ILUSTRAÇÃO: MIGUEL BRIEVA
O recado de Londres
O dia em que a polícia britânica prendeu David Miranda
Claudia Antunes | Edição 84, Setembro 2013
Era domingo, e pela hora Glenn Greenwald desconfiou que não vinha boa notícia. O jornalista americano estava dormindo em sua casa no Rio quando foi acordado pelo telefone, pouco depois das sete da manhã. Do outro lado do Atlântico, um agente da Scotland Yard, a Polícia Metropolitana de Londres, perguntou o que já sabia, se Greenwald conhecia David Miranda. E então disse a que vinha: “Estou ligando para informar que ele está detido sob a Lei Antiterrorismo 2000.”
Ainda se passariam 24 horas até Greenwald – que junto com a documentarista Laura Poitras vem divulgando segredos da espionagem americana vazados por Edward Snowden – rever o companheiro. “Eles acharam que eu ia quebrar, mas isso não ocorreu. Quando a gente começou a trabalhar com essas histórias, sabíamos que coisas assim poderiam acontecer”, diria depois Miranda, que está sempre presente quando Greenwald assina contratos e define onde publicará seus artigos.
Mas Greenwald não reagiu com fleuma à ligação que o acordou em 18 de agosto. Ficou furioso com a menção a terrorismo. Um mês e meio antes, a própria Laura passara por Londres, saindo do Brasil, e nada havia lhe acontecido. Ele perguntou em vão ao agente se podia falar com Miranda. Quis saber quanto tempo o parceiro ficaria detido. “Temos o direito de detê-lo por nove horas, depois podemos pedir mais tempo à Justiça ou prendê-lo”, ouviu em resposta.
Miranda havia sido detido três horas antes, às 8h05 em Londres (quatro da manhã no Brasil), quando desembarcou no aeroporto de Heathrow, onde faria conexão para o Rio. Com passagem paga pelo Guardian, o jornal britânico do qual Greenwald é colunista, ele tinha passado uma semana em Berlim, parte dela hospedado na casa de Laura. Além de um laptop Samsung recém-comprado e outros aparelhos eletrônicos – um celular, um console de videogame, dois SmartWatchs –, trazia dois pen drives e um disco rígido com arquivos confidenciais que a documentarista enviara para Greenwald.
Ainda no avião da British Airways, os passageiros tinham sido instruídos a desembarcar com os passaportes em mãos. Na saída do finger, o rapaz de cabelo moicano foi identificado por dois policiais de terno, com os crachás virados. “Pode me acompanhar?”, disse um deles, tomando seu passaporte. O brasileiro foi levado para uma sala sem janelas, monitorada por câmera e mobiliada com uma mesa, quatro cadeiras e um computador para identificar digitais. Revistaram sua bagagem e levaram todos os equipamentos.
Teve início então um espetáculo do absurdo, roteirizado pelo Apêndice 7 – que se aplica a portos e aeroportos – da Lei Antiterrorista 2000. Quando Miranda perguntou o que queriam dele e que direitos tinha, mostraram-lhe uma primeira notificação, segundo a qual, confinado numa saleta, ele não estava sob custódia, detido ou preso. “Você não é necessariamente suspeito de ordenar, planejar ou instigar atos de terrorismo. O objetivo do interrogatório é determinar se você pode ser essa pessoa”, dizia o documento, que não dava a Miranda o direito de ficar calado: ou falava ou era processado. Apenas dez minutos depois, ele recebeu outra notificação-padrão. Agora era considerado detido. Poderia informar alguém e consultar um advogado – mas as duas medidas poderiam ser atrasadas por ordem superior, como de fato ocorreu. O interrogatório começou.
No Brasil, Greenwald ligou para os editores do Guardian, que contataram a firma de advocacia Bindmans LLP. Gavin Kendall, o advogado destacado para a emergência, tentou falar com Miranda pelo telefone, mas a polícia não deixou. Seguiu então para Heathrow. Greenwald sentou ao computador para avisar Laura Poitras e Edward Snowden. “Fiquei o dia todo falando com eles. Ficaram com muita raiva. [As autoridades britânicas] acharam que o David era o elo mais frágil. Não fariam isso com americanos ou ingleses”, disse Greenwald no fim de agosto.
No aeroporto de Londres, o interrogatório continuava. Seis agentes se revezavam, e um sétimo aparecia à porta às vezes. Perguntavam sobre Laura, sobre Snowden (com quem Miranda nunca falou). Pediram o endereço de Laura em Berlim (o brasileiro tinha jogado fora o papel em que Greenwald o anotara). De vez em quando desviavam o assunto para os protestos no Brasil e a vida de Miranda (teve infância pobre e, aos 28 anos, estuda marketing).
Miranda fala inglês bem. Mas, cansado, pediu um intérprete e não teve. Pediu também papel e caneta para anotar as perguntas (os policiais tomavam notas em cadernos), sem efeito. Em certo momento, deixaram-no sozinho na sala. Ele começou a falar alto para a câmera – “Isso é tortura, quero que fique pelo menos uma pessoa aqui comigo” – até que mandaram alguém. Recusou-se a beber a água que traziam. No meio da tarde, foi escoltado até uma máquina, onde pegou uma Coca-Cola e um chocolate.
Depois de oito horas, Miranda pôde falar com Kendall. O advogado o aconselhou a entregar as senhas do celular e do computador. “Se achassem que eu não estava cooperando, eu poderia ir para a cadeia. Foi a ameaça que fizeram o dia inteiro.” A polícia também pediu as senhas para decodificar os arquivos enviados por Laura, mas o brasileiro afirma que não as tinha nem tem. No celular havia fotos de uma viagem a Búzios com Greenwald. Os dois estão juntos há nove anos.
Quando Miranda foi liberado, depois de nove horas contadas, levaram-no para o saguão da Imigração, vigiado por dois agentes. Ele tinha sido encaixado num voo da British para o Rio no dia seguinte e, ironicamente, teria que entrar no país que acabara de detê-lo. Irritado, gritou para um dos policiais: “Quero falar com a minha embaixada, quero voltar para o meu país!” Por fim conseguiram um voo da TAM para a mesma noite. Antes do embarque, Miranda pediu o telefone de um funcionário da companhia aérea. Tentou três vezes ligar para Greenwald, sem sucesso. Falou com um amigo e pediu que avisasse ao parceiro que estava bem.
Nos dias seguintes, o governo britânico alegou que o brasileiro possuía “informações roubadas que ajudariam o terrorismo”. Também revelou-se que o Guardian, pressionado pelas autoridades, tinha destruído documentos passados por Snowden. Em carta ao Ministério do Interior, os advogados de Miranda classificaram como ilegal a utilização da lei antiterror no caso dele. “É sabido que se a polícia quiser acesso a material jornalístico pessoal e confidencial precisará obter um mandado judicial. O uso dos poderes do Apêndice 7 contra nosso cliente parece ter permitido à polícia contornar importantes proteções”, argumentaram.
Uma polêmica irrompeu depois que um colunista americano comparou Miranda a uma “mula” de traficantes. “O jornalismo existe para dar transparência aos atos dos poderosos, e por isso trabalha com segredos de Estado. A espionagem americana não deixa a internet livre, então temos que entregar coisas pessoalmente. Se as pessoas pensam que é crime possuir documentos, pensam que o jornalismo é crime”, rebateu Greenwald. Ele contou que a polícia londrina, que busca indícios para incriminar Miranda, tinha acabado de entregar um informe à Justiça sobre o caso. “Eles conseguiram saber quantos documentos estão nos pen drives [58 mil, segundo o governo britânico], mas não conseguiram abrir nenhum porque estão protegidos por uma criptografia sofisticada.”