ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Laboratório Vidigal
As experiências de um ativista gestor
Claudia Antunes | Edição 96, Setembro 2014
Pedro Henrique de Cristo se recuperava de uma gripe e, naquela terça-feira ensolarada de agosto, foi um tanto menos lépido do que de costume na subida dos 115 degraus irregulares que levam a casa em que mora. Lá no alto, foi logo mostrar a vista do terraço: no horizonte, o Atlântico; à esquerda, parte da orla da Zona Sul do Rio, do Leblon ao Arpoador; abaixo, por toda a encosta do morro, as ladeiras, vielas e casas do seu laboratório, a favela do Vidigal. Ali, ele planeja aliar “inteligência contextual” (os moradores), “capital inteligente” (os investidores) e “expertise” (dele e da mulher, a arquiteta americana Carol Shannon) em projetos que juntem urbanismo, educação e democracia direta.
Os conceitos de gestão salpicam a fala de resto coloquial de Pedro, um rapaz de 31 anos, cabelos encaracolados e olhos claros. Ele cursou administração na Universidade Federal da Paraíba, comandou na Prefeitura de João Pessoa um projeto de economia de água premiado pela ONU e fez mestrado em políticas públicas na Escola de Governo J. F. Kennedy, da Universidade Harvard. Aprendeu os fundamentos da arquitetura trabalhando no escritório dos pais arquitetos.
Pedro conquistou bolsa integral em Harvard, por meio do programa da Fundação Lemann – criada pelo empresário Jorge Paulo Lemann, sócio da cervejaria AB InBev – para estudantes brasileiros. Neste ano, foi considerado um dos dez “Lemann fellows de alto impacto”, o que, disse, confere um “selo de qualidade” ao seu trabalho – e alguma vantagem na disputa por investimentos em projetos sociais.
Na universidade americana, Pedro só não gostava da formalidade de colegas “de calça cáqui e camisa azul-marinho”. Na casa de dois cômodos que aluga no Vidigal, quase não há móveis. No quarto, a mesa feita por ele com o reaproveitamento de uma porta divide o espaço com o colchão no chão e serve de escritório para a +D, a empresa de design dele e de Carol. O casal obteve apoio da Fundação Lemann e de empresários paulistas para escrever dois livros digitais: Futuro Agora, sobre educação, e Ágora Digital, que propõe uma “reforma da democracia”. Com uma bolsa de Harvard, a dupla viajou pela América Latina pesquisando programas sociais – ficou impressionado com o chileno Crece Contigo, para crianças em idade pré-escolar, e planeja adaptá-lo no Vidigal.
“Não trabalho para Paris, mas para o mundo majoritário”, disse Pedro, mostrando na tela do computador um mapa-múndi invertido, em que América Latina, África e Ásia – o Terceiro Mundo de antes – aparecem em cima. “É onde moram 82% da população do planeta, um quinto deles em favelas.”
O paraibano já pensava em vir para o Rio quando escreveu a tese de mestrado. Propunha que as diretoras das escolas fossem as “líderes da integração” entre os moradores e o Estado nas favelas com Unidades de Polícia Pacificadora – papel que acabou na mão dos comandantes das UPPs. “Na pesquisa de campo, vi que as escolas eram o centro do capital social das comunidades, onde aconteciam casamentos, eventos esportivos, festa de São João.”
Em 2011, ele tentou pôr a tese em prática. Trabalhou no projeto UPP Social, da Prefeitura do Rio, que mapeava as carências de serviços públicos nas favelas e buscava seu atendimento pelas secretarias municipais. Saiu frustrado, disse, porque a UPP Social não tinha poder para concretizar as melhorias. “Cada secretaria é um feudo, cada secretário tem uma agenda política diferente.”
Naquele ano, Pedro ajudou a criar o movimento Cidade Unida, com ativistas do asfalto e do morro. “Era uma coisa utópica, vi que não tinha pernas para o objetivo de unir a cidade a partir das favelas. Aí decidi: vamos deixar de abraçar o mundo e focar no Vidigal.”
O Vidigal é uma favela atípica. Tem aproximadamente 20 mil moradores, com renda familiar superior à média da cidade. A UPP tem cumprido até agora o objetivo de tirar das ruas o tráfico armado. Pedro já tinha morado no morro, mas a mudança definitiva veio em 2012, quando conheceu o músico Mauro Quintanilha, nascido e criado no Vidigal.
Para encontrar Mauro, Pedro tem que descer a escadaria que leva a sua casa, cruzar a ladeira principal do Vidigal em meio ao ronco dos mototáxis e descer mais uns 100 degraus até o Parque Ecológico Sitiê – junção de sítio e tiê-sangue, passarinho que faz aparições na área. O parque de Mata Atlântica foi criado pela prefeitura – sem o nome atual – para evitar a expansão da favela. Era usado como lixão até que Mauro e dois amigos do morro decidiram limpar o lugar, onde passaram a cultivar hortaliças e plantas ornamentais.
Pedro propôs ao grupo formalizar o Sitiê. Está em curso a demarcação dos limites do parque e a criação de uma ONG para geri-lo. O processo não foi concluído, mas eles já atraíram investimentos privados. Mauro e mais dois moradores do morro hoje recebem salário para trabalhar no parque. Pneus velhos encontrados na limpeza do terreno, preenchidos com entulho e presos ao solo com concreto, foram usados na contenção de uma encosta escavada para a abertura de um anfiteatro ao ar livre, que ganhará banheiros e internet sem fio. Mais à frente, a ideia é construir no lugar um centro de educação ambiental.
É no Sitiê que Pedro pretende começar a pôr em prática a “ágora digital”. Os moradores, munidos de dados disponíveis num aplicativo para celular, se reuniriam ali para deliberar sobre o uso de recursos públicos. A proposta exposta no livro é mais ambiciosa e controvertida – a ágora seria replicada em cada bairro e, gradualmente, substituiria a Câmara Municipal. Na “reforma da democracia”, haveria a possibilidade de candidaturas avulsas, de pessoas não filiadas a partidos, como também propõe a Rede Sustentabilidade de Marina Silva, com quem Pedro simpatiza. A atual candidata presidencial participou de um debate no Sitiê em fevereiro.
Pedro define o que faz como “ativismo produtivo”. Está lendo o livro do francês Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, que trata da tendência de concentração de renda do capitalismo e dos riscos que isso traz para a democracia. Mas, disse, a “narrativa do conflito de classes” só é boa para análise. “Para resolver problema você tem que trabalhar com coesão social. Você leva as diferenças em conta, mas resolve pelo diálogo, com foco em resultado.”