ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Lévi-Strauss e o xale
A outra expert da família
Isabel Junqueira | Edição 97, Outubro 2014
Numa tarde quente do verão francês, Monique Lévi-Strauss interrompeu a entrevista que concedia na sala hexagonal recoberta de estantes de seu apartamento no 16e arrondissement, um dos distritos mais chiques de Paris. “Você sabe quem foi meu marido?”, perguntou de repente, sentada no sofá de couro do cômodo, cuja vedete é uma mesa de madeira maciça onde o homem em questão concebeu a tetralogia Mitológicas, sobre os mitos e o pensamento ameríndio.
A pergunta não tinha tom de carteirada. Madame Lévi-Strauss estranhou genuinamente o fato de o nome do marido Claude – com quem viveu por mais de meio século, até a morte dele em 2009 – ainda não ter sido mencionado na conversa. Não que a associação a incomode. Outro dia mesmo, num programa de rádio da estação Europe 1, relembrou a “vida divertida” que tiveram juntos. Os dois se conheceram quando o psicanalista Jacques Lacan – para quem Monique fazia traduções do inglês – a recomendou ao antropólogo como revisora de textos.
Vestindo uma bata de seda verde que contrastava com o branco imaculado do cabelo com corte Chanel, a senhora elegante de 88 não quis se gabar, mas sabe-se que ela também é uma autoridade. Nas últimas três décadas, num escritório ensolarado a dois passos dali, Monique escreveu sete livros pioneiros sobre os xales de caxemira produzidos na França no século XIX. Foi quando a peça virou um item indispensável no guarda-roupa das mulheres, a começar pela imperatriz Josefina, primeira mulher de Napoleão Bonaparte, que portava o xale sobre os ombros, pendendo do antebraço ou até mesmo amarrado na cintura. O adereço colorido caía bem com os vestidos de seda lisa e corte reto, no estilo neoclássico que era moda na época.
Francesa de origem belga, Madame Lévi-Strauss lembra a data exata em que tudo começou: 1o de janeiro de 1978. O filho tinha acabado de entrar na faculdade de medicina. O marido não pretendia publicar mais nenhuma obra de peso. Até então, o professor nunca havia encarado nenhum pepino doméstico: ela cuidava de tudo. Como associée – assistente acadêmica informal – de Lévi-Strauss, a ela também cabia a tarefa de ler e opinar sobre todos os escritos dele. Foi assim com Tristes Trópicos – um relato das viagens do antropólogo ao Brasil –, cujos originais foram anotados por Monique, assinalando trechos que ela não julgou claros o bastante.
Então com 51 anos, Madame Lévi-Strauss se viu livre, leve e solta. Na virada do ano, momento de grandes resoluções, determinou-se a estudar os xales antigos que vinha colecionando desde 1950. Andava intrigada com o destino dessas joias têxteis. Toda semana passeava no mercado de pulgas de Saint-Ouen e lá estavam as coitadinhas, amontoadas em meio a bugigangas, oferecidas a preço de banana.
Os xales tecidos com a lã delicada da cabra-da-caxemira, originária dos contrafortes do Himalaia, foram trazidos da Índia para a Europa pelos ingleses, no século XVIII. Quando Napoleão proibiu a entrada de produtos provenientes da Inglaterra, em 1806, a demanda feminina já era grande e o jeito foi fabricá-los na França – de quebra ressuscitando a indústria têxtil do país. A matéria-prima aportava inicialmente vinda da Rússia, e depois, com o fim do Bloqueio Continental, em 1814, da própria Índia, de onde era enviada em estado bruto.
Monique programou três meses de estudos para contar essa história, mas logo se deu conta de que a empreitada era bem mais laboriosa. Numa visita ao Museu de Tecidos de Lyon, o curador caiu na gargalhada com seu interrogatório. “Caxemiras? Não sabemos nada sobre elas. Sou capaz de publicar um livro sobre o tema se a senhora estiver disposta a escrevê-lo”, disse-lhe. Na Inglaterra, a reação foi a mesma. “Nós nunca teremos tempo e dinheiro para estudar o assunto em Paris, capital da criação de xales no século XIX. A senhora tem de fazê-lo!”, suplicou uma curadora do museu londrino Victoria & Albert.
Monique se rendeu aos apelos. Sua pesquisa, que partiu da estaca zero, acabou durando três anos – por coincidência, o tempo que os artesãos indianos levavam para tecer à mão os exemplares mais coloridos e sofisticados do xale. Na França, o processo foi substancialmente abreviado com a invenção, em 1805, do Jacquard, um tear mecânico.
Depois de cruzar informações das mais diversas fontes – retratos no Louvre, patentes têxteis e até edições da Gazette des Tribunaux para checar os processos de falsificação –, Monique se viu apta a datar e, em vários casos, até identificar os fabricantes dos xales produzidos na França. A experiência de assistir a filmes de época nunca mais foi a mesma. “É um suplício quando o figurinista escolhe uma caxemira de 1850 para um enredo ambientado em 1810”, desabafou.
Com a modernização do processo de tecelagem – que culminou, no final do século XIX, com as estampas sendo impressas na lã –, as caxemiras perderam sua aura de exclusividade. Na França, no início do século XX só eram vistas nos braços de mulheres do interior. Hoje em dia, a maioria dos xales da lã é tecida industrialmente na China, em cores uniformes, e não tem uma raison d’être que não seja a de esquentar.
As cerca de 100 caxemiras que despertaram o interesse de Monique se encontram embrulhadas em papel antiácido. Ela, que raramente vestiu os xales – “São objetos de estudo!” –, não pretende mais abrir as malas em que estão guardadas. Disse que dá um trabalhão arrumar tudo e que, de qualquer forma, não há mais necessidade: ela já esgotou todas as suas fontes sobre o assunto.
Madame Lévi-Strauss reacendeu o interesse pelas caxemiras antigas. Duas exposições no Palais Galliera, museu de moda em Paris, atraíram 80 mil pessoas no total. Entre 1988 e 1991, quando foi chamada pela tradicional casa de leilões Drouot para ser a primeira expert no assunto, um belo xale podia chegar a valer mil euros.
Monique se esquiva de admitir o mérito de seu feito. Agradece o reconhecimento de seu trabalho, mas afirma ter uma dívida com o marido. “Ele me deu apoio moral para pesquisar sobre um assunto a que mais ninguém dava valor. Como etnógrafo, considerava a produção têxtil um aspecto muito importante na cultura.” Ela também tinha um associé.