O casal John Habich e Andrew Solomon com o filho George, gerado a partir do sêmen de Andrew com o óvulo de uma doadora anônima e nascido da barriga de aluguel de uma amiga que já havia tido um casal de filhos com sêmen doado por John FOTO: M. SHARKEY_2011
Crianças já não me entristecem
A paternidade na vida de um casal gay
Andrew Solomon | Edição 83, Agosto 2013
Comecei a escrever este livro [1] para perdoar meus pais e o terminei tornando-me pai. Entender o que aconteceu lá atrás me libertou para seguir adiante. Eu queria descobrir por que havia sentido tanta dor na infância, entender qual era a minha parte nisso, qual era a de meus pais e qual era a do mundo. Sentia que devia isso a meus pais e a mim mesmo, para provar que tínhamos sido menos da metade do problema. Olhando para trás, parece óbvio que minha pesquisa sobre paternidade foi também um meio de controlar minha ansiedade quanto ao fato de me tornar pai. Mas os caminhos da mente são insondáveis, e, se era esse meu propósito secreto, ele só se revelou aos poucos.
Fui criado com medo de doenças e deficiências, inclinado a desviar os olhos de qualquer pessoa muito diferente – embora sempre soubesse que eu mesmo era diferente. Este livro me ajudou a eliminar esse impulso preconceituoso, que eu sempre soubera que era mau. A óbvia melancolia nas histórias que ouvi talvez me fizesse fugir da paternidade, mas teve o efeito oposto. A paternidade foi um desafio para essas famílias, mas quase nenhuma delas parecia arrependida. Elas demonstraram que com disciplina emocional e disposição afetiva é possível amar qualquer pessoa. Essa lição de aceitação foi reconfortante para mim, foi a certeza de que um amor difícil não tem menos valor que um amor fácil.
Durante muito tempo, crianças me deixavam triste. A origem dessa tristeza era um tanto obscura para mim, mas acho que ela vinha, sobretudo, do que me tinha sido com frequência apresentado como uma tragédia dos gays: a ausência de filhos. Como filhos eram a coisa mais importante do mundo, simbolizavam meu fracasso. Meus pais me incentivaram a me casar com uma mulher e ter uma família, e o mundo fez eco a esse imperativo. Passei anos pulando de relacionamentos com homens para relacionamentos com mulheres. Amei algumas das mulheres com quem tive intimidade, mas se os filhos não tivessem sido parte da equação eu não teria dado importância à outra metade do casal. Só admiti que era realmente gay quando entendi que ser ou não ser gay não é uma questão de comportamento, mas de identidade.
À medida que me tornava adulto, essa identidade me parecia incompatível com a paternidade. A improvável perspectiva de ser pai gay me perturbava porque eu achava que ser criado por um pai gay faria de meus filhos alvos de gozação. Essa percepção escondia elementos de homofobia internalizada, mas também era coerente com a realidade social. Eu estava aprendendo a ser militante em benefício próprio, mas receava envolver outras pessoas. Quando pequeno, fui importunado de maneira implacável pelo fato de ser diferente, e não queria impingir a alguém uma versão daquela experiência.
Nos vinte anos seguintes, a realidade social mudou a tal ponto que já não tenho aqueles escrúpulos. Isso ocorreu em grande medida porque outros gays deram o salto que é ter filhos antes que eu estivesse preparado para isso. Não obstante, quando mais recentemente mostrei vontade de ter filhos biológicos, esse desejo foi criticado com insistência, muitas vezes por pessoas que me lembraram de quantas crianças abandonadas existem precisando de um lar. Fiquei impressionado com o fato de esses argumentos partirem quase sempre de pessoas que haviam produzido sua própria prole sem jamais terem cogitado a possibilidade de adoção. O desejo de gerar um filho muitas vezes é interpretado como bizarro ou egoísta.
Uma vez que a homossexualidade não dá mostras de ser transmissível, eu estaria trocando para meus filhos o desconforto potencial de serem uma coisa estranha pelo de virem de um lugar estranho, e alguns críticos acharam que isso era um problema menor. Não gosto que aceitem minha decisão de ter filhos desde que sejam provavelmente héteros. Aceitar a identidade horizontal[2] com a condição de que ela nunca se converta em vertical não passa de preconceito. Eu não teria desistido de ter filhos se achasse que eles talvez fossem gays; como não teria sido dissuadido de tê-los pela probabilidade de serem héteros. Não obstante, minha apreensão a respeito de ser um pai gay excedia em muito outras preocupações sobre os riscos de um filho biológico apresentar dislexia, depressão ou os tipos de câncer que mataram minha mãe e meu avô.
A reprodução devia estar entre os direitos inalienáveis da pessoa. Ainda assim, o preconceito contra pessoas anômalas se revela com mais clareza quando membros dos grupos de identidade horizontal que têm potencial para transmitir traços aberrantes decidem ter filhos. Muita gente fica indignada quando um adulto deficiente produz um filho deficiente ou limitado.
A apresentadora de tevê e atriz Bree Walker nasceu com ectrodactilia, ou síndrome da garra de lagosta, que consiste em deformidades nas mãos e nos pés, com ausência total ou parcial dos dedos. Teve uma filha com a síndrome, e quando engravidou de novo, em 1990, soube que o segundo filho também poderia herdar o problema. Ela optou por seguir adiante com a gravidez e tornou-se alvo de indignação. “Para mim foi um choque que alguém tenha feito em público previsões tão negativas a respeito de uma criança que ainda não nasceu e sobre sua capacidade de conviver com o mundo, independentemente da forma de suas mãos ou pés”, disse Bree depois. Ela mesma teve uma carreira e um casamento bem-sucedidos, é fotogênica e tem muita força para se comunicar. “É justo transmitir a um filho uma doença genética que desfigura?”, perguntou uma entrevistadora de Talk show. “As pessoas julgam pela aparência. Elas nos julgam pelas palavras que usamos. Deus sabe que nos julgam pela forma de nossas mãos, pela forma de nosso corpo, pelo nosso rosto. Elas simplesmente julgam.” Nas críticas da apresentadora, estava implícita a convicção de que Bree Walker não tinha o direito de engravidar e até mesmo de que ela estaria moralmente obrigada a abortar – não importando o quanto ela desejasse esse filho ou tivesse condições de criá-lo. “Senti-me como se minha gravidez estivesse sendo alvo de terrorismo”, disse Bree posteriormente.
Os programas de entrevistas reduziram os filhos de Bree à sua deficiência. Como afirmou Bill Holt, que sobreviveu a uma poliomielite e tornou-se militante pelos direitos dos deficientes, “dizer que Bree Walker não deveria ter filhos por causa de uma característica física seria ignorar todas as outras coisas maravilhosas sobre ela. Por que não dizer que ela devia ter um monte de filhos por ser uma das mais agudas inteligências e um dos rostos mais belos da televisão?”. A condenação da mídia não levou em conta o fato de que aqueles que sofrem de um mal qualquer transmissível à sua prole estão qualificados como ninguém para compreender os riscos e as recompensas de viver com esse mal. Suas escolhas são mais fundamentadas do que nossos juízos sobre eles.
Certas pessoas, no entanto, concebem filhos como um meio de validar sua própria vida. A inglesa Joanna Karpasea-Jones, militante pelos direitos dos deficientes, quis ter filhos biológicos. Fez isso até certo ponto como um meio de afirmar o modelo social de deficiência, dizendo que em sua casa anomalia não é deficiência. Ela e o marido, como muita gente, queriam uma prole biológica. “A adoção não era uma alternativa”, escreveu ela, “já que dessa forma eu não engravidaria nem daria à luz – uma privação dolorosa para mim.” Joanna tem paralisia cerebral causada por nascimento prematuro, o que não se transmite. Seu marido, no entanto, sofre de uma neuropatia motora e sensorial hereditária, que causa perda de massa muscular e graves deformações ósseas. Seus filhos biológicos teriam 50% de probabilidade de herdar a doença. “Seja como for, quase todo mundo em nossa família era deficiente de alguma forma: eu, meu parceiro, o irmão e o pai dele, minha tia e meu tio”, escreveu Joanna. “Se a criança fosse afetada, não ia se sentir uma estranha. A normalidade é subjetiva, para nós a deficiência é normal.”
A identidade com os pais sem dúvida garante um sentimento de integração, como nas famílias de anões e surdos. Mas a despreocupação de Joanna com a realidade provável dos corpos doentes dos filhos é lastimável. Em seus longos textos, ela reconhece que sua doença e a de seu parceiro já lhes causaram muita dor física, que ela parece não se importar em transmitir. Ela sacrifica o corpo dos filhos em favor do modelo social de deficiência.
Conheci muitas pessoas com dificuldades especiais e orgulhosas, com família feliz. Mas também vi dores generalizadas, que nem sempre se deviam a circunstâncias externas. Na verdade, a decisão de Joanna não foi bem recebida nem por sua família. “Minha mãe disse que tínhamos sido irresponsáveis ao assumir esse risco e me pediu que abortasse”, escreveu. “A mãe de meu parceiro disse que eu não seria capaz de levar a gravidez até o fim. Fiquei contente quando o parto atrasou onze dias sem que eu sofresse uma contração sequer. Isso vai lhes servir de lição, pensei.”
A confusão de egos entre pais e filhos existe em todo grupo demográfico; com frequência nos vemos na contingência de distinguir entre o que seria ajudar nossos filhos a formular seus sonhos e o que seria submetê-los a sonhos que são nossos. É provável que os filhos de Joanna Karpasea-Jones não venham a lamentar o fato de existirem, mas talvez fiquem ressentidos se concluírem que ela os concebeu para defender um ideário. Em toda parte, pais autocentrados exploram os filhos em busca de glórias projetadas, seja no campo de futebol, no xadrez ou no piano. O narcisismo é uma miopia que não se limita a militantes deficientes.
Decidir ter um filho é um assunto difícil para qualquer pessoa cuja genética possa ser considerada suspeita. A especialista em deficiência Adrienne Asch escreveu em um ensaio de 1999: “Doença crônica e deficiência não são o mesmo que doença aguda ou ferimento eventual. A maior parte das pessoas que apresentam espinha bífida, acondroplasia, síndrome de Down e muitas outras deficiências motoras e sensoriais se vê como saudável, não como doente, e fala de sua limitação como um fato da vida – o equipamento com o qual vieram ao mundo.”Há verdade no que Adrienne Asch diz, mas não toda a verdade. Em 2003, fui enviado para entrevistar uma jovem chamada Laura Rothenberg, a respeito de sua fibrose cística, e acabamos fazendo amizade por causa de sua doença. Embora os pais dela fossem transmissores (estado genético recessivo), nenhum dos dois manifestou sintomas. Ela escreveu um livro de memórias tocante, Breathing for a Living [Respirar para Viver], no qual elogiou muitas coisas inerentes à sua identidade que lhe foram dadas pela fibrose cística e enumerou todas as coisas que valorizava em sua vida do jeito que ela era. No entanto, Laura não se via como saudável e gostaria de se curar – não por rejeitar essa parte de si mesma, mas porque queria se sentir bem e viver muito tempo. Seu estado de saúde se agravou e ela morreu aos 22 anos. Mesmo acabrunhado de tristeza pela morte recente de Laura, seu pai me disse: “Quando Laura foi concebida, não existia o exame de amniocentese[3] para fibrose cística. Esse exame foi criado depois. Se tivéssemos sabido, Laura não teria nascido. Eu ainda penso: ‘Meu Deus… a vida poderia lhe ter sido negada.’ Que tragédia isso teria sido.”
Transmitir biologicamente a outrem fardos extraordinários é uma questão moral íntima. No entanto, todos os pais tomam essa decisão, em alguma medida. A maior parte das pessoas prefere procriar, apesar de os ricos poderem conceber crianças in vitro com sêmen doado pelo Super-Homem e óvulos da Mulher Maravilha. Pessoas estúpidas produzem filhos estúpidos despreocupadamente, embora a estupidez dificulte bastante a vida. Obesos mórbidos muitas vezes produzem filhos corpulentos que poderão ser marginalizados por causa do excesso de peso. Pais depressivos podem gerar filhos obrigados a lutar contra a tristeza crônica. Pobres têm filhos, apesar das óbvias desvantagens da pobreza.
Isso não é tão diverso de optar por manter uma gravidez apesar de um diagnóstico pré-natal que detecta uma anomalia. Um artigo publicado no jornal Los Angeles Times observou: “Ter bebês feitos sob encomenda com defeitos genéticos parece ser um campo ético minado, mas para alguns pais com deficiência – como, por exemplo, surdez e nanismo – isso significa apenas ter bebês iguais a eles.”Numa pesquisa feita com cerca de 200 clínicas americanas que oferecem testes para diagnóstico genético pré-implantação (DGPI), procedimento que existe há duas décadas, 3% admitiram que tinham usado o teste para escolher um embrião com deficiência.O doutor Robert J. Stillman, do Centro de Fertilidade Shady Grove, negou-se a selecionar embriões com surdez ou nanismo. “Uma das primeiras premissas da paternidade é criar um mundo melhor para nossos filhos”, disse ele. “Nanismo e surdez não são a norma.”
Por qual lógica criar um mundo melhor tem a ver com se adequar às normas? Para Michael Bérubé, cujo filho tem síndrome de Down, “a questão é se vamos ou não manter um sistema social que abre margem para a imprevisibilidade, a variabilidade, imperativos morais conflitantes, decisões difíceis, decisões privadas e até mesmo decisões irracionais”. O debate sobre a seleção de embriões se enquadra no âmbito da dignidade, um dos direitos humanos mais difíceis de definir, até mesmo por ser de construção social. Em 2008, a Grã-Bretanha aprovou uma emenda à Lei de Fertilização Humana e Embriologia que tornou ilegal a seleção de embriões com deficiência. As pessoas que pretendiam fazer um DGPI para evitar síndrome de Down, por exemplo, receberiam um perfil genético completo e não seriam autorizadas a implantar um embrião com qualquer deficiência revelada pelo exame. Ativistas surdos ficaram horrorizados. “Isso não tem cabimento”, escreveu uma blogueira. “Estamos sendo depreciados, vistos como indignos de sermos humanos porque somos imperfeitos.”
Sharon Duchesneau e Candace McCullough, lésbicas e surdas, queriam ter um filho. Elas pediram a um amigo, surdo de quinta geração, que fosse o doador de sêmen. Elas tiveram dois filhos surdos, Gauvin e Jehanne. Decidiram falar de sua experiência com um repórter do Washington Post, o que desencadeou uma torrente de ataques parecidos aos que tinham sido dirigidos contra Bree Walker. A Fox News deu à matéria sobre o caso o título “Vítimas de nascença: defeitos provocados em crianças indefesas passam dos limites”. As cartas de leitores publicadas pelo Post foram igualmente hostis. Um leitor escreveu: “O fato de essas três pessoas (incluo o doador de sêmen) privarem de forma deliberada outra pessoa de uma faculdade natural é monstruoso e cruel, e revela seu ressentimento básico contra as pessoas capazes de ouvir. Há leis que garantem o acesso a cuidados médicos a filhos de pais que não querem tratá-los por motivos religiosos. Deveria haver uma proteção similar para filhos sujeitos ao abuso de serem geneticamente programados para reproduzir as deficiências de pais equivocados.”
O especialista em ética John Corvino observa que a revolta pública deriva de uma falácia metafísica. “Elas poderiam ter escolhido outro doador”,ele argumentou. “Ou poderiam ter escolhido a adoção em vez da gravidez. Mas nenhuma dessas possibilidades teria feito com que Gauvin ouvisse. Pelo contrário, elas teriam feito com que ele não existisse.” O ativista surdo Patrick Boudreault disse: “Não se trata de tornar surda, de forma deliberada, uma criança que nasceu ouvinte.”
Poucas pessoas afirmariam que um casal de surdos não deveria procriar devido ao risco de ter filhos surdos. Alguns considerariam ser possível estabelecer uma linha divisória entre o que se pode aceitar e o que se pode buscar, argumentando que filhos surdos de um casal heterossexual surdo nascem por meio de um processo “natural”– mas é difícil amor e regras combinarem, e o conceito do que seja natural está sempre mudando. É frequente que a ideia de antinatural seja usada para dissimular o preconceito. Os que objetaram à escolha de Sharon Duchesneau e Candace McCullough podem não ter entendido a experiência de vida dessas duas mulheres, com formação universitária, profissionalmente bem-sucedidas, ao que tudo indica felizes, com uma vida social ativa e num bom relacionamento. O artigo original explicava: “Ao mesmo tempo que muitos futuros pais apontam as qualidades que não querem em seus filhos, muitos selecionam as qualidades que querem.
Em muitos casos o objetivo não é tanto produzir um bebê magnífico, mas um bebê específico. Um bebê branco. Um bebê preto. Um menino. Uma menina. Ou um bebê que tenha sido imaginado com muito mais detalhamento. ‘Em muitos casos’, diz Sean Tipton, porta-voz da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva, ‘os casais estão interessados em alguém que se pareça com eles.’ Nesse sentido, Candy e Sharon são como muitos pais, que esperam que o filho reflita sua própria imagem.”
É um argumento difícil de contestar. Sharon disse: “Seria bom termos um filho que seja como nós.” Candy explicou: “Quero ser como meu filho; quero que o bebê goste do que eu gosto.” Essas declarações não soam radicais até o momento em que se sabe que vêm de pessoas surdas. Num artigo publicado na revista Nature, Carina Dennis oferece outra percepção sobre as motivações dessas duas mulheres: “A comunicação e a busca de intimidade são essenciais para sermos humanos. Se você acredita de verdade que seu filho vai ter uma vida emocional rica, ainda que não possa ouvir, e que você se comunicará melhor com ele, por que não fazer essa escolha?” Candy foi criada numa família de surdos, com pais trabalhadores de parca educação; Sharon foi criada por pais ouvintes e só chegou a ser ela mesma quando entrou no mundo de sinais da Universidade Gallaudet. As duas admiravam surdos filhos de surdos instruídos. Sentiam que tinham lutado para encontrar sua versão de felicidade e queriam transmiti-la à geração seguinte. Os pais querem filhos capazes de se beneficiar daquilo que eles têm para dar.
William Saletan, da editoria nacional da revista digital Slate, escreveu: “Velho temor: projetar bebês. Novo temor: deformar bebês.”É claro que um “deformador” de bebês é também um designer de bebês, só que não segue os modelos mais populares. E o design de bebês não vai desaparecer e, sem dúvida, se tornará cada vez mais comum à medida que a tecnologia progride. O epíteto “design de bebês” é pejorativo, mas não faz tanto tempo que a expressão “bebê de proveta” era usada com essa conotação, antes que a fertilização in vitro se tornasse um procedimento corriqueiro para uma classe média que cada vez mais adia a paternidade.
Em 2006, quase metade das clínicas de DGPI pesquisadas pelo Centro de Genética e Políticas Públicas da Universidade Johns Hopkins oferecia serviços de escolha de gênero[4]. Em 2007, a clínica de fertilidade Bridge Centre, de Londres, selecionou embriões para que um bebê não sofresse do grave estrabismo que afetava seu pai,e o University College London anunciou em 2009 o nascimento de um dos primeiros bebês selecionados para evitar a vulnerabilidade genética ao câncer de mama. Os institutos de fertilidade de Los Angeles declararam que pretendiam ajudar os casais a escolher gênero, cor dos olhos e dos cabelos de seus bebês, mas a avalanche de críticas que receberam determinou a suspensão do programa. Essas escolhas são, inevitavelmente, o futuro. Que diferença há entre elas e os protocolos preenchidos por doadores de sêmen e óvulos, que investigam traços hereditários indesejáveis e informam sobre beleza física, cor, altura, peso e notas no vestibular? A maior parte das pessoas se sente atraída por outras que apresentam características desejáveis; o próprio impulso para o encontro sexual é um processo seletivo subjetivo.
Em 2004, uma pesquisa de opinião feita pela Johns Hopkins concluiu que o debate cada vez mais amplo sobre testes genéticos com fins reprodutivos opõe dois pontos de vista: o das pessoas que veem os testes como “uma oportunidade de evitar sofrimento e condenam as limitações à pesquisa, ao progresso tecnológico e às escolhas reprodutivas”, e o dos que “acreditam que os testes genéticos com fins reprodutivos terão consequências éticas e sociais adversas e têm restrições quanto a seu desenvolvimento e uso”. Em The Case against Perfection [livro inédito no Brasil que trata da ética na era da engenharia genética], o filósofo Michael Sandel, de Harvard, afirma: “Os futuros pais continuam livres para escolher se preferem usar os testes pré-natais ou atuar sobre os resultados. Mas não estão livres do peso que a possibilidade de recorrer à nova tecnologia proporciona.”
Os seres humanos gostam de consertar coisas; mas, se aprendermos a controlar o clima, em pouco tempo estaremos cegos para a majestade dos furacões e intolerantes com o silêncio implacável de uma nevasca. Há quarenta anos, o toxicologista Marc Lappé avisava: “Seria impensável e imoral que nós, em nosso afã de ‘dominar’ as falhas genéticas, deixássemos de reconhecer que os ‘defeituosos’ que identificamos e abortamos não são menos humanos que nós.”Ainda em 2005, a jornalista Patricia E. Bauer relatou no Washington Post as pressões que teve de suportar quando decidiu ter a filha que recebera um diagnóstico pré-natal de síndrome de Down. Ela escreveu: “Os testes pré-natais estão transformando nosso direito de abortar uma criança deficiente numa obrigação de abortar crianças deficientes.”
Ninguém deveria ser obrigado a levar a termo uma gravidez que lhe causa apreensão, nem deveria ser pressionado a interromper uma gravidez desejada. As pessoas que se dispõem a amar crianças com características horizontais dão-lhes dignidade, tenham ou não feito testes pré-natais. Tendo acesso à tecnologia reprodutiva, podemos determinar que tipo de criança nos faria felizes e que tipo de criança nós faríamos feliz. Seria irresponsável evitar essa conjectura, e seria ingênuo supor que ela vai além de uma conjectura. O amor hipotético tem pouca coisa em comum com o amor.
Sempre se discutirá quais pais deveriam ter filhos e quais crianças deveriam nascer. Questionamos a decisão de pessoas com HIV que têm filhos sabendo que talvez não vivam para criá-los; tentamos evitar a gravidez de adolescentes; avaliamos se indivíduos com deficiências devem transmiti-las. É possível esterilizar gente com o opróbrio tanto quanto com o bisturi, e a crueldade é quase a mesma. Mostrar às pessoas as dificuldades que seus filhos podem herdar é sensato, mas impedi-las de ter filhos por achar que sabemos qual é o valor dessas vidas beira o fascismo. Não é por acaso que se precisa de uma autorização para casar, mas não para ter um filho.
Os Estados Unidos oferecem hoje menos possibilidades de ascensão social do que nunca, e menos que muitas outras nações industrializadas. Segundo um relatório feito pelo Instituto Brookings, em 2011, a mobilidade social americana foi uma excepcionalidade: “Ficar onde estamos em relação à base é toda a mobilidade que temos.”Quase todas as famílias que conheci são vítimas da crença que gerou essa crise de mobilidade: o pressuposto de que melhorar de vida é um projeto individual do qual os demais não participam. Ainda assim, nenhuma das categorias de pessoas de que trata este livro teria tido uma vida melhor há meio século. O vertiginoso progresso tecnológico que ameaça muitas dessas identidades coincidiu com uma política de identidade que constrói um mundo mais tolerante.
Vivemos numa sociedade cada vez mais diversificada, e as lições de tolerância que vêm dessa diversidade atingem até mesmo populações desvalidas demais para fazer suas próprias reivindicações – uma mudança de amplitude muito maior do que as integrantes do movimento pelo voto feminino ou os ativistas de direitos humanos teriam sonhado. Deficientes estão na televisão, transgêneros ocupam cargos públicos, profissionais da área de assistência trabalham com criminosos, prodígios e pessoas geradas em estupro. Há programas de emprego para esquizofrênicos e autistas.
Deplora-se a ideia de que vivemos em tempos despudorados. Por que tanta gente vai à tevê para mostrar e comentar suas tolices, suas paixões e até mesmo sua crueldade? Por que aceitamos gente rica que fez fortuna roubando? Podemos não ter vergonha suficiente daquilo que é legitimamente condenável, mas da mesma forma temos cada vez menos vergonha daquilo que nunca deveria nos embaraçar. O oposto das políticas de identidade é o constrangimento. Estamos mais perto do que nunca do direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Cada vez menos pessoas se mortificam por ser o que verdadeiramente são.
***
Eu havia lutado durante anos com a falta de filhos, e justamente quando aceitei essa tristeza comecei a ver a expectativa contrária e a imaginar o que fazer para me tornar frutífero e me multiplicar. O que eu não podia saber então era se eu de fato queria filhos, ou se queria apenas mostrar a todos que lamentavam minha orientação sexual o quanto estavam enganados. Quando você desejou a lua por longo tempo e de repente lhe dão toda aquela luz prateada, é difícil lembrar o que você pretendia fazer com ela. Eu tinha um histórico de depressão. Estaria abrindo mão daquele ser tristonho em favor de alguma felicidade nova, ou estaria sendo presa de muita tristeza, para a qual precisava encontrar novas estruturas?
Eu não poderia pôr filhos no mundo se não fosse capaz de protegê-los de minhas incursões no desespero. Sabendo que a paternidade não é atividade para perfeccionistas, procurei as lições de humildade das famílias que tinha entrevistado. Em minha ansiedade, fiquei lembrando também algo que minha mãe me disse quando eu estava saindo para fazer o exame de habilitação e tirar a carteira de motorista: há duas coisas na vida que parecem horrivelmente assustadoras até o momento em que você percebe que todo mundo as faz – dirigir e ter filhos.
Não tive muitos amigos na infância, e crianças continuaram me intimidando. Eu percebia isso nos olhos delas, e ainda por cima eu era ruim no jogo de queimada, tinha um modo de andar engraçado, era emocionalmente desajeitado – eu conservava todos os atributos que tinham feito as crianças se afastarem de mim em minha própria infância, atributos que, como acabei compreendendo, estavam relacionados com minha sexualidade. Eu ainda tinha medo de ser chamado de “gay” por crianças; minha identidade consolidada soava como um insulto quando mencionada por uma criança. Evitava crianças porque me provocavam fortes sentimentos, os quais, como todo sentimento poderoso, eram difíceis de interpretar. O que se manifestava era sua força, e não sua natureza. Eu costumava ficar aliviado ao me separar de filhos de outras pessoas depois de algumas horas. Será que me sentiria de outra forma se tivesse meus próprios filhos?
Meu pesadelo recorrente era sobre ter filhos, não gostar deles e me sentir amarrado a eles pelo resto da vida. Minha ligação com meus pais tinha sido fonte de muita alegria para mim e para eles; e eu queria levar isso adiante, mas grande parte de minha desolação também tinha raízes na dinâmica de minha família, na qual as emoções podiam ser tão intensas que era difícil distinguir entre o que acontecia comigo e o que acontecia com eles. Eu havia sido dominado na condição de filho; recém-saído da boca da baleia, tinha medo de ser engolido pela condição de pai. Também tinha medo de me tornar o opressor de uma criança que fosse diferente de mim, já que houve um tempo em que me senti oprimido.
Quando conheci John, ele já tinha um filho biológico. Ele e a mãe biológica da criança, Laura, tinham sido colegas de trabalho, e Laura o observara durante anos antes de lhe pedir que ajudasse a ela e a sua companheira, Tammy, a terem um filho. Embora não fosse muito chegado a elas, John concordou. Assinaram documentos em que ele renunciava aos direitos de pai e elas renunciavam à reivindicação de pensão alimentícia. Ele se prontificou a participar da vida do filho dentro do possível, se o filho e suas mães quisessem, mas, em respeito à posição de Tammy como mãe adotiva, acabou tendo pouco envolvimento.
John não fez questão de me apresentar a Tammy e a Laura de imediato, mas poucos meses depois do início de nosso relacionamento nos encontramos com elas e o bebê, Oliver, na Feira Estadual de Minnesota de 2001. Oliver chamou John de donut dad [papai donut] em lugar de donor dad [papai doador], e todos riram. Mas então quem era eu? Dezoito meses depois, elas pediram que John fosse doador mais uma vez, e com isso Laura teve Lucy. Eu estava desconfiado da relação de John com essa família, mas também fascinado por ela. John era pai de dois filhos, e eu olhava para essas crianças em busca de pistas sobre como ele realmente era. Eu ainda não gostava deles, mas isso era irrelevante para aquela onda de emoção e biologia.
Eu vinha pensando na possibilidade de ter meus próprios filhos biológicos havia alguns anos. Em 1999, durante uma viagem de trabalho ao Texas, fui a um jantar em que reencontrei Blaine, amiga da época de faculdade. Ela sempre me parecera encantadora: espontânea, boa gente, com uma inteligência aguda e nada exibicionista, dona de uma graça atemporal. Ela se divorciara havia pouco tempo e, tendo perdido a mãe, mencionou que o melhor tributo que poderia prestar a sua infância feliz era tornar-se, ela própria, mãe. De brincadeira, numa mesa cheia de gente, falei que me arriscaria a ser pai de seu filho. Ela reagiu com entusiasmo, dizendo que poderia aceitar a oferta. Para mim, era inimaginável que ela quisesse mesmo ter um filho comigo; minha sugestão tinha sido feita com a mesma cortesia retórica com que eu teria convidado novos conhecidos num país distante a dar uma passadinha para um drinque se algum dia estivessem em Greenwich Village. Quando voltei para casa, escrevi-lhe uma carta dizendo que sabia que talvez estivesse brincando, mas achava que ela seria a melhor mãe do mundo e esperava que tivesse mesmo um filho com alguém.
Quatro anos depois, em 2003, quando fiz 40 anos, Blaine foi a Nova York para uma festa surpresa de aniversário que organizaram para mim. No dia seguinte saímos para jantar e descobrimos que ambos queríamos dar continuidade ao projeto do bebê. Nunca me senti tão honrado nem tão assustado. Nosso acordo seria, em alguns aspectos, semelhante ao de John com Tammy e Laura, mas diferente em outros. Eu ia assumir a paternidade legal da criança, que receberia meu sobrenome. Embora nosso filho fosse morar no Texas com Blaine, minha relação com ele seria explicitamente paternal.
Eu ainda não estava preparado para contar tudo a John, e quando o fiz ele explodiu, como eu temia que fizesse. Ele tinha sido um doador de sêmen. Já eu entraria numa ligação permanente e profunda com Blaine, uma ligação que, na opinião dele, poderia se transformar num triângulo fatal para o relacionamento entre nós dois. Foi então que começou a fase mais difícil de nossa vida em comum. Conversamos sobre isso durante meses – John e eu, Blaine e eu – e as negociações foram ganhando uma intensidade balcânica. Levamos três anos para aplainar as arestas, mas John, cuja boa vontade sempre triunfa, enfim cedeu. Blaine e eu providenciamos a gravidez por intermédio de uma clínica de fertilização in vitro. Blaine, durante esse processo, tinha conhecido Richard, que se tornaria seu parceiro, o que trouxe à situação um equilíbrio razoável, embora inusitado.
Quanto mais curiosos se tornavam nossos acertos, mais tradicionais começavam a nos parecer. Antes disso, John já tinha proposto que nos casássemos e decidi honrar a ideia, embora ainda fosse um partidário reticente do casamento gay. De certa forma, casar foi o modo que encontrei de garantir a John sua importância para mim à medida que avançávamos com o projeto Blaine, mas em pouco tempo o casamento se tornou, mais profundamente, um meio de celebrar a magnanimidade, a inteligência e o senso ético de John; o fato de minha família e meus amigos gostarem muito dele; e o modo como ele vê no coração dessas pessoas as mesmas coisas que eu vejo.
Casamo-nos em 30 de junho de 2007, numa cerimônia campestre, e pensei que, se todos os meus traumas tinham servido para me conduzir àquele dia, não haviam sido tão ruins como pareceram em seu momento. No brinde de noivos, eu disse: “O amor que não ousava dizer seu nome agora põe a boca no trombone.” Tammy, Laura e os filhos vieram; Oliver entrou como pajem, levando a aliança de John. Blaine, grávida de quatro meses do filho que tínhamos concebido, veio com Richard, e John disse de brincadeira que tínhamos sido os primeiros gays a se casar na marra.
Em outubro, como a gravidez apresentou complicações, John e eu corremos para Fort Worth. O parto foi feito por cesariana em 5 de novembro de 2007. Vi o obstetra tirar a pequena Blaine da superfície convexa da barriga da mãe e fui a primeira pessoa a tê-la nos braços. Fiquei ruminando a ideia de que agora era pai, mas não sabia o que fazer com ela. Foi como se, de repente, alguém tivesse dito que eu ainda era eu mesmo e, também, uma estrela cadente. Segurei o bebê, Blaine a segurou, Richard a segurou, John a segurou. Quem éramos nós todos para aquela trêmula criatura? Quem era ela para todos nós? Como isso ia modificar o que representávamos uns para os outros? Depois de muita pesquisa, eu já sabia que toda criança tem algo de sua identidade horizontal e remodela seus pais. Perscrutei o rostinho de minha filha procurando saber quem era ela e algum sinal da pessoa em que ela me transformaria.
Dez dias depois, John e eu voltamos a Nova York. Uma vez em casa, fiquei preocupado com minha filha recém-nascida, mas passei a imaginar que estava apenas servindo de apoio para uma coisa maravilhosa que Blaine tinha feito, em vez de me comprometer com algo que eu mesmo fizera. Eu ainda não sabia que a excitação biológica da paternidade recente era apenas uma leve insinuação da paixão que é a própria paternidade. Eu tinha de distinguir o alívio de ter escapado daquela tragédia definidora, à qual meus pais tinham dado tanto espaço, da assustadora realidade de um novo ser humano pelo qual eu era responsável. Eu não queria ter com a pequena Blaine um vínculo tão profundo que o fato de ela morar no Texas se tornasse intolerável, nem queria um vínculo tão superficial que ela se sentisse abandonada. Mas já estava consciente de que o que eu pretendia de minhas emoções não tinha a menor importância.
Casar e ter filhos são acontecimentos públicos. Como outros acontecimentos públicos, eles reificam o que expõem. Eu tinha uma visão de nossa vida, e de uma hora para outra todo mundo tinha uma visão dela também. Envolver outras pessoas fortalece a realidade de alguém, e tínhamos arrastado grande número de parentes e amigos para o processo por meio do qual o amor cria um lar, um processo em cujo interior a verdade recebe uma carapaça que a protege e a sustenta.
Eu me sentia grato por nossos amigos terem comemorado nosso casamento; sentia-me grato por John ter recebido bem a filha que ele temia; sentia-me grato também porque John e Blaine tinham começado a confiar um no outro. Por fim, notei o quanto Blaine tinha em comum com minha mãe – a mesma capacidade de encontrar humor no dia a dia; o mesmo comedimento prudente quanto às próprias emoções; a mesma imaginação desenfreada mas oculta de quase todo mundo atrás de uma elegância decorosa e uma obstinada reserva; a mesma empatia inteligente com um quê de tristeza. Como muitos homens, busquei uma réplica de minha mãe para com ela ter minha filha. O pai de Blaine, de 86 anos, cujos valores achei que poderiam ser desafiados por nosso trato, estava encantado. Meu pai ficou emocionado.
Tardou pouco para eu descobrir que queria criar uma criança com John, em nossa casa, como prova de nosso amor. O trato original de John com Tammy e Laura tinha resolvido um problema; já o trato com Blaine era mais íntimo. Mas a perspectiva de ter um filho morando conosco em caráter permanente era explosiva em relação a tudo o que tínhamos aprendido a esperar da vida na condição de homens gays. Eu nunca tinha tido vontade de casar, e a realidade me encantou. Achava que exigir um filho seria uma troca justa, e que John também acabaria encantado. Como John não tinha tanta certeza quanto eu de que queria esse filho, eu teria de agir como líder de torcida nesse empreendimento. Eu já nutria uma paixão cheia de esperança por uma pessoa que ainda não existia, e tinha certeza de que a paternidade só intensificaria tudo aquilo que eu já apreciava em John, mas a conversa empacou nesse ponto.
O amor que havia entre nós era pré-requisito para um filho, mas não motivo suficiente para tê-lo. Não podíamos fazer da procriação um experimento social, nem uma declaração política, nem uma forma de nos completarmos, e eu não podia ser o único entusiasta nessa decisão. Foi então que John me deu de presente de aniversário um berço antigo com um laço, e perguntou: “Se for menino, podemos dar-lhe o nome de meu avô, George?”
Um advogado nos expôs a conveniência de que uma mulher doasse o óvulo e outra emprestasse a barriga, já que assim nenhuma delas poderia ser considerada a mãe da criança de pleno direito. John propôs que eu fosse o pai biológico e disse que seria o pai do próximo filho, se houvesse um.
Como muitos casais de meia-idade com problemas de fertilidade, nos lançamos a uma caça cega ao óvulo. Fomos a San Diego para ter contato com a agência de doação que escolhemos. Por mais alegre que eu me sentisse por causa de nossa decisão, me entristecia o fato de que eu nunca saberia o que poderia resultar da mistura de meus genes com os de John. Eu estava feliz por termos condições de obter um óvulo, mas triste por nenhum de nós ser capaz de produzi-lo; feliz por podermos afinal ter um filho, mas triste por causa da aura de produção industrial que permeava todo o processo.
Sem a tecnologia da reprodução assistida, eu nunca teria os filhos que tenho, mas teria sido bom produzi-los num momento de êxtase de amor físico em vez da exaustiva burocracia. Foi caro, também, e embora o dinheiro tenha sido bem empregado, nós dois lamentamos que uma situação econômica privilegiada tenha sido condição necessária para o que preferimos considerar como um ato de amor.
Minha pesquisa me levou a uma clara percepção do aspecto quase eugênico da busca da doadora – o modo como deveríamos optar por uma doadora que se encaixasse em nossos padrões de inteligência, caráter, saúde e aparência. Para mim, essas decisões pessoais tinham conotações políticas preocupantes. Eu não pretendia depreciar as vidas extraordinárias que tinha aprendido a respeitar, mas não podia negar que queria uma criança que fosse parecida conosco o bastante para que pudéssemos confortá-la com nossas semelhanças mútuas. Ao mesmo tempo, sei que a linhagem genética não vem com garantia. O catálogo de atributos que cada doador apregoava me fez sentir como se estivéssemos comprando pela internet um carro que íamos dirigir pelo resto da vida. Teto solar? Baixo consumo na estrada? Cabelo ruivo? Boas notas no vestibular? Avós que passaram dos 80 anos? O questionário todo era absurdo, deprimente, moralmente perturbador. Ainda assim, a tarefa de escolher a doadora parecia o único gesto concreto que podíamos fazer num período de abstração paralisante, uma pitada de conhecimento nesse grande mistério.
Contamos nosso plano a Laura e Tammy, e Laura disse a John: “Não poderíamos ter tido Oliver e Lucy sem você, e nunca lhe agradeceremos o bastante por isso, mas eu poderia ser sua barriga de aluguel e mostrar o quanto você e Andrew significam para nós.” Foi um gesto de imensa generosidade, que aceitamos. Então se seguiram os exames médicos de Laura, da doadora do óvulo e os meus; amostras (a sala luminosa do hospital, a pasta de couro sintético com revistas femininas antigas oferecida pelos funcionários); tratamento de fertilidade para Laura; transferência de embriões; ultrassonografias. Como muitas das famílias que conheci, a minha foi atingida da mesma forma pelas mudanças nas regras sociais e na tecnologia. A feliz colaboração desses elementos foi a precondição para termos nossos filhos.
Engravidamos na segunda tentativa de fertilização in vitro. Embora tenhamos sido extremamente prudentes na seleção do óvulo, decidimos não fazer a amniocentese. Essa decisão me surpreendeu quando a tomei, junto com John e Laura. O risco de ter um filho deficiente (bastante improvável, segundo exames menos invasivos, mas também menos conclusivos) já não nos assustava a ponto de nos arriscarmos a um abortamento. Eu poderia ter pensado em interromper o processo se recebêssemos um resultado adverso da amniocentese, mas já não seria capaz disso com a lógica que me orientou ao escrever este livro. Minha pesquisa havia demolido aquela certeza, portanto sucumbi à fuga.
Você nunca conhece uma pessoa tão profundamente como quando ela leva no ventre um filho seu, e fiquei encantado pela maneira como Laura entrelaçou a vida que estava construindo para nós com a que tinha construído para si mesma. Ficamos irremediavelmente próximos dela, de Tammy e das crianças. Oliver e Lucy se referiam ao bebê que ia nascer como seu irmão. A princípio, fiquei encabulado com o entusiasmo deles, mas John e eu fomos a Minneapolis para a última fase da gravidez e acabamos ficando lá mais de um mês, vendo os quatro quase todos os dias, o que me deu a chance de observar como Oliver e Lucy ecoavam a inteligência e a delicadeza de John. Quando eles souberam que a pequena Blaine nos chamava de papai e pai John, disseram às mães que queriam nos chamar assim também.
Eu não estava preparado para a ideia de que todos aqueles filhos eram, em diferentes graus, meus. Mas a doçura com que John passou a festejar as Blaines traçou um caminho de aceitação. Tendo programado ter dois filhos, eu de repente me via com quatro, e agora acreditava que poderia amar todos eles profundamente, ainda que de maneiras diversas. Trazer-nos para mais perto tinha sido parte da estratégia de Laura para nos ajudar, e deu certo. A insistência de John em que éramos todos uma família fez com que isso acontecesse. Sem minha campanha, não teríamos a pequena Blaine nem essa outra criança, mas sem o otimismo de John teríamos ficado compartimentalizados. Teria sido o caminho mais fácil, e eu o tomei erradamente como o melhor. John aprendeu comigo a fazer as coisas em vez de apenas imaginá-las; eu aprendi com ele a vivenciar essas coisas uma vez que as tínhamos feito. Pela pequena Blaine, pelo bebê que estava chegando, por Oliver e Lucy, e pelas extraordinárias famílias que conheci, me modifiquei, e crianças já não me entristecem.
[1] O artigo integra o livro Longe da Árvore, a ser lançado em setembro pela Companhia das Letras. Capítulo traduzido por Donaldson M. Garschagen.
[2] Os conceitos de identidade horizontal e identidade vertical são explicados pelo autor em outro trecho do livro: “A maior parte das crianças compartilha ao menos alguns traços com seus pais. Etnicidade, por exemplo, é uma identidade vertical. Entretanto, frequentemente há alguma característica nata ou adquirida que é estranha aos pais e deve ter sido trazida por outros pares. Isso é uma identidade horizontal. Homossexualidade é uma identidade horizontal.”
[3] Exame pré-natal que consiste na retirada de líquido amniótico do abdome materno para detectar deformações genéticas no bebê.
[4] No Brasil, a seleção de embriões só é permitida em caso de diagnóstico de alteração genética causadora de doença.