apenas quatro passageiros.
Ao desembarcar, Hamdy mal conseguiu andar sobre o mar de gente que dormia no Aeroporto Internacional do Cairo, esperando para sair do país. Ele passou os 700 dias seguintes acampado na Tahrir, onde filmou um documentário chamado The Square, que ganhou o prêmio do público no último Festival de Sundance. Depois, ficou mais 100 dias filmando a Primavera Árabe na Síria, na Líbia, no Bahrein. Onde havia revolta, lá estava ele com sua câmera.
Em Istambul, Hamdy fez seu primeiro programa de turista em muito tempo: comprou um guia e subiu à Torre de Gálata, de onde se avista toda a cidade. Cortada pelo Bósforo, o estreito que separa Ásia e Europa, a antiga Constantinopla se espalha pelos dois continentes. Atrai gente como Hamdy pela força com que reflete o “espírito do tempo” na região, que se debate entre o Estado religioso e o laico, entre a democracia e a ditadura.
Num restaurante próximo, Hamdy tentou montar um roteiro turístico. Sentia a antiga depressão nova-iorquina pesar sobre os seus ombros à medida que virava as páginas do Lonely Planet. “Durante o tempo em que vivi na praça Tahrir, me senti vivo como nunca”, ele conta. “Dividíamos nossas barracas, colchões, cobertores, bebidas, comida. Tínhamos nossas cozinheiras, nossos músicos, poetas, médicos e até engenheiros que levavam luz à praça. Criamos uma comunidade autogovernada, um tanto quanto utópica.”
Na Tahrir, Hamdy foi ferido duas vezes: por uma bala de borracha numa das pernas e por uma lata de gás lacrimogêneo na cabeça, que por pouco não o matou. “Você não tem dúvida de que está fazendo algo necessário”, ele diz. “Foram dois anos de uma intensidade quase viciante. É muito difícil algo te dar prazer depois disso.”
Sem muito entusiasmo, o documentarista optou por começar seu passeio a Istambul com uma visita à Basílica de Santa Sofia. Numa ruela perto dali, deparou-se com jovens que usavam máscaras de gás. A polícia os havia expulsado da praça Taksim, e eles se espalhavam pelo Centro, entoando palavras de ordem como “Fora Tayyip” (referência ao premiê Recep Tayyip Erdoğan, do partido islâmico da Justiça e do Desenvolvimento) e “Nós somos os filhos de Mustafa” (Mustafa Atatürk, o militar que fundou a República turca e impôs a secularização do país).
Ele correu para pegar sua câmera no hotel, abandonou o Lonely Planet e voltou a ocupar seu lugar na linha de frente de um protesto. A polícia jogava gás. “O gás faz arder os olhos nos primeiros instantes, mas é como fumaça de cigarro, logo você se acostuma”, ele descreve. “Além de amarrar um pano embebido em vinagre ao redor da boca, jogamos Coca-Cola no rosto, pois o açúcar faz uma máscara de resistência. No Egito, ninguém mais foge de gás. Os ativistas até provocam os policiais, pedindo para jogar mais.” Em Istambul, a arma ainda dava medo. A polícia lançava gás; a multidão corria. Hamdy não saía do lugar.
Solidária aos manifestantes reprimidos, mais gente se juntou ao protesto na Taksim. Na noite de 1º de junho, a polícia abandonou temporariamente a rinha. A praça foi do povo. “Essa noite nós somos a lei” e “Taksim pertence a Istambul”, escreveram os ativistas nos muros. Já eram então dezenas de milhares, e Hamdy pensou que a pior coisa que poderia acontecer seria a polícia ignorá-los: “É como um filme de ficção, eles precisam de uma força opositora.”
Às três da manhã, a praça estava tomada pela música e ele, um pouco entediado, decidiu procurar um restaurante. Encontrou um a poucos metros de distância – boa parte do comércio permaneceu aberta mesmo durante os confrontos mais violentos. Enquanto tentava chamar a atenção de um garçom que observava a manifestação da janela, Hamdy pensou que, em muitos aspectos, aquilo parecia um movimento de butique. A vida continuava igual. No Egito, tudo fechou. “As pessoas que não estavam na praça Tahrir levavam cadeiras e comida e se manifestavam nas ruas. O país inteiro parou.”
Na manhã seguinte, Hamdy andou pelas ruas e viu funcionários das lojas cobrindo com tinta as pichações nas paredes e trocando os vidros quebrados. “A sociedade turca é dividida. Uma parte da população é muito religiosa e outra, concentrada em Istambul, secular e liberal. A convivência desses dois aspectos torna o país muito especial”, diz ele. Mas também alimenta conflitos. “O povo na praça Taksim questiona as atitudes e pede a renúncia de Erdoğan, embora ele tenha sido eleito em um processo democrático. No Egito, pedíamos a queda de uma ditadura de trinta anos e todas as classes estavam presentes. Essa unanimidade e uma meta clara deram aos protestos uma legitimidade que derrubou qualquer questionamento.”
As ruas continuam inquietas nos dois países. Em Istambul, Erdoğan adotou a linha dura contra os manifestantes, falou em complô internacional – até disse que o Brasil também é alvo – e fez a vaga promessa de submeter o destino do parque Gezi (situado na praça Taksim) a um plebiscito. No Egito, acredita Hamdy, ainda serão necessários mais vinte ou trinta anos de mobilização para construir uma democracia real. “Os políticos são muito pragmáticos e abrem mão de seus princípios. Precisam de cães de guarda para latirem nas ruas assim que fizerem algo errado ou estiverem prestes a fazer algo errado. É isso que a sociedade turca está fazendo com Erdoğan.”