minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

questões cinematográficas

Paraíso perdido do audiovisual

Eduardo Escorel | 24 nov 2016_14h24
A+ A- A

Não faltaram arautos – gestores culturais e jornalistas, em especial – para proclamar a redenção do audiovisual brasileiro, depois que a Agência Nacional do Cinema (ANCINE) divulgou, no início de outubro, dois estudos – um, sobre o “Valor adicionado pelo setor audiovisual”; outro, que trata do “Comércio exterior de serviços audiovisuais”. O primeiro com dados de 2014; o segundo, atualizado até 2015.

Mesmo pregoeiros mais comedidos anunciaram o “florescimento” do audiovisual brasileiro. Em compensação, os hiperbólicos de sempre chegaram a afirmar que houve um “milagre do mercado audiovisual”. Tamanho júbilo só pode ser entendido levando em conta a credulidade e falta de informação predominantes com relação ao cinema brasileiro; ou então, se as inúmeras entrevistas a respeito do assunto fizerem parte de uma campanha autopromocional da ANCINE. Impressionados, talvez, com a principal cifra citada nos estudos divulgados, crédulos e desinformados, estimulados pelo diretor-presidente da Agência governamental, Manoel Rangel, deram início às comemorações pelo triunfo do setor audiovisual. Precipitados, podem ter iniciado as celebrações antes da hora.

24.5 bilhões de reais chamam atenção, de fato, mesmo neste país em que cifras bilionárias frequentam dia sim, dia não, o noticiário sobre as transações criminosas reveladas pelas Operações Lava-Jato, Calicute e outras. Os 24.5 bilhões mencionados acima são a renda gerada pelo setor audiovisual na economia brasileira, da qual 93.1% provém da televisão aberta e por assinatura. No caso, não se trata de uma ilegalidade. A questão que se coloca é como interpretar os dados do IBGE divulgados pela ANCINE.

Não é propósito deste post analisar os dois estudos da ANCINE, tarefa que caberia a economistas e estatísticos que tenham competência para tanto. O que se quer assinalar aqui é a concepção economicista da atividade cinematográfica – marca registrada da gestão de Manoel Rangel na ANCINE, iniciada em 2005 – que suscita festejos embora o setor continue a ter a fragilidade de uma bolha.

É comum ouvir dizer, inclusive com relação ao cinema, que a qualidade deriva da quantidade. Esse clichê parece ter sido o mote da política cinematográfica regulada e fomentada pela ANCINE ao longo dos últimos doze anos. Evidência disso são as somas investidas no setor desde 2007, quando foi instituído o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Recursos superiores aos destinados à área em qualquer época anterior, sem que tenha havido, porém, um processo de acumulação que permita ter no horizonte a perspectiva dos produtores se tornarem menos dependentes do Estado. Esse é um fracasso econômico, ao qual se associa outro, de natureza artística: a baixa qualidade média dos filmes que vêm sendo produzidos.

Embora as atividades de produção e pós-produção representem, de acordo com os estudos citados da ANCINE,  tão somente 2.9% do segmento audiovisual, participação ligeiramente reduzida desde 2007, quando era de 3.1%, é inegável que houve um crescimento expressivo, tanto do número de filmes brasileiros lançados em salas de cinema, passando de 29, em 2002, para 129 em 2015, quanto do número de espectadores de filmes brasileiros, que foram de 7.2 milhões, em 2002, para 22.4, no ano passado.

No entanto, a leitura meramente quantitativa desses dados propicia euforia enganosa. Devido à ausência não apenas de política cultural de Estado para o audiovisual, como da formulação de propostas consistentes por parte do setor privado, o cinema brasileiro perdeu, em seu conjunto, vigor e relevância. A quantidade foi sobreposta à qualidade, ressalvadas as exceções de praxe. Estado e sociedade se omitiram, deixando de lado quaisquer critérios de mérito e desconsiderando a qualidade como objetivo central.

A ação da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, a quem caberia formular políticas públicas para o setor, tem sido nula, no melhor dos casos, quando não destrutiva nas ocasiões em que tomou alguma iniciativa. A ANCINE, por sua vez, além de acumular funções indevidas, sofre de gigantismo e hipertrofia burocrática crônica, levando o encaminhamento de projetos a ser excessivamente moroso e tornando torturante a relação compulsória entre as empresas produtoras e a Agência. Entidade toda poderosa, a ANCINE dispõe de recursos anuais consideráveis provenientes da televisão, em especial das operadoras e programadoras por assinatura que representam 51.6% do valor adicionado à economia, percentual que cresceu 21.3% desde 2007.

Dotados de visão estreita, de forma geral, produtores e profissionais da área, premidos pelo imediatismo se submetem à dependência da ANCINE. Embarcados no trem da alegria, o destino desses profissionais, mantidos os parâmetros atuais, é uma conhecida estação chamada Irrelevância.

Em meio ao espocar dos fogos, poucas vozes isoladas mantiveram a serenidade, lembrando a persistência de entraves estruturais. Uma dessas vozes declarou que a situação atual, apesar de favorável, “não aponta um caminho para a autossustentabilidade” (Luiz Carlos Barreto); outra indicou a necessidade de “dar um salto na produção de filmes de qualidade” (Marcio Fraccaroli), acompanhando par e passo o aumento da quantidade.

Mesmo admitindo a dificuldade de lidar com critério tão subjetivo quanto qualidade, os mecanismos de financiamento da produção existentes no Brasil impõem, de modo particular, o compromisso de lidar com essa dificuldade, não de desconhecê-la. E de atribuir à busca de excelência peso decisivo na escolha do que será produzido.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí