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Seis poemas de Wallace Stevens
Wallace Stevens e Paulo Henriques Britto | Edição 91, Abril 2014
Vida de poeta foi algo que Wallace Stevens (1879–1955) definitivamente não teve: rico, eleitor do Partido Republicano, quase sempre de terno e gravata nas fotos, trabalhou desde 1916 numa grande companhia de seguros em Hartford, Connecticut, chegando a tornar-se vice-presidente da firma. Viajava principalmente a trabalho – nunca foi à Europa – e, quando fazia uma viagem de lazer, ia principalmente à Flórida, sem a mulher, onde pescava, bebia (ela não o deixava beber em casa) e brigava (uma vez com Hemingway, de quem levou uma surra).
Só começou a escrever seus poemas importantes quando já tinha 35 anos, e continuou a produzir peças da maior qualidade depois dos 70. Sua poesia, que dialoga com os pintores e os filósofos modernos, desenvolve uma reflexão sobre o significado da arte, que para Stevens – como ele afirma numa de suas muitas obras-primas, “Sunday morning” – é o que nós, modernos, temos para pôr no lugar da religião. É de “Sunday morning”, aliás, um de seus versos lapidares: Death is the mother of beauty (“A morte é a mãe da beleza”). Um dos poemas em que tematiza as possibilidades da poesia moderna, “The poems of our climate”, contém este verso: The imperfect is our paradise (“O imperfeito é nosso paraíso”); no entanto, Stevens é dos que chegam mais perto da perfeição possível no trabalho poético. Foi um dos maiores poetas da língua inglesa num século que contou com Yeats, Eliot, Pound e Williams, o que não é pouca coisa.
Quase todos os poemas selecionados aqui saíram no primeiro livro de Stevens, Harmonium, em 1923. A exceção é o encantador “Song”, escrito em 1916 e publicado em Others: A Magazine of the New Verse, revista de poesia de vanguarda que circulou em Nova York entre 1915 e 1919; o poema não foi incluído por Stevens em nenhum de seus livros. “Tattoo” e “The worms at Heaven’s gate” foram traduzidos anteriormente por Augusto de Campos (em Poesia da Recusa, publicado em 2006 pela Perspectiva).
PAULO HENRIQUES BRITO
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TATTOO
The light is like a spider.
It crawls over the water.
It crawls over the edges of the snow.
It crawls under your eyelids
And spreads its webs there –
Its two webs.
The webs of your eyes
Are fastened
To the flesh and bones of you
As to rafters or grass.
There are filaments of your eyes
On the surface of the water
And in the edges of the snow.
TATUAGEM
A luz lembra uma aranha.
Caminha sobre a água.
Caminha pelas margens da neve.
Penetra sob as tuas pálpebras
E espalha ali suas teias –
Duas teias.
As teias de teus olhos
Estão atadas
À carne e aos ossos teus
Como a um caibro ou capim.
Há filamentos de teus olhos
Na superfície da água
E nas margens da neve.
OF HEAVEN CONSIDERED AS A TOMB
What word have you, interpreters, of men
Who in the tomb of heaven walk by night,
The darkened ghosts of our old comedy?
Do they believe they range the gusty cold,
With lanterns borne aloft to light the way,
Freemen of death, about and still about
To find whatever it is they seek? Or does
That burial, pillared up each day as porte
And spiritous passage into nothingness,
Foretell each night the one abysmal night,
When the host shall no more wander, nor the light
Of the steadfast lanterns creep across the dark?
Make hue among the dark comedians,
Halloo them in the topmost distances
For answer from their icy Élysée.
O CÉU CONCEBIDO COMO UM TÚMULO
Que me dizeis, intérpretes, dos que
No túmulo do céu andam à noite,
Fantasmas negros da comédia finda?
Creem, talvez, que vagarão pra sempre
No frio, no escuro, com lanternas altas,
Libertos da morte, a buscar sem trégua
O que quer que busquem? Ou a lembrança
Do enterro, portão da espiritual
Chegada ao nada, é antevisão diária
Daquela noite única e abissal
Em que as hostes não mais caminharão,
Nem mais lanternas riscarão a treva?
Gritai essa pergunta aos céus, que a ouçam
Os sombrios comediantes, e a respondam
Do seu longínquo e gélido Élysée.
SONG
There are great things doing
In the world,
Little rabbit.
There is a damsel,
Sweeter than the sound of the willow,
Dearer than shallow water
Flowing over pebbles.
Of a Sunday,
She wears a long coat,
With twelve buttons on it.
Tell that to your mother.
CANÇÃO
Há coisas esplêndidas acontecendo
No mundo,
Coelhinho.
Há uma donzela,
Mais doce que o som do salgueiro,
Mais suave que água rasa
Correndo sobre seixos.
No domingo,
Ela veste um casaco longo,
Com doze botões.
Conta isso à tua mãe.
GUBBINAL
That strange flower, the sun,
Is just what you say.
Have it your way.
The world is ugly,
And the people are sad.
That tuft of jungle feathers,
That animal eye,
Is just what you say.
That savage of fire,
That seed,
Have it your way.
The world is ugly,
And the people are sad.
PARVOÁLIA
Essa flor estranha, o sol,
É o que você diz que é.
Se é assim que você quer.
O mundo é feio,
E ninguém é feliz.
Esse tufo de plumas de bugre,
Esse olho animal,
É o que você diz que é.
Esse selvagem de fogo,
Essa semente,
Se é assim que você quer.
O mundo é feio,
E ninguém é feliz.
DEPRESSION BEFORE SPRING
The cock crows
But no queen rises.
The hair of my blonde
Is dazzling,
As the spittle of cows
Threading the wind.
Ho! Ho!
But ki-ki-ri-ki
Brings no rou-cou,
No rou-cou-cou.
But no queen comes
In slipper green.
DEPRESSÃO ANTES DA PRIMAVERA
O galo canta,
Mas rainha alguma se levanta.
Minha loura tem cabelos
Deslumbrantes,
Como o cuspo das vacas
Costurando o vento.
Uô! Uô!
Mas cocoricó
Não traz curru nenhum,
Nenhum curru-curru.
Mas rainha alguma vem
Com verde chinelinha.
THE WORMS AT HEAVEN’S GATE
Out of the tomb, we bring Badroulbadour,
Within our bellies, we her chariot.
Here is an eye. And here are, one by one,
The lashes of that eye and its white lid.
Here is the cheek on which that lid declined,
And, finger after finger, here, the hand,
The genius of that cheek. Here are the lips,
The bundle of the body and the feet.
. . . . . . . . . . .
Out of the tomb we bring Badroulbadour.
OS VERMES AOS PORTÕES DO PARAÍSO
Da tumba, trazemos Badrulbadur,
Em nossos ventres, sua carruagem.
Eis um olho. E eis aqui, um por um,
Os cílios desse olho e a alva pálpebra.
Eis a face em que a pálpebra descia,
E aqui, dedo após dedo, eis a mão,
O gênio dessa face. Eis os lábios,
Eis o fardo do corpo, mais os pés.
. . . . . . . . . . .
Da tumba trazemos Badrulbadur.
Wallace Stevens (1879–1955), poeta norte-americano, publicou, entre outros livros, Harmonium (Faber & Faber) e The Man with the Blue Guitar (Knopf). No Brasil, a Companhia das Letras lançou a coletânea Poemas.
Paulo Henriques Britto é escritor e tradutor. Seu livro de poesia mais recente é Formas do Nada, lançado pela Companhia das Letras