As pessoas nas praças quiseram enquadrar os políticos, mas eles continuaram indiferentes às ruas; agora, os manifestantes se referem ao período democrático pós-franquismo como "O Regime" ILUSTRAÇÃO: MIGUEL BRIEVA
A democracia na praça
Dois anos de protestos na Espanha
Germán Labrador Méndez | Edição 83, Agosto 2013
VOZ DE MULHER EM ASSEMBLEIA – Todos e todas aqui somos superimportantes. Por favor, isso não vai voltar a acontecer em muito tempo. É agora que temos o poder, e o mundo inteiro está olhando para nós.
POVO DE MADRI – A revolução começou. A revolução começou.
A revolução começou.
Assembleia da Porta do Sol (Madri), 17 de maio de 2011.
(Retransmitida de um celular por Juan Luis Sánchez.)
Dois anos e três meses. E eu me surpreendo ao voltar mais uma vez aos fragmentos do Movimento 15 de Maio, o 15-M, flutuando como vídeos no hiperespaço. Transcritas desse modo, as vozes adquirem o fulgor do teatro clássico, oráculos, cidades longínquas e os coros de seus povos em transe. Imagino que seja essa a consciência da revolução, que convida a falar assim, sabendo-se olhados pelo mundo. Essa jovem sem nome diz cinco palavras-chave, sem hesitar: tempo, poder, mundo, olhar, isso (e isso quer dizer revolução). De onde ela tira a voz para dizê-las? “Este é um momento histórico”, afirmarão outros entre os milhares de pessoas reunidas na Porta do Sol, a praça no Centro de Madri, na tarde de 17 de maio de 2011. Esse era o momento em que os protestos transbordavam, lá e em outras treze cidades espanholas, transformando as manifestações dos dois dias anteriores (15 e 16 de maio) numa insurreição coletiva e pacífica, que ultrapassou as proibições do Estado, a repressão policial e as tentativas da Justiça Eleitoral de submeter a cidadania indiferente ao calendário das iminentes eleições locais do domingo seguinte, dia 22.
Impressionou-me ver como as próprias vozes na assembleia se tensionavam, ganhavam gravidade, transbordadas pelo sentido das palavras que vinham de toda parte. Da plebe emergiam seus tribunos. Eu não reconhecia esses cidadãos como contemporâneos, como habituais de meu país. Quem eram eles? Em que salas de espera eu não os encontrara? De onde saíam, eles e a linguagem que usavam?
O mundo está olhando para nós. Mas de que lugar? Eu os vi de outro continente, sob outra hora. Instalado no meu fuso, corrigia provas, e via a Porta do Sol ao vivo pelas câmeras de vigilância da companhia de trânsito, que logo seriam desligadas pelas autoridades. Vista de cima, a multidão ocupava o espaço como um líquido denso, transformando com seus corpos (como se tivesse nevado) o skyline madrilenho, cujo novo aspecto (ou já o tínhamos visto antes?) parecia o de uma paisagem alagada em que as marcas do território (publicidade, faixas de trânsito e de pedestres, vitrines, comércio) desaparecem. O espaço emerge então livre de rastros como cenário de uma nova potencialidade política. Nas praças também havia jornalistas, mídias alternativas e cidadãos anônimos, retransmitindo com suas câmeras, de baixo, e lá não havia sinal de formas monstruosas ou massas contínuas, só pessoas que falavam, aplaudiam, diziam coisas umas às outras, e afirmavam: “Vivemos em democracia. Somos o povo.”
Onde estavam todos poucos meses antes, na época da erosão acelerada do Estado de bem-estar, quando a social-democracia espanhola assumia publicamente a distância entre suas promessas (“Cortar direitos, nunca”, dissera o então primeiro-ministro José Luis Zapatero) e suas ações? Quem eram aquelas mulheres, aqueles homens, de início muito jovens, e gradualmente de todas as idades, que tinham se reunido nas praças? “Pensávamos que não existíamos”, diria alguém, e esse passado se refere aos anos do “boom imobiliário”, da bonança macroeconômica, dos excessos, enquanto a desigualdade crescia, o poder aquisitivo caía, o trabalho se precarizava, a dívida e a corrupção aumentavam e o país era inundado por um mar de concreto, que também transformava o território, apagando outras marcas (do mundo agrícola, do mundo industrial, do mundo natural). Uma maré de capitais que, ao refluir, deixou cidades inóspitas de casas sem gente, infraestruturas ultramodernas inúteis, os arranha-céus mais altos da Europa inacabados à beira-mar, como as marcas do mar na areia, ou como conchas estranhas.
Vistas do mundo, as pessoas que eu conhecia do meu país eram as mesmas que estavam lá, em todas aquelas praças? O entendimento mútuo e imediato entre os manifestantes na praça tornou-se um tema importante para o 15-M, nome do ciclo de protestos iniciado há mais de dois anos. Sob a sigla 15-M, entendem-se pelo menos quatro coisas: a) uma experiência histórica coletiva (um tempo); b) um movimento político-social; c) uma linguagem, certas práticas e uma filosofia e d) um acontecimento histórico concreto. A questão do reconhecimento mágico afeta todas elas e, para explicá-lo, os intérpretes do movimento insistiram muito em dois elementos combinados: a busca da inclusividade (a vontade de ressaltar os elementos comuns) e a neutralização estratégica das identidades sociais preestabelecidas por meio de máscaras políticas, algumas icônicas (como a de Guy Fawkes em V de Vingança), outras linguísticas (“Somos cidadãs e cidadãos comuns”).
Para reconhecerem-se juntos e iguais como um sujeito político novo se requer algo assim como um estado de graça sobre o qual é preciso aprender a falar, e falar sem parar (nada é mais importante para os enamorados que seu próprio amor, nada importa mais aos emplazados que a própria praça). As pessoas que falavam naquelas jornadas pareciam iluminadas. Lúcidas. Virtuosas. Suas palavras adquiriam uma espécie de brilho que a vida diária, mais pobre, limitada, cega, não comporta.
Naqueles dias começaram a circular milhares de frases, sobre suportes efêmeros, cartolinas, lençóis, papelões… num trabalho imenso de produção de uma cultura efêmera. Esses enunciados poéticos (slogans) informavam (produziam informação produzindo formas), funcionavam como verdadeiras alavancas que lançavam as palavras gastas da língua política comum a campos léxicos desconhecidos. Revolução, povo, cidadão, democracia, representação… O significado do conjunto do vocabulário político básico tinha mudado em questão de dias, se não de horas.
O conjunto desses fragmentos poéticos construiu uma cultura poética. Toda cultura poética é feita de fragmentos. Não lembramos poemas inteiros com a mesma facilidade que nos comove um verso de Horácio ou da Nação Zumbi. As culturas poéticas (e mais ainda as de caráter oral) tendem a ser potencialmente inclusivas: qualquer um pode recorrer a elas para organizar sua experiência com versos. O 15-M funciona com essa lógica: seus versos são incorporados e usados. Vemos seus lemas e tuítes circularem, aparecerem, reaparecerem em protestos globais. Muitos já estavam lá anteriormente, vêm de outro tempo, vão para outro tempo. Reaparecem nas praças da Turquia (“A revolução não será televisionada”), nas ruas do Brasil (“Desculpe o transtorno, estamos mudando o país”, “Formatando o Brasil em 3, 2, 1…”).
A voz do dia 17 de maio que abriu estas páginas falava da necessidade de reunir poder, tempo e revolução. Tinha de ser agora, porque isso não vai voltar a acontecer em muito tempo. A questão do tempo e seu uso foi central nos protestos. “Que horas são? Hora de acordar!”, diziam os cartazes. Falar da revolução era falar do tempo, daquele que se tinha e daquele que restava. Se para Gianni Vattimo e Santiago Zabala o tempo do neoliberalismo é um tempo sem urgência, na tarde de 17 de maio sentia-se essa urgência, e a revolução tornou-se inadiável. Nada é mais importante para os hipotecados do que os prazos de sua hipoteca.
Desde o início, os protestos foram nostálgicos de si mesmos (“Ninguém poderá descolar essas mensagens da sua cabeça quando o último cartaz cair”), acho que para ocupar o próprio tempo que se abria à frente, desconhecido, para encontrar um lugar no futuro de onde pudesse olhar e entender tudo aquilo (“O que você vai dizer quando seus filhos perguntarem onde você estava? Assistindo televisão?”). Tempo, olhar, revolução. Falar destes dois últimos anos na Espanha obriga a voltar a olhar para a Porta do Sol. É o Big Bang do tempo de protestos que vivemos: lá é criado o novo tempo (“Dormíamos. Acordamos. Praça tomada”, “Este Sol já não se põe”), a semente de todas as linhas de ação política que surgiram nestes dois anos pode ser reconhecida na pluralidade das assembleias e cartazes. Usando uma metáfora futebolística: as pessoas viviam como se um novo jogo estivesse começando, com o placar zerado.
A revolução tornou-se inadiável porque surgia de um conjunto de percepções históricas combinadas. De um lado, a sensação de que, nos últimos anos, o campo de decisão política se deslocou das instituições democráticas locais para o âmbito financeiro transnacional, com a consequente perda de soberania dos cidadãos (“Quem manda são os mercados, mas eu não votei neles”). Esse processo, também nas sociedades do sul da Europa, se deu por meio da mercantilização da vida. “Se você comprar uma vida, nunca vai acabar de pagá-la”: nos anos de bonança, a circulação do crédito pessoal (imobiliário e de consumo) aumentava, num desenho em que os planos individual e macroeconômico se articulavam numa mesma relação entre tempo, dívida e consumo que, nas praças, era subitamente interrompida (“Você nunca vai ter uma casa na merda da sua vida”).
Quando as pessoas se viram reunidas nas praças, entenderam que deviam se opor, ao mesmo tempo, ao alijamento da cidadania, à substituição da política pela gestão e ao adiamento da vida em nome do consumo. Dessa necessidade de engajamento surge a utopia poética de uma revolução inadiável. A dívida pode crescer sem limite, mas nosso tempo é limitado.
Em seu Comunismo Hermenéutico (cujo título alude à interpretação alternativa do mundo reivindicada pelos perdedores da história), Vattimo e Zabala falam na “democracia enquadrada” (framed democracy) como a única possível hoje (isto é, que se apresenta como legítima) no campo do tecnocapitalismo neoliberal e que não responde a fundamentos de representação nem de redistribuição. Os dois autores sustentam que a política não pode se basear em fundamentos científicos e racionais, mas somente na interpretação, na história e no acontecimento. Tal como estou usando o termo, uma leitura engajada dos protestos na Espanha pode servir para pensar que tomar consciência da condição limitada, formal, “curto-prazista” das democracias ocidentais não pode ser dissociado do questionamento das suas instituições feito pelos cidadãos, que desse modo as enquadram em praça pública. É um modo de entender criticamente a democracia hoje, como uma localização necessária dos corpos derivada do deslocamento do político.
DEMOCRACIA, TE AMO
Um exemplo menor sempre pode ter um efeito probatório. Em 2010, Javier Krahe lançou seu disco Toser y Cantar e uma de suas canções (¡Ay, Democracia!) tomava o verso do soneto de Neruda (“Gosto quando te calas porque pareces ausente”), para virá-lo do avesso. A letra falava da crise de legitimidade da democracia formal como a crise de um casamento burguês. A relação do cidadão Krahe, casado há trinta anos com Democracia, esfriava (“Gosto de você, mas às vezes queria que estivesse mais presente”). O cidadão afirma que vai se divorciar, quer dizer, renunciar ao voto (“Não espere que a procure quadrienalmente/ não vamos mais dividir a mesma cama/ vamos nos separar civilizadamente/ e você que continue vivendo da sua fama”).
Quando Javier Krahe anuncia seu desencanto político nesses termos, fala como representante histórico da geração que marcou a cultura da transição para a democracia e como um dos velhos poetas do mundo antifranquista. Em 1981, colaborou no famoso álbum La Mandrágora, belo representante da canção de protesto da transição. Se a geração que protagonizou a transição para a democracia na Espanha forneceu os quadros políticos da social-democracia, dela emanam também os valores da cultura hegemônica do país nas últimas décadas (a “das classes médias ilustradas”). O ciclo biológico dessa geração coincide com o ciclo do Estado de bem-estar social. O paradoxo é que esses quadros políticos encaram sua saída da cena histórica nacional ou como os cínicos responsáveis diretos ou como consternados espectadores que veem ruir tudo aquilo que sustentava a ideia de democracia (educação pública, saúde pública, direitos trabalhistas, paz social, bem-estar econômico, aposentadoria, qualidade de vida, liberdades civis, paz cultural…).
A canção de Krahe foi levada à praça como um fragmento a mais da realidade, e ali seu verso adquiriu a urgência antes mencionada. Escrita sobre uma pele qualquer, gritava: “Gosto de você, democracia, porque está como ausente.” A força da frase fez com que ela fosse repetida e se cristalizasse, até achar seu lugar no arquivo poético do 15-M, apontando para um dos eixos do movimento, a crítica entre forma e conteúdo, entre a democracia real por vir (“Democracia real já”) e a falsa democracia das instituições (“Que não, que não, que não nos representam”). Se Krahe entendia o desencanto político como uma ruptura sentimental, a mesma coisa acontecia nas praças, com lemas tão poderosos como “Não é uma crise: acontece que não te amo mais” ou “Se transar a cada quatro anos não é vida sexual, votar a cada quatro anos não é democracia”.
Todos esses lemas coincidem em que o pacto constituinte fundador da democracia, tal como a conhecemos desde 1978, não era apenas um pacto político, era um pacto erótico (e um pacto de linguagem), e que este se rompera. As pessoas lá reunidas queriam o divórcio, sim, só que não para “deixar de votar”, como Krahe, mas para começar uma nova vida em comum, com outras pessoas, para votar a toda hora… Queriam separar-se de seus representantes políticos e das instituições que arrogavam sua representação.
Nos protestos de 2011, os cidadãos convocaram seus representantes a atender suas demandas destituindo-os simbolicamente. Pediram o divórcio. Em julho, os representantes políticos simbolicamente destituídos mandaram a polícia contra os cidadãos. Estes foram expulsos da praça: a polícia desalojou gradualmente os acampados e, aproveitando a visita do papa a Madri durante a Jornada Mundial da Juventude (curioso paralelismo com o Brasil), removeram o acampamento da Porta do Sol. Dois meses depois, não sem resistência, perderam-se os demais acampamentos. A perda das praças foi um trauma coletivo para o movimento. Toda a ação posterior tem a ver, em boa medida, com a assimilação dessa derrota, com a tentativa de vivê-la positivamente, com a passagem de “uma lógica de posições para uma lógica de movimentos” (A. F. Savater), com a necessidade de evoluir. A saída das praças marcou o início de outro tempo. Sua referência inevitável é a narrativa da expulsão bíblica do Jardim do Éden político.
Desde então, os “quinze-maiístas” vagam deslocados, des-plazados. Depois dos acampamentos, começou toda uma série de marchas indignadas, nas cidades, no país. Alguns grupos também marcharam pela Europa. A noção de deslocamento é hoje central dentro do movimento. Para sua intelligentsia também, e cada um a teoriza como pode. Sua referência atual é a narrativa do êxodo bíblico. Os movimentos sociais vagueiam pelo deserto do presente, com a promessa de que, se perseverarmos, chegaremos um dia à Terra Prometida da República dos 99%.
No outono de 2011 houve eleições gerais. O 15-M sugerira duas linhas de ação: o não voto de Javier Krahe (“Por que votar em vocês, se são os mercados que mandam?”, “Se votar servisse para algo, seria considerado ilegal”) ou a dispersão do voto, para quebrar a lógica bipartidária que teria sequestrado a vontade popular (“Democracia na Espanha = transtorno bipolar crônico”). Nenhuma das duas opções teve impacto significativo nos resultados. O importante foi que, quase sem ganhar votos (5% a mais), o Partido Popular, da direita, arrasava nas eleições de 20 de novembro.
Isso permitia não ter plena consciência de que a força hegemônica na cultura espanhola da democracia (o Partido Socialista Operário Espanhol de Felipe González e Zapatero) tinha desabado. Perdera 40% do seu eleitorado, recebendo a pior votação de sua história democrática. E as elites do PSOE pareciam contentes de perder! Nem se deram ao trabalho de explicar os resultados (“A causa foi uma crise intensa e muito instável” junto com “erros de gestão e de comunicação”). Depois de varrer o Acampamento do Sol, preferiam deixar para outros a tarefa de acabar com o Estado do bem-estar social, considerada a forma europeia da democracia, Estado que eles mesmos ajudaram a criar e se negaram a defender.
Para muitos, o 15-M significou o final (definitivo?) do casamento de conveniência que uma grande parte da “esquerda sociológica” espanhola mantinha com o PSOE, acordo tácito que permitia aos cidadãos votar ou não nessa sigla em diferentes contextos históricos, movidos por uma mescla de afetos cívicos, cálculos eleitorais, cumplicidades ideológicas e vantagens econômicas. No fundo, parte dessas classes médias acreditava que a visão de mundo do PSOE, com todas as suas contradições ideológicas e morais, e talvez justamente por causa delas, era a garantia da qualidade de seu bem-estar material nas últimas décadas. É a esse casamento sem amor que Javier Krahe põe um fim, justo quando o dinheiro acaba, e a maneira de dividi-lo também muda. Boa parte dos filhos universitários dessa geração, que desde o início do século se viu privada do acesso àquele bem-estar, não estabeleceu compromissos tão intensos com aquele pacto de origem.
O pensamento político da social-democracia espanhola foi fundamentalmente paternalista. Não viu seus representados como cidadãos de pleno direito. O próprio Zapatero diria: “É preciso ouvir e ser sensível, eles têm o direito de expressar seu mal-estar.” Mas nenhuma palavra sobre os conteúdos cívicos dos protestos. Nas eleições de novembro de 2011, a social-democracia espanhola, depois de trinta anos de fidelidade a si mesma, atirou-se no vazio eleitoral. Algo parecido aconteceu no caso do Partido Socialista grego, o Pasok. Lição para outros partidos social-democratas no poder: correm o risco de se desintegrar se não responderem à convocação cívica de seus cidadãos, quando estes se perguntam pela natureza política de suas vidas precarizadas.
Os manifestantes foram expulsos de suas praças. Mas, em compensação, o Estado pagou um alto preço com a perda de sua legitimidade simbólica. O poder teve de representar a repressão. Deu razão às críticas de seus cidadãos ao pôr em cena sua condição não democrática. As praças cercadas e ocupadas pela polícia, os deputados protegendo-se de seu povo, a pista de gelo ocupando a Praça da Catalunha, em Barcelona, no outono de 2011, como uma tentativa de congelar os protestos… Conscientes da perda de legitimidade, as instituições democráticas mudaram sua linguagem (“o melhor é inimigo do bom”, “permitiu-se a usurpação da via pública”, “são manipulados”, “cruzaram a linha vermelha”) e começaram a criminalizar e reprimir os movimentos. Passados dois anos, a Câmara dos Deputados está em estado de blindagem permanente desde a mobilização de 25 de setembro de 2012, que, ao grito de “Ocupa o Congresso”, tentou pôr em cena a demanda popular de um novo pacto constituinte.
Se o povo pediu o divórcio, o poder agora quer ficar com o carro, a casa e a guarda dos filhos. Desde 2011, o mais chamativo na dinâmica da crise foi sua aceleração, com o indecente desmanche do Estado de bem-estar social. Impõem-se acelerados processos de transferência de recursos públicos para o setor privado: a privatização da saúde, o encarecimento da universidade, os cortes na educação, a privatização de infraestruturas e serviços básicos como a água, a reforma da previdência social. Além disso, aprova-se uma reforma trabalhista que, acompanhada do aumento do desemprego a níveis inimagináveis (27% da mão de obra ativa, mais de 40% entre os jovens, um total de 6 milhões de desempregados), evidencia outra restrição: a do acesso da população a um salário, ao dinheiro. Hoje já não se fala em bem-estar, mas em sobrevivência.
Se o motor do crescimento era a dívida, agora o motor da retração é o pagamento dessa dívida, que é transferida para os cidadãos. Como pano de fundo, alguns críticos falam de uma completa reestruturação do sistema produtivo na Espanha, e no sul da Europa em geral. A região seria totalmente espoliada, transformada em área de recreação europeia administrada por corporações estrangeiras. Turismo, gastronomia, esportes, lazer, sol, infraestruturas, moradias de luxo… A destruição de todo o tecido de pesquisa, que hoje ameaça fechar o Conselho Superior de Pesquisas Científicas (a agência de fomento à pesquisa mais importante da Espanha), é coerente com esse processo. Para o atual governo, o grande projeto de desenvolvimento na Espanha dos próximos anos é a EuroVegas, uma Babilônia do jogo e da prostituição que está sendo construída perto da capital do país. É como se, de repente, a sociedade espanhola visse, perplexa, a fronteira global que separa o sul do norte deslocar-se do estreito de Gibraltar para os Pirineus.
Lemas como “Não vamos pagar a crise de vocês” e iniciativas como a Auditoria Cidadã da Dívida insistem em que a administração da crise é conduzida pelos próprios beneficiários das bolhas especulativas dos anos anteriores. Enquanto estouram escândalos de corrupção, estes disputam novas partilhas da pilhagem.
Faz exatamente um ano, eu publicava na piauí um texto sobre o resgate do setor bancário espanhol durante a Eurocopa, descrevendo os vários níveis da crise. O inventário de tudo o que aconteceu ao longo desse ano seria enfadonho: a família real é questionada diariamente, as balas de borracha da polícia estouraram um olho da manifestante pacífica Ester Quintana, o governo promove a restrição do direito ao aborto enquanto prepara uma nova legislação para “modular” (é esse o termo que utilizam) os direitos políticos. Jornalistas independentes são detidos em sua própria casa. Centenas de milhares de pessoas tomam repetidamente as ruas. A corrupção institucional ameaça devorar tudo, mas, na realidade, nada acontece: Luis Bárcenas, o ex-tesoureiro do Partido Popular, na prisão, vai aos poucos revelando o financiamento ilegal do seu partido, de seus quadros dirigentes, incluindo o primeiro-ministro, que teriam recebido salários não declarados, dinheiro sujo vindo de doações anônimas ligadas ao mundo empresarial beneficiário da bolha… É o DNA da crise, que na Catalunha também afeta a estrutura da Convergência e União, o partido nacionalista de direita, e, na Andaluzia, o PSOE, e que se instala no cerne das agremiações com alguma responsabilidade de governo nos anos do boom econômico.
As instituições políticas estão surdas a qualquer voz que venha das ruas. Não é de estranhar que o campo de luta institucional tenha-se deslocado para o âmbito judicial. O ex-diretor-gerente do FMI Rodrigo Rato, e com ele toda a cúpula administrativa do Bankia (o grande buraco negro do sistema bancário espanhol, resgatado com o dinheiro dos contribuintes), foi denunciado por vários crimes. Outro de seus dirigentes, Miguel Blesa, chegou a permanecer em prisão temporária, também acusado de conceder gigantescos créditos irregulares a Díaz Ferrán, ex-presidente da Confederação Espanhola de Organizações Empresariais, o mesmo que, dois anos antes de ser preso, afirmava ser preciso “trabalhar mais e ganhar menos para sair da crise”. O Tribunal Constitucional veta uma legislação que permitiria desapropriar imóveis sem uso em poder dos bancos, proposta pelo governo autônomo andaluz (ele também envolvido em escândalos). Diversos casos de corrupção, sonegação de impostos e evasão de divisas ameaçam a monarquia, graças ao trabalho de alguns juízes. Por outro lado, a privatização do sistema de saúde da comunidade de Madri está sob investigação judicial: destacados políticos madrilenhos estão entre os acionistas dos grupos empresariais vencedores das licitações que eles próprios organizaram. A cúpula do Poder Judiciário é hoje o terreno onde as elites tentam tomar posição no cenário pós-crise. É também nos tribunais que a sociedade reclama sua dignidade perdida.
IMAGINÁRIO DA HISTÓRIA
Na Espanha, a efeméride de 23 de fevereiro (data do frustrado golpe de Estado de 1981 e da intervenção do rei na solução do impasse) simboliza a renovação da democracia, o rito pelo qual as instituições provaram ser capazes de legar a si mesmas, de sobreviver às suas crises. Na Porta do Sol, desde 2012, os cidadãos celebram a morte da democracia pelo “golpe de Estado dos mercados”. Na tampa do caixão, colocaram duas datas – 1978 e 15-M –, não porque os protestos tivessem matado a democracia, mas porque terminara então um período da história espanhola contemporânea chamado “A Democracia” por culpa desse outro golpe, identificado com o resgate do setor bancário espanhol promovido e financiado pelo Estado.
A democracia foi uma época, e hoje os ativistas chamam seus restos pelo mesmo nome que se dava à ditadura nos anos 70: “O Regime”. Mas como chamar o que vem depois da democracia? Pós-democracia? Apocalipse? Quarto Reich? Os movimentos de resgate da memória (que nos últimos anos exumaram as valas comuns da repressão franquista) falam em “Terceira República Espanhola”. Os movimentos do novo ativismo falam em “República Global dos 99%”.
É complicado imaginar a posterioridade porque esta, por força, se expressará em termos diferentes da estética do presente. Marx, em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, impunha à revolução social a tarefa de “extrair sua poesia do futuro”. Embora todos os seus símbolos tenham uma história poética, a intelligentsia do 15-M costuma reivindicar uma originalidade radical, armada de categorias que dividem as práticas do mundo entre as da “nova política” (inclusividade, redes, novas tecnologias, assembleias, internet) e as da “velha política” (identidades, movimentos tradicionais, memória histórica, genealogia e tradições). As primeiras seriam revolucionárias; as segundas, chatas.
Se por um lado foi declarada a morte d’A Democracia, a morte do 15-M também é permanente objeto de discussão, tanto na mídia como entre os ativistas, todos obcecados pelo estado de saúde da criança. Existe algo de enigmático na observação do movimento. Muitos esforços se perderam na tentativa de estabelecer seu momento, suas linhas autênticas, sua evolução.
Pelo caminho, os fluxos de ação do 15-M, agora em plena travessia do deserto, são condenados a oscilar entre a desilusão e o voluntarismo, enquanto a vida neste canto do sul da Europa se complica, os protestos aumentam, o poder endurece no arrocho da cidadania e espalha-se a sensação de que logo haverá uma revolta ainda maior. As cúpulas do poder não querem ceder, temerosas de perder o controle; mas, se os investidores estrangeiros duvidam da capacidade de o país pagar os juros da dívida, não duvidam da capacidade do Estado de reprimir os protestos.
Hoje a questão é insolúvel: parte das pessoas tem certeza de viver “na crise”, uma temporalidade de exceção que ainda se estenderá por mais cinco, dez ou quarenta anos (sempre um tempo bíblico), conforme o político que faz a previsão. Muitas pessoas, especialmente as que viveram sob a ditadura, acreditam que estamos voltando ao franquismo a passos largos. Outras estão convencidas de que a revolução global se aproxima. Entre estas, há as que veem o mundo balançando e caindo aos pedaços, e há as que defendem que um mundo novo já nasceu das cinzas do anterior. São as mais otimistas.
Cabe dizer que, para quem viveu a explosão de protestos de dentro, participando deles, sua passagem pelo mundo é dotada de um sentido diferente, que passa por aquelas experiências e linguagens. Por isso os coletivos de manifestantes costumam ser muito ciosos de sua interpretação alternativa da realidade. E isso também permite que seus ativistas sejam vistos como extraterrestres, como ingênuos ou como iluminados por aqueles que não foram tocados e transformados pelos protestos, ou que o foram num sentido diferente.
Um dos meus livros favoritos da transição para a democracia é um romance distópico, Y al Tercer Año, Resucitó, um best-seller de ultradireita que especulava sobre a ressurreição do ditador. Gosto da ideia: Francisco Franco, morto em 1975, não seria capaz de reconhecer seu próprio país ao fim da transição, em 1978. Em três anos, os espanhóis teriam destruído sua obra de quatro décadas. Ele é traído por aqueles que lhe juraram obediência, enquanto nas ruas reinam a anarquia e a imoralidade. É o monstro da democracia. A ultradireita vê seus fantasmas se reproduzirem: a legalização do divórcio, a emergência do separatismo basco e catalão, a luta armada, o surgimento de uma juventude indisciplinada e insubmissa, greves e assembleias operárias por toda parte, ocupações de fábricas, desrespeito aos símbolos da ditadura, sexo e drogas…
Uma impressão não muito diferente da que teria alguém que tivesse desaparecido em 2010 e voltasse à Espanha três anos mais tarde. De repente, aquilo que para Javier Krahe era um problema pessoal se transformou numa explosão coletiva. Noções ausentes do imaginário coletivo nos últimos trinta anos dominam o debate. Colégios e hospitais são ocupados, grupos heterogêneos de cidadãos cooperam em ações políticas autogeridas, bloqueiam-se sedes de bancos e de ministérios, cidadãos perseguem a família real pelo país pedindo a Terceira República, batalhões de bombeiros se negam a executar despejos sob o lema de “resgatamos pessoas, não bancos”, proliferam hortas comunitárias nos terrenos baldios das cidades e trabalhadores do campo ocupam terras e confiscam alimentos em supermercados. As pessoas usam seu próprio corpo para evitar o despejo de outras que nem sequer conhecem, ou para imolar-se e não ser despejadas, enquanto hackers divulgam as contas corruptas do Partido Popular. A freira e doutora Teresa Forcades e o economista Arcadi Oliveres catalisam um movimento assembleísta para impulsionar um processo constituinte na Catalunha, que inclui sua independência. Surgem novos partidos políticos e coalizões cívicas, novos veículos da imprensa independente passam a ser a principal referência informativa, junto com as redes sociais…
São muitas as iniciativas que tentaram substituir as praças. E como tudo o que surgiu delas, muitas dessas iniciativas na verdade já existiam, só que agora adquiriram outro significado coletivo. O imaginário do 15-M é resultado da politização de todos os símbolos da bolha: a construção civil, a cultura-espetáculo, a precarização da vida, os reality shows, as novas tecnologias, o futebol, a gastronomia… tudo retorna politizado com um sentido coletivo. A especulação imobiliária resume e interliga a maior parte desses elementos. A ideia (herdada do franquismo) de unificar o país por meio de uma classe média de proprietários e da realização de grandes obras públicas orientou a economia nacional para a construção. Agora o maior problema social é a impossibilidade de os que não têm salário pagarem suas hipotecas, enquanto milhões de moradias, de propriedade dos bancos resgatados com dinheiro público, continuam vazias.
A Plataforma de Afetados pela Hipoteca (PAH) trabalha sobre esse abismo. Um lema lançado em 2011 inspira suas práticas: “Espanha, esse país de casas sem gente e de gente sem casa.” Sua ação política, aliada à sensibilidade de outros movimentos juvenis (V de Vivienda), procura evitar que isso continue acontecendo. Primeiro, por meio das campanhas Stop Desahucios, nas quais um grupo de cidadãos opõe resistência passiva e faz pressão psicológica contra os funcionários do Estado incumbidos de executar o despejo, os quais, cada vez com mais frequência, acabam cedendo. Ao mesmo tempo, trabalham com a indignação do público por ter resgatado o mesmo setor bancário que continua despejando as pessoas que não podem pagar suas hipotecas. Isso obriga os bancos a agir para reverter o prejuízo de sua imagem e recuar. Outra de suas linhas é a Obra Social PAH, que consiste em ocupar diretamente os imóveis vazios das instituições resgatadas.
O apoio social às suas ações levou a PAH a promover, com êxito, uma Iniciativa Legislativa Popular, que recebeu 1 milhão e meio de assinaturas, pedindo que o Congresso aprovasse uma lei de hipotecas mais garantista. Dias antes da votação, o Tribunal de Justiça da União Europeia deu razão às demandas da PAH, considerando a atual legislação abusiva. Ainda assim, a iniciativa popular foi rejeitada pela maioria parlamentar, dando mais uma prova do divórcio entre a vontade popular e a atividade legislativa. A declaração da porta-voz da PAH, Ada Colau, com sua linguagem engajada (“Não é uma crise, é uma fraude; não são despejos, são crimes”), na Câmara dos Deputados, expressou o conflito entre duas linguagens e dois modos de falar a democracia. Enquanto a proposta tramitava, a PAH começou sua campanha de escracho dos políticos que derrubaram a lei, com manifestações em frente a suas casas. Importava-se assim um dos métodos do movimento argentino de memória histórica, reclamando o fim da “impunidade” social nas decisões políticas.
Outro desdobramento interessante dos protestos na Espanha são as chamadas “marés”, ligadas aos pilares básicos do Estado de bem-estar social: saúde, Maré Branca, por causa do jaleco dos médicos; educação, Maré Verde, por causa do guarda-pó dos professores; serviços sociais, Maré Laranja (há outras de menor força: Maré Azul, privatização da água; Amarela, das bibliotecas; Negra, Roxa…). Usuários e profissionais passam a atuar juntos em protestos, marchas, ocupações, resistência usuária – por exemplo, quando o paciente se nega a ser encaminhado ao serviço privado apesar das listas de espera do público. A emergência das marés se apoia na politização solidária de usuários e profissionais diante do vínculo de mútua dependência que existe entre ambos. Uma entidade política maior (o público, a sociedade) se faz presente no momento em que o Estado se retira, debilitando a estrutura que antes garantia (e tornava invisível) esse vínculo de dependência.
O imaginário político da maré tem a ver com a água (penetrar, transbordar, níveis de mobilização, fluxos e contrafluxos). Sua mise-en-scène se apropria do sucesso midiático das chamadas “revoluções coloridas” (Ucrânia, Mianmar, Geórgia…). A Maré Cidadã é o conjunto multicolorido das diversas marés setoriais atuando conjuntamente. Alguns elementos dos protestos brasileiros (a defesa da educação, a apologia da figura do professor…) lembram essa poética do público, que na Espanha clama, na Maré Branca: “Queremos cuidar de todxs” (o x neutraliza o gênero na linguagem inclusiva dos protestos).
Se há alguma coisa que define o 15-M como movimento é sua paisagem sonora, caracterizada por gritos e cantos, mas também pelo uso do silêncio (os famosos “gritos mudos” do 15-M). Depois da Eurocopa do ano passado, boa parte dos cantos passou a parodiar os gritos da torcida da Seleção Espanhola de futebol. Há também o ruído dos panelaços e a “música de escrachos”. Merecem menção à parte o Coro e Orquestra Solfônica, formados por músicos profissionais e amadores nas manifestações de maio de 2011. Na greve geral europeia de 14 de novembro de 2012, em meio à violenta repressão policial, a Solfônica protegeu os manifestantes fazendo-os cantar com ela e sendo, por sua vez, protegida por seus ouvintes. A Solfônica resgata o velho cancioneiro popular-republicano (Maruxiña; Los Cuatro Muleros…), a canção de protesto da transição (Canto a la Libertad; Grândola, Vila Morena; L’Estaca), canta em todas as línguas nacionais e produz peças próprias. Recentemente, apresentou uma zarzuela (a forma popular da ópera espanhola) satírica, El Crepúsculo del Ladrillo, que recuperou o sentido das formas corais populares madrilenhas e do teatro de base.
Baixa ou alta cultura, hoje tudo está politizado. Bastava visitar a última Feira do Livro de Madri e comparar os títulos dos livros com os de quatro anos atrás. No setor Rua da Cultura, todas as formas de produção cultural – das letras de hip-hop ao grafite, do fotojornalismo aos documentários coletivos e centros ocupados – remetem ao real de um modo intenso, comunitário e obsessivo.
Em abril de 2013, ao entrar no povoado galego de Cangas do Morrazo, tive uma comoção. No alto de uma casa havia um homem à beira do abismo, contemplando serenamente a distância que o separava do chão, inclinado, elegante, a ponto de saltar no vazio, ante a indiferença dos poucos transeuntes presentes naquela hora da tarde. Estamos sensibilizados pelo drama das pessoas que se matam antes de serem despejadas, uma forma de resistência pacífica baseada na imolação, que deu lugar ao lema “Não são suicídios, são assassinatos”. Em espanhol, a palavra desahuciado denomina tanto a pessoa que é despejada de sua casa como os doentes terminais. Para não serem desahuciadas, elas mesmas se desahucian.
Podemos já ter lido sobre casos assim, e até escrito a respeito, mas não sabemos como reagir quando, de repente, estamos prestes a testemunhar o ato. Que fazer, gritar? Só pioraria as coisas. Chamar alguém? Mas quem? A PAH? O gesto instintivo é aproximar-se. Quando cheguei mais perto, percebi que esse homem, na verdade, era uma estátua. Uma estátua que nos interpela, que nos leva a interrogar sobre a relação entre o que estamos dispostos a ver e a fazer, entre aquilo que olhamos e o tempo de que dispomos. Assim, através dessas formas estéticas, conecta-se brutalmente o tempo dos que vivem na crise e o tempo dos que vivem contra a crise.
COMIDA E CANIBALISMO
Afirmei anteriormente que tudo aquilo que era emblemático dos anos do boom retornou politizado nos anos da crise. Isso também vale para a comida. Emblema do boom: um dos carros-chefes da nova gastronomia espanhola nos anos felizes era Ferran Adrià e seu restaurante El Bulli (templo onde se praticava “gastronomia molecular”). A nova cozinha desconstruía a comida, separando o processo nos seus aspectos fisiológico (nutrir-se) e biopolítico (comer). Também distorcia as estratégias da comida nacional, uma cozinha destinada à sobrevivência e à otimização energética (às vezes hipercalórica, como a fabada, uma espécie de feijoada; às vezes concebida para enganar a fome, como o gaspacho, ou para reciclar mantimentos, como a paelha).
No início do milênio, os prédios mais modernos (que também abstraíam a função e desnaturalizavam a forma) e os sabores mais vanguardistas se reuniam no território espanhol, financiados pelos fluxos da bolha imobiliária e elogiados pelos intelectuais, tudo em nome do prazer estético e da ultramodernidade. Veio a crise, deixando os prédios em ruínas e atropelando intelectuais e restaurantes de cozinha experimental, enquanto a classe satisfeita que os lotava se retirava a seus quartéis de inverno, e Ferran Adrià junto com eles.
Emblema da crise: a foto de Samuel Aranda, publicada no New York Times, de pessoas catando no lixo a comida vencida que os supermercados jogam fora. A manchete: “A austeridade e a fome na Espanha.”
Emblema do 15-M: um cartaz pede “Não tragam mais comida. Não cabe mais na despensa”. Nas assembleias de 2011, os restaurantes e cidadãos da redondeza levam à praça sanduíches, pizzas, calorias e proteínas. Esse fluxo solidário reaparece nos dizeres que politizam a comida. Foi nesse contexto que se popularizou um lema já existente: “Não tem pão para tanto chorizo.” Na linguagem popular, chorizo designa ao mesmo tempo os ladrões e um embutido barato, no polo oposto da alta cozinha.
O chorizo Revilla é “o outro” do restaurante El Bulli e evoca a memória biopolítica dos jovens espanhóis de classe média: seus lanches dos anos 80. Numa mesma equação poética, reúnem-se os responsáveis pela crise, a fome (a escassez de pão) e a vontade de comer (a abundância de chorizos). Esses lemas exploram as formas baratas de comer e a acumulação injusta dos bens comuns (“Eles comem canapés e eu não chego ao fim do mês”). No segundo aniversário do 15-M, um chorizo gigante (construído como um dragão do Ano-Novo chinês) fazia evoluções pela Porta do Sol sob a sombra inquietante de uma guilhotina – ambos os apetrechos confeccionados pela assembleia do bairro de Lavapiés.
As críticas à bolha imobiliária, mesmo quando não eram hegemônicas, já indicavam a ideia de que estávamos queimando ou comendo nosso futuro. Atribuíam a culpa a certas elites transnacionais e seus aliados locais, que estariam devorando os recursos necessários à sobrevivência coletiva, canibalizando a comunidade. “A classe dirigente digere gente”, dizia o poeta urbano Neorrabioso; na greve geral de novembro de 2012, as sedes dos bancos exibiram pichações que seguiam na mesma linha: “Aqui se come gente.” Jogando com a ideia da riqueza e do bom sabor, outra pichação ia mais além: “Os ricos são ricos [gostosos]: coma-os.” “Coma os ricos”, dizem em Barcelona. Eat the bankers, respondem de Nova York. Até a publicidade natalina da marca Campofrío convidava a amenizar o desgosto com a crise comendo chorizos…
Perante o “aristocrata vampiro”, o povo se disfarça de “povo canibal” (Foucault). Ou, em sua versão pós-industrial, de “povo zumbi”. A expressão povo canibal evoca os terrores da aristocracia francesa diante da revolução. Em maio de 2011, alguns cartazes já declaravam que “Sol será a nova Bastilha”. Durante a greve geral de 29 de março de 2012, logo depois de se revelar o envolvimento da família real em escândalos de corrupção, surgiram, em Madri e Barcelona, as primeiras guilhotinas, réplicas de um realismo por momentos inquietante. A guilhotina retomava assim um imaginário da revolução pendente (e com ele a ideia de que na Espanha nunca houve uma Revolução Francesa). A revolução pendente era acionada como imaginário de resposta às políticas de austeridade, os famosos cortes. “Os próximos cortes serão com a guilhotina”, replicavam os cidadãos.
A lógica da guilhotina reproduzia o vocabulário da inclusividade: se os recursos são limitados, cabe liquidar (simbolicamente?) aquele 1% para alimentar (simbolicamente?) os outros 99%… A guilhotina pendente tinha outra vantagem poética: a possibilidade de administrar conceitualmente o excesso de chorizos. Como numa representação teatral medieval, o corpo de Don Chorizo era repartido entre os presentes: uma guilhotina instalada na praça, com funcionamento real, era acionada para fatiar um gigantesco cilindro de embutido, que recheava sanduíches distribuídos durante os protestos. De repente, havia pão com chorizo para todos.
A guilhotina como metonímia da revolução pendente, da necessidade de uma virtude cívica violenta para confrontar a praga dos chorizos, e como metáfora da promessa de partilha coletiva dos bens liga-se ao imaginário da história espanhola. O dia 18 de julho de 2013 marcou os 77 anos do golpe de Estado que deflagrou a Guerra Civil. Enquanto o primeiro-ministro Mariano Rajoy cambaleia, e com ele todo o governo, por causa do escândalo dos pagamentos ao partido governista com dinheiro sujo, coletivos de cidadãos convocaram um “churrasco de chorizos” em frente às sedes do Partido Popular.
Até que ponto a emergência de um movimento de protesto como o 15-M significa uma novidade na Espanha? Numa perspectiva histórica, o 15-M pode ser vinculado a outras explosões transbordantes de energia cívica, como as revoltas anarcopopulares de 1909, que catalisaram a oposição coletiva ao alistamento militar obrigatório e o rechaço ao colonialismo sob a égide do rei Alfonso XIII. Em 1931, na proclamação transbordante e pacífica da Segunda República, as multidões inteligentes desbordaram as instituições da ditadura de Primo de Rivera num processo ao mesmo tempo destituinte e constituinte. Entre essas duas datas há duas gerações de ativistas e uma cultura nova. E, acima de tudo, muitos mortos e presos políticos.
Já a experiência da transição à democracia pressupõe, na história moderna espanhola, a tensão entre dois modelos de “refundação” bem-sucedidos. Um, militar e involucionista, apoiado na repressão violenta dos movimentos sociais e na eliminação de suas elites (a instalação do franquismo em 1939 seria seu exemplo acabado). Outro, político e regeneracionista, que procura desarmar os protestos mediante a cooptação das novas elites emergentes e sua integração institucional, além da abertura democrática do Estado. Esse segundo modelo é o que conseguiu se impor em 1982. Sua imensa eficácia nas últimas décadas entrou em falência nos últimos anos.
Para alguns analistas, ele deixou de compensar: seria um processo caro demais, pois implica a participação de amplos setores sociais nos cofres do Estado, exigindo a socialização de recursos que, de repente, se reduziram. Ao mesmo tempo, segundo outros teóricos, o Estado neoliberal já não necessita de ideologia, necessita apenas de gestão (o que, evidentemente, já é uma ideologia), uma vez que desenvolveu instrumentos de controle suficientemente sofisticados para prescindir da primeira.
Existe um terceiro cenário, que permaneceu ativo na história espanhola fundamentalmente como um fantasma: a fragmentação política. A instabilidade do modelo territorial espanhol e a transferência sistemática dos mecanismos de decisão para instâncias externas não democráticas poderiam contribuir para a instalação desse cenário. No contexto da reorganização geral da estrutura do Estado a fim de garantir o pagamento da dívida, é coerente que ele seja dividido em diferentes setores, do mesmo modo que se fragmenta um crédito.
Na órbita contrária, os modelos utópicos propostos a partir do movimento 15-M falam em produzir um novo pacto constituinte por meio de um processo de refundação. Em alguns casos, a reconstituição política poderia ser gerada de fora do Estado por meio da efetiva substituição de suas instituições. Boa parte dos esforços criativos segue nessa direção, na discussão de processos constituintes e destituintes de base popular assembleísta para uma reforma das instituições democráticas. O outro cenário, a exemplo das experiências grega e italiana, propõe-se a uma mudança por dentro, com base em uma futura tomada do Estado por meio de eleições, vencidas por plataformas de caráter cívico, das quais ainda conhecemos muito pouco além das experiências cívico-nacionalistas (Candidatura da Unidade Popular, na Catalunha; a coalizão Amaiur, no País Basco; a ANOVA, na Galícia) e do Partido X (baseado na ciberdemocracia, isto é, em facilitar a participação direta por meio da internet; seus representantes atuariam como interfaces).
O COMEÇO É O FINAL
O resgate da economia espanhola ocorreu no mesmo dia em que começava a Eurocopa, faz pouco mais de um ano. Pensando nessa coincidência, expus, nas páginas desta revista, que o futebol funcionou como pano de fundo fantástico com o qual se tentou simbolizar os protestos, sublimando a derrota material como triunfo espiritual. A nação continuaria a ser campeã, no futebol, mesmo que já não mais na economia… Essa estratégia, quixotesca, iria acompanhar a tática publicitária do governo ao longo de todo o ano político seguinte, sob o lema de “promover a marca Espanha”. A forte contestação simbólica desse dispositivo (cartazes afirmando “Marca Espanha = chorizos”) condenou-o a encontrar seu túmulo no Maracanã.
Na final da Copa das Confederações, a atual campeã do mundo enfrentou a seleção campeã por excelência do futebol mundial. Ao mesmo tempo, a economia em crise media forças com o gigante emergente. Embora os comentaristas espanhóis mantivessem o tom quixotesco (“Fazer história”, “O que nenhum país jamais conseguiu”), na verdade já preparavam, por via das dúvidas (“Nossa magia sul-americana será posta à prova pela radical europeização do Brasil”), uma narrativa da substituição, do translatio imperii (transferência de poder), na qual a potência em declínio aceita, com espírito esportivo,que houve uma troca de hegemonia e entrega o bastão ao novo astro emergente, para se retirar, assim como Zapatero, pelos fundos do teatro da história, suspirando aliviada.
Depois da derrota da “Fúria” por 3 a 0, a leitura da imprensa espanhola foi a previsível: “O Brasil começou a goleada com seu hino.” Os jornalistas ficaram fascinados com a comunhão da torcida brasileira com sua equipe, todos cantando à capela o hino nacional. Viram nisso a atitude própria de uma nação sem complexos, normalizada, contrapondo-a à situação da Espanha, que, por causa do seu conflito territorial e sua impossível narrativa multicultural, tem um hino sem letra. Por um lado, a desunião nacional estrutural e, por outro, o esgotamento de um modelo de sociedade (falou-se do cansaço dos jogadores, do ano difícil, da idade…) explicariam tudo o mais que aconteceu naquele dia.
Contudo, assim como no ano passado, o técnico espanhol faria as vezes de intérprete para a opinião pública, pronunciando um poderoso augúrio pouco antes da partida: “Eles são cinco vezes campeões do mundo e nós apenas uma, mas domingo, no Maracanã, inicia-se uma nova era. Recomeçamos os dois do zero.” Ao longo deste texto, creio já ter estabelecido o que significa começar do zero na temporalidade atual da crise espanhola. Zero é a fundação democrática, é o momento anterior à construção do Estado de bem-estar social, definido também pela ausência de direitos políticos. Nesse marco, o 3 a 0 seria um presságio funesto para a “nova era”: “O sonho do Maracanã foi um pesadelo”, “Deu tudo errado”. Estaríamos então chamados a reencontrar no futuro tudo o que não pensávamos encontrar nunca mais.
Enquanto as duas equipes travavam seus duelos simbólicos no campo, milhares de pessoas protestavam fora do Maracanã. No andar dos protestos, como num estranho elevador, pareciam se cruzar as temporalidades espanhola e brasileira, uma em queda acelerada e a outra em vertiginosa ascensão.
Os protestos na Espanha são defensivos: entrincheirados nas ruínas do edifício do Estado, entre os muros do bem-estar social que nos protegiam contra a fria intempérie do neoliberalismo, esperamos o assalto final dos nossos famintos demônios familiares. Vistos da Espanha, os protestos brasileiros nos parecem fundamentalmente construtivos. Uns e outros compartilham alguns elementos: insatisfação com o aumento do custo de vida, com a precariedade, e demandas por serviços mínimos, pela dignidade da cidadania. É assim que os lemos do outro lado do oceano, como a vontade de socializar e de estender direitos identificados com um bem-estar racional-nacional. Como a legítima aspiração a ter o que aqui estamos perdendo.
No ano de 2004, na Eurocopa de Portugal, a construção de estádios à custa da dívida pública não gerou contestação relevante. Tampouco na Espanha, onde foram construídas imensas catedrais do futebol no ritmo da bolha imobiliária. Eram tempos de estádios, e não de praças. Hoje os estádios são ruínas monumentais, como a gigantesca arena de Mestalla, em Valência, paralisada desde 2009. Tiraram o pão para construir circos, e hoje os circos caem aos pedaços. Outro emblema do 15-M: “Pouco pão e péssimo circo.” Mais um emblema do boom que volta politizado.
Os circos da Copa do Mundo brasileira já estão prontos. Na Espanha, é impossível vestir-se de vermelho e amarelo para protestar. Não há possibilidade de imaginação política alternativa dentro do marco nacional. As imagens dos protestos brasileiros parecem provar que o contrário é possível. Parodiando o slogan publicitário (ou o hino nacional), as pessoas se congregam sob slogans que proclamam “O gigante acordou” (às vezes completado com “e agora vem pra rua”, “a periferia nunca dormiu” etc.). As máscaras de Fawkes convivem com a bandeira nacional (assim como o Occupy Wall Street, nos Estados Unidos). E, diferentemente do que aconteceu em Portugal e na Espanha, no Brasil de hoje é a própria cultura do futebol-especulação-espetáculo que fornece os elementos para a crítica: não precisamos de estádios, precisamos de hospitais.
Enquanto na Espanha e em Portugal grita-se “Fora FMI”, no Brasil grita-se “Fifa go home”. Enquanto na Espanha a Eurocopa serve de pano de fundo para falar de política sem falar nos protestos, no Brasil a Copa do Mundo parece servir para falar dos protestos políticos. Como bem sabe o técnico espanhol, o que acontece fora dos estádios há de definir a nova era que começa, agora que o placar voltou ao zero.
Este texto foi escrito a partir de muitas conversas. Quero agradecer a algumas das últimas dívidas adquiridas: a Agustina e Lidia, que também revisaram o texto, a Antonio, Lidia, Jaime e Gabriel, ao Seminário Euraca, a Luz, María, Martina, Rafa, Miriam, Isabelle, Alberto, Marcos, Esther, Rafael, Ramón, Ana, Steffen e aos participantes e organizadores do encontro 15-M P2P realizado na Universitat Oberta de Catalunya, em Barcelona, em julho de 2013 (especialmente a Juan Luis Sánchez pela citação inicial).